Contar aqui os maravilhosos lances que vi Pelé protagonizar nos gramados, os incontáveis gols ou os acessos de genialidade sem igual seria como chover no molhado.
Felizmente, está quase tudo documentado, em filmes, fotos e relatos.
O que não está apenas aumenta o mito, porque transforma também em lenda o melhor de todos os tempos, como os famosos gols de placa no Maracanã, contra o Fluminense, e o da rua Javari, que era para ter sido recriado por Steven Spielberg para o filme "Pelé Eterno", ideia infelizmente arquivada por causa do custo.
Contarei aqui apenas o que testemunhei quando estive ao seu lado a trabalho ou a passeio, desde a primeira vez em que o vi até a derradeira, depois que nos afastamos, exatamente por ocasião do lançamento do filme, em 2004, quando nos abraçamos calorosamente e achei que ele ficou alegremente surpreso em me ver.
Estive a poucos metros dele pela primeira vez em 1970, na redação da revista "Placar".
Tenho a foto, assim meio de papagaio de pirata, mas não fomos além de uma apresentação formal e um aperto de mãos.
Pelé não era para meu bico, era para o de Michel Laurence. E não foi até 1993, quando o entrevistei para "Playboy", em Cuenca, no Equador.
Daí em diante, e durante os oito anos seguintes, tivemos uma relação muito próxima, a ponto de tê-lo indicado e feito o meio de campo com Fernando Henrique Cardoso para que ele viesse a ser ministro extraordinário do Esporte na primeira gestão do tucano e a ponto de ele me pedir que escrevesse sua biografia autorizada.
Obra que não escrevi porque, em junho de 2001, Pelé participou do que ficou conhecido como o "pacto da bola", a reaproximação dele com João Havelange e Ricardo Teixeira. Ambos estavam de joelhos, asfixiados pelas CPIs do Futebol e da CBF, quando, por motivações meramente comerciais comandadas por um dos sócios de Pelé, o Rei lhes deu o oxigênio para que seguissem em em suas reinações por mais uma década, até que tivessem de renunciar aos seus postos na Fifa, no COI e na CBF.
Então, decepcionado, perguntei a ele como escrever o capítulo sobre "o dia em que Edson traiu Pelé".
O Rei não entendeu, achou que era radicalismo, que poderíamos discordar sem chegar a tal ponto, mas não era assim que eu via.
Tempos depois, em maio de 2002, sob o pretexto de me mostrar a letra de uma canção que havia feito, ele me mandou um bilhete dizendo que "irmãos também brigam: às vezes por ciúmes e outras por amor. Uns perdoam e outros não".
Entre a entrevista em Cuenca e a dura conversa que tivemos quando anunciei que desistia de fazer o livro, vi Pelé atuando nas mais diferentes situações, sem nada que o desabonasse, ao contrário.
A começar pela entrevista.
A edição brasileira da revista "Playboy", que eu então dirigia, completaria 18 anos em 1993, atingiria sua simbólica maioridade, e decidiu romper a tradição de jamais repetir uma entrevista.
É claro que o escolhido para a ruptura foi ele, o Rei.
Marcada para ser feita no Guarujá e em seu apartamento em São Paulo, e desmarcada duas vezes, acabou por acontecer no Equador, onde Pelé estava para comentar a Copa América para a Rede Globo.
Eu já havia arquivado a ideia quando recebi uma surpreendente ligação dele propondo que eu fosse encontrá-lo em Cuenca: "Passo o dia sem fazer nada, esperando os jogos da noite", justificou.
Na primeira das combinadas duas sessões de seis horas cada uma, sem interrupções, ainda nos preâmbulos, perguntei se fazia tempo que ele, conhecido chorão, não chorava.
Respondeu que dias antes havia chorado ao falar com a mãe, Celeste, por telefone.
Ao começar a contar por que, desabou em prantos.
O motivo era prosaico, mas ao se recompor, o Rei estava nu, desarmado, diante do entrevistador.
A primeira sessão foi tão rica em revelações que a segunda serviu apenas como checagem.
Achei que era eticamente correto perguntar a ele, embora tudo estivesse devidamente gravado, se mantinha o que dissera, tal a gravidade de algumas revelações, como a denúncia de corrupção na CBF ou até mesmo os detalhes de seu relacionamento com a apresentadora Xuxa.
Candidamente ele me olhou gravemente e perguntou: "Você não disse que é uma entrevista especial, nunca feita pela revista? Então tem mesmo de ser especial".
Nas chamadas de capa da festiva edição de 18 anos, uma se destacava: "Saiba por que Pelé diz onze vezes 'eu nunca falei disso antes'".
A repercussão da entrevista foi tal, reproduzida em diversas edições internacionais da Playboy que, por retaliação, e para perplexidade dos americanos, João Havelange o impediu de participar do sorteio para a Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos, o mercado que Pelé havia aberto quase 20 anos antes ao ir jogar no Cosmos de Nova Iorque.
Ricardo Teixeira nos processou e para minha alegria e admiração, embora, repita-se, tudo estivesse gravado, Pelé não só não se eximiu do que dissera com o clássico "não foi bem que eu quis dizer" ou "fui mal interpretado", como fez questão de isentar o entrevistador, ao dizer em juízo que este "não fez nada mais do que reproduzir fielmente o que eu disse".
Nasce daí, mais que a velha e obrigatória admiração pelo jogador, a admiração pelo homem.
Passamos a nos ver regularmente, fizemos alguns trabalhos juntos como a "Feira Internacional do Esporte", promovida pela Lemos Britto Congressos e Feiras, com apoio da revista "Placar", que eu também dirigia.
No ano seguinte, em 1994, Fernando Henrique Cardoso, na euforia da conquista do tetra, e na esteira do sucesso do Plano Real, foi eleito presidente da República.
Na Copa dos Estados Unidos, que Pelé comentou para a Globo, não me lembro exatamente se em Detroit ou em Dallas, o Rei me fez pagar um enorme mico.
Combinamos uma entrevista ligeira no hotel em que ele estava hospedado, almoçamos juntos no restaurante do hotel e, na saída, ele me perguntou se eu estava de carro para ir ao treino da Seleção Brasileira. Respondi que não, que tomaria um táxi e ele reagiu, dizendo que mandaria me levar. Aceitei e desci para portaria. O carro que me levaria era simplesmente uma daquelas compridas limousines cafonas e chamativas, com vidros escuros. Tentei escapar, mas ele, às gargalhadas, não permitiu. Disse que iria comigo, de fato entrou no carro, só que quando chegamos e saltei em frente ao campo do treino, Pelé ficou no trambolho e mandou o motorista ir embora, me expondo à situação de ter de explicar para todos os jornalistas que viam a cena o que acontecia, correndo ainda o risco de passar por mentiroso.
Ao final de 1994, FHC me convidou para assumir a Secretaria de Esportes do governo federal. Recusei e propus que ele convidasse o Rei. O presidente pediu que eu fizesse o meio de campo e organizasse um encontro sigiloso entre ambos. Foi quando pude de alguma forma me vingar do mico da limousine.
Combinamos um café da manhã em minha casa para que o Rei e o presidente se encontrassem e se conhecessem. Mas como entrar com Pelé incógnito, num prédio de apartamentos? Propus que ele fosse no porta-malas de meu carro, mas, é claro, Sua Majestade não topou. O jeito foi deitá-lo no banco de trás e cobri-lo para entrar na garagem.
Ao tomarmos o elevador, porém, um jovem que saía com sua bicicleta nos viu. Não era novidade a presença de gente do futebol em minha casa —Sócrates a frequentava amiúde—, mas eis que meia hora depois chega o presidente eleito, com uma caravana de jornalistas a segui-lo.
A desculpa oficial era a de que ele apenas estava visitando um ex-aluno e cumprindo a promessa feita caso ganhasse a eleição.
O interfone não parava de tocar na cozinha até que decidi atender e ouvi de um companheiro se era verdade que o Pelé estava em minha casa. Respondi com uma evasiva: "Você não acha que basta o presidente?".
Depois, quando FHC foi embora e me pediu para falar com os meus colegas é que eu soube que o menino da bicicleta ao voltar para casa e ver todo aquele aparato quis saber o que estava acontecendo e ouviu que se tratava da presença de FHC em minha casa, provavelmente para me convidar para ser ministro. Foi ele então que o jovem informou: "Que FHC nada, é o Pelé que está aí. Eu vi".
Neguei que tivesse sido convidado aos meus colegas e sai novamente pela tangente em relação à presença de Pelé: "Não basta o presidente, vocês ainda querem o rei?", repeti.
Minutos depois sai com meu automóvel para ir para Editora Abril e uma repórter do SBT, sozinha, me esperava. Esperta, desconfiada e persistente, ela jurava que Pelé estava no carro. Deixei-a ver por dentro, até abri o porta-malas e fui embora.
Só horas depois, no chão do carro de minha mulher, coberto, Pelé pôde sair de minha casa.
O Pelé ministro foi um caso à parte.
Escrevi do discurso de posse a quase todos os demais que ele levou no bolso e raramente leu, por preferir improvisar.
E vi cenas impagáveis, como a que atrasou a sua posse em mais de uma hora, porque ele atendeu à fila com cerca de 100 funcionários do hotel em que nos hospedamos exatamente na hora em que estava prevista a solenidade, única, exclusiva, no Palácio do Planalto, também do único ministro cujo anúncio surpreendeu o país, segredo guardado por dias sem fim.
Pelé passara dois dias no hotel prometendo que autografaria o que lhe pedissem, mas só na hora de ir embora. E assim foi feito na garagem, quando os empregados com seus filhos, bolas, camisas e blocos, foram atendidos pacientemente, com direito a ter o nome de cada um na dedicatória. "Pelé, o presidente está esperando", diziam aflitos os seus assessores. "Ele pode esperar. Eu que não posso não cumprir o que prometi", respondia calmamente o Rei.
Tempos depois, o vi recusar, ao telefone, três datas propostas por Bill Clinton para um encontro na Casa Branca. "Você ficou maluco?", perguntei. "Maluco por quê? Ele é que quer me conhecer. Eu já conheci uns sete presidentes dos Estados Unidos e três Papas", respondeu. Na lista dos presidentes norte-americanos, ele incluía Robert Kennedy.
Pelé e Clinton acabaram se conhecendo só no Rio de Janeiro, quando o político visitou o Brasil e ambos fizeram embaixadinhas numa favela carioca.
Pelé era assim. Capaz de esnobar o homem mais poderoso do mundo, mas incapaz de não atender o cozinheiro do hotel, sua mulher e seus filhos.
Ou capaz de um dia me telefonar e pedir para que eu agendasse um encontro dele com Dom Paulo Evaristo Arns: "Guru-mór (andou me tratando assim...), soube que você se dá bem com Dom Paulo e eu queria marcar uma audiência com ele. Você faz isso pra mim?", quis saber.
"Claro que faço, mas você não precisa de mim para isso. Basta sua secretária ligar para a Cúria Metropolitana e tenho certeza de que ele irá onde você marcar", devolvi.
Ao que ouvi dele: "Não, guru-mór, eu é que irei onde e quando ele marcar".
Assim foi feito.
Pelé era capaz de surpreender os próximos como surpreendia seus marcadores em campo.
Um belo dia recebi em meu escritório um emissário de Pelé com um pequeno pacote e um protocolo que eu tive de assinar na frente do portador.
Ao abri-lo, vejo um relógio antigo, de bolso, de prata, com a efígie do busto de Pelé em alto-relevo na tampa e de corpo inteiro no verso. Internamente, na tampa, uma dedicatória: "Ao Juca, com agradecimento, seu irmão Edson Pelé".
Não entendi nada, não era nenhuma data especial, liguei para Celso Grellet, sócio dele, que me explicou que Pelé ficara sabendo que eu colecionava relógios e quis me presentear.
Liguei também para ele, agradeci e a vida seguiu até que no dia 31 de dezembro daquele ano, 1995, Pelé ligou para desejar feliz ano novo e perguntou se eu estava "cuidando bem do relógio".
Respondia que sim, que o mantinha guardado na gaveta de meu criado-mudo, quando fui interrompido: "Então você não está cuidando bem. Este relógio, que ganhei de um fã relojoeiro suíço é único e, com a cópia da Taça Jules Rimet, era uma das duas coisas que eu guardava no cofre de meu banco", informou.
Sim, eu imaginava que o relógio era daqueles presentes para poucos, supunha que houvesse, sei lá, dez exemplares, talvez 30, mandados fazer pelo Rei. Mas, não! Era filho único de mãe solteira. Hoje em dia está tão bem guardado que até me esqueço de onde.
Outra surpresa dele foi aparecer, sem avisar, na festa de relançamento da "Placar", no Ginásio do Ibirapuera, também em 1995, evento para o qual, para não constrangê-lo, nem o convidei.
Pelé sempre foi assim. Lealmente desinteressado na relação com os amigos.
Embora, em regra, com a exceções que a confirmam, rodeado por pessoas que viam nele apenas uma mina de ouro e o exploraram e enganaram porque, além da generosidade, a simploriedade também foi uma de suas marcas registradas, a que o levou a cantar, compor e atuar no cinema, além de se autoelogiar mesmo que na pessoa do Edson.
Daqui por diante não haverá mais Edson para falar de Pelé.
O mundo tratará de reverenciá-lo não só como o Atleta do Século 20, mas por todos os séculos, amém.
Texto de Juca Kfouri, no UOL.