sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Morre Vivienne Westwood, a grande rainha do punk e ícone fashion, aos 81 anos


Morreu nesta quinta-feira a estilista britânica Vivienne Westwood, aos 81 anos. Conhecida pela influência no estilo e na estética punk e por seu ativismo ambiental, ela estava em sua casa, em Londres, segundo um comunicado dos seus representantes.

Westwood nasceu na vila de Tintwistle, em Derbyshire, na Inglaterra, e se mudou para Londres com a família nos anos 1960, com 17 anos. Em 1962, ela se casou com Derek Westwood, com quem teve um filho e de quem herdou o sobrenome com o qual ficou conhecida.

Sua vida começou a mudar em 1965, após um divórcio, quando ela conheceu o então estudante de arte Malcolm McLaren, e passou a se dedicar à moda. Os dois ficaram juntos por 18 anos e tiveram um filho, mas nunca se casaram.

Uma das figuras mais emblemáticas do punk britânico, McLaren foi empresário e um dos principais responsáveis pelo sucesso do Sex Pistols, que desencadeou toda uma cena de música jovem, rebelde e agressiva no país. Na biografia "Vivienne Westwood", ela descreve o relacionamento dos dois como destrutivo, mas feliz, com muitas brigas, e tratando o artista como uma pessoa de personalidade infantil.

"Não choro desde a época em que vivia com Malcolm. Ele precisava me ver chorar todos os dias. Não conseguia sair de casa sem tentar me deixar chateada. Então parei. Sinto inveja das pessoas que conseguem chorar", disse a estilista ao jornal The Observer, em 2014.

Autodidata, Westwood vendia bijuterias e roupas usadas no famoso mercado da Portobello Road antes de abrir sua primeira loja com McLaren, chamada Let It Rock, em 1971. Mas foi a partir de 1974, quando o casal abriu a polêmica e seminal butique Sex, na King’s Road, que eles começam a ganhar destaque na capital britânica.

Além de camisetas com mensagens provocantes, de Westwood e McLaren, a loja também vendia peças consideradas obscenas, incluindo roupas fetichistas. O espaço ganhou fama entre a juventude roqueira, e tinha entre seus frequentadores os integrantes do Sex Pistols, que se reuniram para tocar em 1975 sob mentoria de McLaren —o nome da banda, a propósito, foi escolhido a partir da loja.

Westwood idealizou o visual do grupo, que desencadeou uma revolução musical com o sucesso da música "God Save the Queen" e acabou servindo de vitrine para a loja, depois rebatizada de Seditionaries. O estilo incluía as camisetas com mensagens antissistema e uma pegada DIY —o "do it yourself" ou "faça você mesmo"—, incorporando o sentimento punk da época.

Uma das peças mais conhecidas dessa época é a camiseta estampada com a recriação de uma foto da rainha Elizabeth 2ª com uma tarracha na boca. A roupa foi criada a partir da mesma imagem que estampa a capa de "God Save the Queen".

A estilista foi pioneira e um ícone do estilo que foi tachado pela imprensa como uma afronta aos bons costumes, mas que influenciou nomes como Mick Jagger, Iggy Pop, David Bowie e Debbie Harry. Foi Westwood quem criou o símbolo do movimento anarquista —o famoso círculo com a letra "A".

Com a incorporação do punk pelo mainstream, Westwood e McLaren seguiram novos caminhos e fizeram seu primeiro desfile em 1981, em Londres. No ano seguinte, a estilista se tornou a segunda britânica a desfilar uma coleção em Paris.

Sua primeira coleção depois da separação de McLaren veio em 1985, e a partir dali ela se consolidou como uma estilista de alta-costura. Ao longo das décadas, seus desfiles mostravam referências a vestimentas históricas e faziam paródias das elites britânicas.

Na década de 1990, fez um diálogo entre França e Reino Unido, num movimento chamado de anglomania. São dessa época os desfiles memoráveis de Naomi Campbell usando plataformas de quase 23 centímetros, em 1993, e Kate Moss fazendo topless e tomando sorvete com o rosto inteiro como Maria Antonieta, em 1994.

Westwood viu seu faturamento crescer depois que um vestido assinado por ela apareceu em "Sex and the City - O Filme", comédia romântica lançada em 2008. A peça de seda cor de champanhe, usada pela personagem Carrie Bradshaw, foi responsável por alavancar as vendas da marca Vivienne Westwood em quase 20% de um ano para o outro.

Rainha da estética punk, Westwood era conhecida por seu comportamento livre. Numa de suas histórias mais conhecidas, a estilista foi ao Palácio de Buckingham receber uma homenagem no que parecia um look comportado. Ela deixou claro aos fotógrafos, no entanto, que estava sem calcinha ao rodar sua saia.

"Desde os primeiros dias do punk nos anos 1970, tenho sido uma ativista contra a guerra e pelos direitos humanos", disse ela, em entrevista em 2020. "Nas redes sociais, uso a moda para envolver as pessoas na política. Se as pessoas não estão cientes, como vamos salvar o mundo da corrupção e das mudanças climáticas?"

Militante ambiental, a britânica manifestou apoio a protestos brasileiros em 2013. "As pessoas estão frustradas com o excesso de consumismo e a falta de valores mais profundos. É preciso ir para as ruas para mudar isso", disse a este jornal na época.

Westwood também afirmou, naquele mesmo ano, que o movimento punk foi, no fundo, "uma revolução de marketing". "Ajudou a vender muitos pinos de metal", disse. "E eu me cansei do punk rock quando vi que a única anarquista era eu. No fundo, os caras só queriam se divertir."


Reprodução da Folha de São Paulo

O Pelé que conheci


Contar aqui os maravilhosos lances que vi Pelé protagonizar nos gramados, os incontáveis gols ou os acessos de genialidade sem igual seria como chover no molhado. 

Felizmente, está quase tudo documentado, em filmes, fotos e relatos.

O que não está apenas aumenta o mito, porque transforma também em lenda o melhor de todos os tempos, como os famosos gols de placa no Maracanã, contra o Fluminense, e o da rua Javari, que era para ter sido recriado por Steven Spielberg para o filme "Pelé Eterno", ideia infelizmente arquivada por causa do custo. 

Contarei aqui apenas o que testemunhei quando estive ao seu lado a trabalho ou a passeio, desde a primeira vez em que o vi até a derradeira, depois que nos afastamos, exatamente por ocasião do lançamento do filme, em 2004, quando nos abraçamos calorosamente e achei que ele ficou alegremente surpreso em me ver.

Estive a poucos metros dele pela primeira vez em 1970, na redação da revista "Placar". 

Tenho a foto, assim meio de papagaio de pirata, mas não fomos além de uma apresentação formal e um aperto de mãos. 

Pelé não era para meu bico, era para o de Michel Laurence. E não foi até 1993, quando o entrevistei para "Playboy", em Cuenca, no Equador.

Daí em diante, e durante os oito anos seguintes, tivemos uma relação muito próxima, a ponto de tê-lo indicado e feito o meio de campo com Fernando Henrique Cardoso para que ele viesse a ser ministro extraordinário do Esporte na primeira gestão do tucano e a ponto de ele me pedir que escrevesse sua biografia autorizada. 

Obra que não escrevi porque, em junho de 2001, Pelé participou do que ficou conhecido como o "pacto da bola", a reaproximação dele com João Havelange e Ricardo Teixeira. Ambos estavam de joelhos, asfixiados pelas CPIs do Futebol e da CBF, quando, por motivações meramente comerciais comandadas por um dos sócios de Pelé, o Rei lhes deu o oxigênio para que seguissem em em suas reinações por mais uma década, até que tivessem de renunciar aos seus postos na Fifa, no COI e na CBF. 

Então, decepcionado, perguntei a ele como escrever o capítulo sobre "o dia em que Edson traiu Pelé". 

O Rei não entendeu, achou que era radicalismo, que poderíamos discordar sem chegar a tal ponto, mas não era assim que eu via.

Tempos depois, em maio de 2002, sob o pretexto de me mostrar a letra de uma canção que havia feito, ele me mandou um bilhete dizendo que "irmãos também brigam: às vezes por ciúmes e outras por amor. Uns perdoam e outros não".

Entre a entrevista em Cuenca e a dura conversa que tivemos quando anunciei que desistia de fazer o livro, vi Pelé atuando nas mais diferentes situações, sem nada que o desabonasse, ao contrário. 

A começar pela entrevista.

A edição brasileira da revista "Playboy", que eu então dirigia, completaria 18 anos em 1993, atingiria sua simbólica maioridade, e decidiu romper a tradição de jamais repetir uma entrevista. 

É claro que o escolhido para a ruptura foi ele, o Rei.

Marcada para ser feita no Guarujá e em seu apartamento em São Paulo, e desmarcada duas vezes, acabou por acontecer no Equador, onde Pelé estava para comentar a Copa América para a Rede Globo.

Eu já havia arquivado a ideia quando recebi uma surpreendente ligação dele propondo que eu fosse encontrá-lo em Cuenca: "Passo o dia sem fazer nada, esperando os jogos da noite", justificou. 

Na primeira das combinadas duas sessões de seis horas cada uma, sem interrupções, ainda nos preâmbulos, perguntei se fazia tempo que ele, conhecido chorão, não chorava. 

Respondeu que dias antes havia chorado ao falar com a mãe, Celeste, por telefone.

Ao começar a contar por que, desabou em prantos. 

O motivo era prosaico, mas ao se recompor, o Rei estava nu, desarmado, diante do entrevistador. 

A primeira sessão foi tão rica em revelações que a segunda serviu apenas como checagem. 

Achei que era eticamente correto perguntar a ele, embora tudo estivesse devidamente gravado, se mantinha o que dissera, tal a gravidade de algumas revelações, como a denúncia de corrupção na CBF ou até mesmo os detalhes de seu relacionamento com a apresentadora Xuxa.

Candidamente ele me olhou gravemente e perguntou: "Você não disse que é uma entrevista especial, nunca feita pela revista? Então tem mesmo de ser especial". 

Nas chamadas de capa da festiva edição de 18 anos, uma se destacava: "Saiba por que Pelé diz onze vezes 'eu nunca falei disso antes'". 

A repercussão da entrevista foi tal, reproduzida em diversas edições internacionais da Playboy que, por retaliação, e para perplexidade dos americanos, João Havelange o impediu de participar do sorteio para a Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos, o mercado que Pelé havia aberto quase 20 anos antes ao ir jogar no Cosmos de Nova Iorque.

Ricardo Teixeira nos processou e para minha alegria e admiração, embora, repita-se, tudo estivesse gravado, Pelé não só não se eximiu do que dissera com o clássico "não foi bem que eu quis dizer" ou "fui mal interpretado", como fez questão de isentar o entrevistador, ao dizer em juízo que este "não fez nada mais do que reproduzir fielmente o que eu disse". 

Nasce daí, mais que a velha e obrigatória admiração pelo jogador, a admiração pelo homem. 

Passamos a nos ver regularmente, fizemos alguns trabalhos juntos como a "Feira Internacional do Esporte", promovida pela Lemos Britto Congressos e Feiras, com apoio da revista "Placar", que eu também dirigia. 

No ano seguinte, em 1994, Fernando Henrique Cardoso, na euforia da conquista do tetra, e na esteira do sucesso do Plano Real, foi eleito presidente da República. 

Na Copa dos Estados Unidos, que Pelé comentou para a Globo, não me lembro exatamente se em Detroit ou em Dallas, o Rei me fez pagar um enorme mico.

Combinamos uma entrevista ligeira no hotel em que ele estava hospedado, almoçamos juntos no restaurante do hotel e, na saída, ele me perguntou se eu estava de carro para ir ao treino da Seleção Brasileira. Respondi que não, que tomaria um táxi e ele reagiu, dizendo que mandaria me levar. Aceitei e desci para portaria. O carro que me levaria era simplesmente uma daquelas compridas limousines cafonas e chamativas, com vidros escuros. Tentei escapar, mas ele, às gargalhadas, não permitiu. Disse que iria comigo, de fato entrou no carro, só que quando chegamos e saltei em frente ao campo do treino, Pelé ficou no trambolho e mandou o motorista ir embora, me expondo à situação de ter de explicar para todos os jornalistas que viam a cena o que acontecia, correndo ainda o risco de passar por mentiroso.

Ao final de 1994, FHC me convidou para assumir a Secretaria de Esportes do governo federal. Recusei e propus que ele convidasse o Rei. O presidente pediu que eu fizesse o meio de campo e organizasse um encontro sigiloso entre ambos. Foi quando pude de alguma forma me vingar do mico da limousine.

Combinamos um café da manhã em minha casa para que o Rei e o presidente se encontrassem e se conhecessem. Mas como entrar com Pelé incógnito, num prédio de apartamentos? Propus que ele fosse no porta-malas de meu carro, mas, é claro, Sua Majestade não topou. O jeito foi deitá-lo no banco de trás e cobri-lo para entrar na garagem. 

Ao tomarmos o elevador, porém, um jovem que saía com sua bicicleta nos viu. Não era novidade a presença de gente do futebol em minha casa —Sócrates a frequentava amiúde—, mas eis que meia hora depois chega o presidente eleito, com uma caravana de jornalistas a segui-lo. 

A desculpa oficial era a de que ele apenas estava visitando um ex-aluno e cumprindo a promessa feita caso ganhasse a eleição. 

O interfone não parava de tocar na cozinha até que decidi atender e ouvi de um companheiro se era verdade que o Pelé estava em minha casa. Respondi com uma evasiva: "Você não acha que basta o presidente?". 

Depois, quando FHC foi embora e me pediu para falar com os meus colegas é que eu soube que o menino da bicicleta ao voltar para casa e ver todo aquele aparato quis saber o que estava acontecendo e ouviu que se tratava da presença de FHC em minha casa, provavelmente para me convidar para ser ministro. Foi ele então que o jovem informou: "Que FHC nada, é o Pelé que está aí. Eu vi".

Neguei que tivesse sido convidado aos meus colegas e sai novamente pela tangente em relação à presença de Pelé: "Não basta o presidente, vocês ainda querem o rei?", repeti. 

Minutos depois sai com meu automóvel para ir para Editora Abril e uma repórter do SBT, sozinha, me esperava. Esperta, desconfiada e persistente, ela jurava que Pelé estava no carro. Deixei-a ver por dentro, até abri o porta-malas e fui embora. 

Só horas depois, no chão do carro de minha mulher, coberto, Pelé pôde sair de minha casa. 

O Pelé ministro foi um caso à parte. 

Escrevi do discurso de posse a quase todos os demais que ele levou no bolso e raramente leu, por preferir improvisar.

E vi cenas impagáveis, como a que atrasou a sua posse em mais de uma hora, porque ele atendeu à fila com cerca de 100 funcionários do hotel em que nos hospedamos exatamente na hora em que estava prevista a solenidade, única, exclusiva, no Palácio do Planalto, também do único ministro cujo anúncio surpreendeu o país, segredo guardado por dias sem fim. 

Pelé passara dois dias no hotel prometendo que autografaria o que lhe pedissem, mas só na hora de ir embora. E assim foi feito na garagem, quando os empregados com seus filhos, bolas, camisas e blocos, foram atendidos pacientemente, com direito a ter o nome de cada um na dedicatória. "Pelé, o presidente está esperando", diziam aflitos os seus assessores. "Ele pode esperar. Eu que não posso não cumprir o que prometi", respondia calmamente o Rei. 

Tempos depois, o vi recusar, ao telefone, três datas propostas por Bill Clinton para um encontro na Casa Branca. "Você ficou maluco?", perguntei. "Maluco por quê? Ele é que quer me conhecer. Eu já conheci uns sete presidentes dos Estados Unidos e três Papas", respondeu. Na lista dos presidentes norte-americanos, ele incluía Robert Kennedy.

Pelé e Clinton acabaram se conhecendo só no Rio de Janeiro, quando o político visitou o Brasil e ambos fizeram embaixadinhas numa favela carioca. 

Pelé era assim. Capaz de esnobar o homem mais poderoso do mundo, mas incapaz de não atender o cozinheiro do hotel, sua mulher e seus filhos. 

Ou capaz de um dia me telefonar e pedir para que eu agendasse um encontro dele com Dom Paulo Evaristo Arns: "Guru-mór (andou me tratando assim...), soube que você se dá bem com Dom Paulo e eu queria marcar uma audiência com ele. Você faz isso pra mim?", quis saber.

"Claro que faço, mas você não precisa de mim para isso. Basta sua secretária ligar para a Cúria Metropolitana e tenho certeza de que ele irá onde você marcar", devolvi. 

Ao que ouvi dele: "Não, guru-mór, eu é que irei onde e quando ele marcar". 

Assim foi feito. 

Pelé era capaz de surpreender os próximos como surpreendia seus marcadores em campo.

Um belo dia recebi em meu escritório um emissário de Pelé com um pequeno pacote e um protocolo que eu tive de assinar na frente do portador. 

Ao abri-lo, vejo um relógio antigo, de bolso, de prata, com a efígie do busto de Pelé em alto-relevo na tampa e de corpo inteiro no verso. Internamente, na tampa, uma dedicatória: "Ao Juca, com agradecimento, seu irmão Edson Pelé".

Não entendi nada, não era nenhuma data especial, liguei para Celso Grellet, sócio dele, que me explicou que Pelé ficara sabendo que eu colecionava relógios e quis me presentear. 

Liguei também para ele, agradeci e a vida seguiu até que no dia 31 de dezembro daquele ano, 1995, Pelé ligou para desejar feliz ano novo e perguntou se eu estava "cuidando bem do relógio".

Respondia que sim, que o mantinha guardado na gaveta de meu criado-mudo, quando fui interrompido: "Então você não está cuidando bem. Este relógio, que ganhei de um fã relojoeiro suíço é único e, com a cópia da Taça Jules Rimet, era uma das duas coisas que eu guardava no cofre de meu banco", informou. 

Sim, eu imaginava que o relógio era daqueles presentes para poucos, supunha que houvesse, sei lá, dez exemplares, talvez 30, mandados fazer pelo Rei. Mas, não! Era filho único de mãe solteira. Hoje em dia está tão bem guardado que até me esqueço de onde.

Outra surpresa dele foi aparecer, sem avisar, na festa de relançamento da "Placar", no Ginásio do Ibirapuera, também em 1995, evento para o qual, para não constrangê-lo, nem o convidei. 

Pelé sempre foi assim. Lealmente desinteressado na relação com os amigos.

Embora, em regra, com a exceções que a confirmam, rodeado por pessoas que viam nele apenas uma mina de ouro e o exploraram e enganaram porque, além da generosidade, a simploriedade também foi uma de suas marcas registradas, a que o levou a cantar, compor e atuar no cinema, além de se autoelogiar mesmo que na pessoa do Edson. 

Daqui por diante não haverá mais Edson para falar de Pelé. 

O mundo tratará de reverenciá-lo não só como o Atleta do Século 20, mas por todos os séculos, amém.


Texto de Juca Kfouri, no UOL

Juro que em 2023, ano dos meus 80 anos, largarei velhos costumes


Todo fim de dezembro, prometo a mim mesmo ser outra pessoa no ano que virá. Revejo os defeitos que me enxovalham a autoimagem e dificultam a minha existência.

Para não transformar a coluna de hoje num rosário de lamúrias, prezada leitora, vou me restringir aos defeitos publicáveis, não falarei daqueles que relego às catacumbas da consciência.

Meu pai era contador, dizia preferir o inferno depois da morte para ficar livre dos papéis. Talvez por traço genético, sempre tive problemas com a papelada, nem a internet me libertou dela. Quando um artigo científico ou texto literário impresso cai em minhas mãos, por irrelevante que pareça, coloco sobre a mesa de trabalho para ler ou reler mais tarde, mesmo sabendo que envelhecerá naquele local.

Se tivesse lido 10% dos livros que se acotovelam nas estantes e das revistas científicas empilhadas entre eles, seria um médico de notório saber e o homem culto que sempre desejei ser. As prateleiras abarrotadas no escritório de casa olham para mim como um anátema bíblico que vocifera: "Lembra-te homem: és ignorante e da ignorância jamais te libertarás".

Planejo, então, doar os livros adormecidos há décadas, comprados para atender a interesses que perdi ou que chegaram a mim porque me foram dados por pessoas queridas ou pela incapacidade de me separar deles. Apesar dos fracassos anuais em realizar essa tarefa, juro que agora será diferente.

A mesma dificuldade tenho com as roupas que disputam centímetro a centímetro o espaço no armário. Órfão de mãe desde a tenra infância, aprendi a pregar botões, a fazer pequenos reparos, a manter passadas as camisas e as calças e a engraxar os sapatos até o couro brilhar.

Eles me retribuem com a longevidade: tenho calças e camisas com 20, 30 anos e até mais. Muitas saíram de moda, são usadas quase nunca, mas permanecem ao alcance de meus olhos para deixar claro que sou um desses privilegiados que acumulam mais do que o necessário.

A despeito das tentativas infrutíferas dos anos anteriores, prometo que desta vez vou doar as roupas que passo meses sem vestir. Mas cada peça traz uma recordação: uma viagem, a pessoa que me presenteou, um momento de vida, a qualidade da confecção, a beleza da estampa ou outra desculpa qualquer para disfarçar o apego despropositado do acumulador.

Tenho mais amigos do que tempo para conviver com eles. Todo ano prometo visitá-los, convidá-los para vir em casa, sair para tomar cerveja. Promessas vãs, embora reiteradas toda vez que um deles se vai, acontecimento cada vez mais frequente à medida que envelhecemos, porque a vida é um palco em que o cenário muda a toda hora e os personagens se retiram um a um, condenando o espectador desatento à
perplexidade da solidão.

Cinquenta anos de medicina me ensinaram que o corpo é nosso bem mais precioso. Você, caríssimo leitor, perguntará: "O idiota levou meio século para descobrir o óbvio?". Claro que não, mas demorei mais do que devia para agir como quem adquiriu a consciência de que a atividade física é essencial para uma vida mais plena e, possivelmente, mais longa.

Comecei a correr maratonas quando fiz 50 anos. No início, quis provar a mim mesmo que se conseguisse completar 42 quilômetros, não me sentiria velho. Continuo a corrê-las com o mesmo objetivo e para evitar as condições patológicas que afligem homens da minha idade, manter a vitalidade para trabalhar e para as atividades que sempre tive.

A disciplina que dediquei aos treinamentos para ter corrido cerca de 25 maratonas permitiu que eu completasse a última delas em outubro passado, aos 79 anos. Apesar de reconhecer o privilégio de chegar a essa idade nessas condições, quando muitos de meus contemporâneos já se foram, enquanto outros ainda resistem, mas cheios de limitações, não estou satisfeito.

Você, leitora, vai me achar ridículo, absurdo, mas carrego a frustração de que o excesso de trabalho, a indisciplina e a preguiça nunca me permitiram fazer uma prova bem preparado.

Chego ao fim destruído, com ímpetos de deitar no asfalto e chorar de exaustão. Em 2023, farei 80 anos, pretendo treinar com a regularidade exigida para cruzar a linha de chegada ainda com disposição para continuar correndo. É, talvez eu seja ridículo mesmo.


Texto de Druazio Varella, na Folha de São Paulo

sábado, 17 de dezembro de 2022

As crianças têm uma única responsabilidade: sustentar a magia do Natal


Minha família já está em polvorosa organizando a tradicional e inescapável ceia natalina. Assuntos de grande importância pipocam no grupo de WhatsApp, todos relacionados à comida. Nosso pequeno núcleo familiar preza por uma mesa farta para suprir a falta que se manifesta nesta época do ano: não temos crianças na família.

Natal, essa época tão lúdica e nostálgica, na presença de crianças é completamente diferente. Estamos falando de um pessoalzinho que realmente acredita que um senhor saiu do Polo Norte sobrevoando todos os lares do mundo em um trenó, e que conseguiu, na surdina, invadir sua casa para deixar-lhe alguns presentes.

Presentes esses recebidos com euforia excepcional. Lembro da sensação de tirar de uma caixa um Nintendo 64. Hoje, recebo de bom grado um kit de sais de banho. É por isso que ouso dizer que as crianças têm uma única responsabilidade: sustentar a magia do Natal.

Nem eu nem meus irmãos tivemos filhos —ainda? E mesmo assim, neste ano, decidi presentear as crianças da minha família. Não sabia nada sobre a infância de meus pais e de minha avó. Aproveitei a intensa comunicação sobre o menu natalino para perguntar sobre as memórias mais felizes que guardam dessa época.

Minha mãe ganhou um concurso literário quando tinha dez anos e o prêmio era uma caneta tinteiro de ouro. A maior alegria do meu pai era ir nas matinês do Cinema Pax, aos domingos, assistir ao desenho "Tom & Jerry". Minha avó era apaixonada por seu boneco Bob, com corpo de pano e membros de porcelana, que a acompanhava em todos os lugares e nunca perdeu uma lasquinha sequer, tamanho o cuidado que ela tinha com ele.

Minha irmã nos perturbava com um arco e flecha de brinquedo. Gostava de se esconder atrás dos móveis e esperar o tempo que fosse preciso até alguém passar pela sala e tornar-se seu alvo. Meu irmão, que tem síndrome de Asperger, sempre gostou de brincar sozinho, imerso em mundos imaginários, mas era aficionado por jogos de tabuleiro, que permitiam uma conexão com a gente.

Minha lista de compras já está pronta. Agora só preciso saber onde encontrar uma caneta tinteiro, miniaturas de "Tom & Jerry", um boneco de porcelana, um arco e flecha, e escolher um jogo de tabuleiro. É o melhor presente que posso dar à pequena Manuela, que amava o Natal até às frutas cristalizadas: uma noite feliz.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

Dezembro é foda


Quando eu era criança, meus avós maternos achavam dezembro um mês tristíssimo. Diziam que já tinham sofrido a morte de muitos amigos e parentes –incluindo a mais impensável de todas, a de um filho — e que, por isso, não conseguiriam comemorar mais nada na vida.

No entanto, celebravam jogos do Palmeiras, Copas do Mundo, aniversários, Páscoa. Era só dezembro que pegava pra eles. E como pegava! Meu avô tinha o "troço" (que é igualzinho ao meu "negócio", mas agora sabemos que se chama crise de pânico), e minha avó ficava com questões intestinais agudíssimas, soltava uma quantidade invejável de palavrões portugueses, contava a famigerada história de que, por conta de uma promessa, nunca mais poderia dizer a frase "estou com preguiça" (fazia uma mímica pra gente entender) e, por fim, chorava e ia dormir.

Na adolescência, notei que ocorriam fenômenos parecidos com meus pais. Era só chegar o final do ano para eles ficarem à flor da pele: "Dezembro é foda!". Evitavam sair de casa por causa do trânsito insuportável e do comportamento "apressado e violento" das pessoas; faziam as compras no começo de novembro para não verem os enfeites nos shoppings "sem saber direito o motivo"; e, de repente, todos aqueles amigos mais importantes não eram "exatamente como alguém da família", todos os parentes mais próximos não eram "exatamente o que podemos chamar de pessoas amigas".

Desde que tenho lembranças dos meus Natais, passei todos desejando que minha família pudesse aumentar. Filha única de pais separados, eu também era neta única e, obviamente, sobrinha única.

Sonhava que as poucas pessoas ali reunidas fossem mais tolas e emotivas. Eu fui criada numa espécie de hub do cinismo e do deboche. A gente tirava sarro de tudo e, sobretudo, de nós mesmos. Se passássemos a ceia com uma tia qualquer, ainda que por meia hora (meu avô detestava sair de casa), tal passeio rendia meses de deliciosas maldades e infinitas imitações.

A mordacidade, como tática de sobrevivência no mundo e no meu trabalho como roteirista de humor, é um talento vantajoso e recreativo em todos os outros meses do ano. Mas é absolutamente inútil e cruel em se tratando de dezembro. Ser uma pessoa irônica, em dezembro, é complicadíssimo. O mundo aparentemente está acreditando em absurdos como o amor e a fé, e você está lá, sozinha, montando esquetes que misturam libertinagem com escatologia em sua cabecinha doente.

Depois que meus avós morreram, minha mãe piorou muito. Passei a notar em seu rosto aquele semblante heroico de quem internaliza o mantra: "Vai, não adoece não, mais um ano! Força! Você é pobre demais pra abraçar a depressão!".

Hoje fica claro para mim que sou fruto de uma família que ria muito e não aparentava grande tristeza, mas era sim deprimida. E sei disso porque tenho a mesma doença. Nada grave que os paralisassem no resto do ano –apenas em dezembro. Nada grave que me bote de cama nos outros meses do ano –somente em dezembro. Eu tentei correr. Eu sou a única maçã da árvore da depressão da minha família que fez de tudo para cair muito longe. Eu rolei, dancei, capotei, me lancei, me esfolei inteira. Mudei de povoado, de arredores, de nome, de voz. E também fiz muita terapia. Apodreci e voltei verde e apodreci e voltei verde. Um looping ensimesmado e repetitivo de negação genética, cognitiva, espiritual, existencial e psicológica.

E isso tudo –ai, ai, dezembro é mesmo foda e já estou chorando– só me deixou ainda mais deprimida. (Saudade da angústia de não pertencimento que nos unia. Tinha sim muito amor, muita fé e muito Natal).


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

sábado, 10 de dezembro de 2022

José Simão e as manifestações antidemocráticas diante de quartéis


E a mãe de uma amiga tá acampada em frente ao quartel: "A velha tá louca? Tá! A velha tá histérica? Tá! Mas tá comendo e bebendo de graça, então deixa a velha lá". Rarará!


Trecho da coluna do José Simão na Folha de São Paulo. 

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Monumentos de Porto Alegre



– Afluentes do Guaíba (estátuas industriais italianas, 1866). Jardim do Dmae – Rua 24 de Outubro nº 200 (Moinhos de Vento).


– Mãe Oxum (Gilberto Silveira, 1999). Avenida Guaíba nº 727 (Ipanema).


– Índia Obirici (Nelson Boeira Fäedrich e Mário Arjonas, 1975). Viaduto Obirici (Passo D’Areia).


– Monumento à Literatura Brasileira / Carlos Drumond de Andrade e Mario Quintana (Leonardo Santana, 2001). Praça da Alfândega (Centro Histórico).


– General Osório (Hildegardo Leão Velloso, 1933). Rua dos Andradas, 1095 (Centro Histórico).


– Painel Recortado Homens e Touros (Xico Stockinger, 1972). Praça Dom Sebastião (Independência).


– Painel Loureiro da Silva (Vasco Prado, 1970). Viaduto Loureiro da Silva (Centro Histórico).


– Monumento a Júlio de Castilhos (Décio Villares, 1913). Praça da Matriz (Centro Histórico).


– Monumento ao Expedicionário (Antônio Caringi, 1957). Parque da Redenção (Farroupilha).


– Chafariz Imperial (Carrier-Belleuse, 1866). Parque da Redenção (Farroupilha).


– Monumento aos Açorianos (Carlos Tenius, 1974). Avenida Loureiro da Silva n° 1.155 (Centro Histórico).


– O Laçador (Antonio Caringi, 1958). Avenida dos Estados nº 1.175 (São João).



Fonte: Jornal O Sul - https://www.osul.com.br/porto-alegre-tem-visita-guiada-e-iluminacao-especial-em-12-monumentos-ate-domingo/

sábado, 26 de novembro de 2022

Isabel Salgado era uma divindade olímpica com sotaque carioca


Concordo com o deposto, o ano deveria ter acabado em 31 de outubro, após o fim das eleições. Só que não. Dois meses ainda nos separam do ano que vem, sendo que novembro resolveu pesar.

Escrevo na pasmaceira de mais uma infecção de Covid, minha terceira na pandemia. Gabaritei todas as ondas. O efeito das quatro doses de vacina é notável, caí com coriza, dor de cabeça e garganta, antes de positivar. Estranhíssimo. Achei que fosse psicológico, mas parece que já era o corpo agindo por antecipação. Quando amanheci bem, acusou no teste. Desde então, estou curada e contagiosa.

Na manhã do famigerado teste, a casa acordara cedo com o telefonema do fotógrafo Fernando Young, amigo e parceiro casado com Carol Solberg, filha de Isabel Salgado. A sogra adorada acabara de ser intubada na emergência do hospital Sírio Libanês, em São Paulo.

Minha família já enfrentou um transplante de medula e tem experiência com moléstias graves. Fernando pedia ajuda. Isabel havia dirigido a Dutra e chegado à cidade no dia anterior. Teve febre à tarde, foi atendida em outro hospital, voltou para casa e piorou à noite. Ajudamos no que foi possível, até receber a inadmissível notícia, na madrugada seguinte. Isabel tinha cinco anos a mais do que eu.

Havíamos nos encontrado um mês antes, na casa de Carol e Fernando. Estar com Isabel nunca foi corriqueiro. Era como se aproximar de uma divindade olímpica com sotaque carioca. As mãos imensas, que sempre me chamaram a atenção; a pele morena, boa; o cabelão crespo repuxado no rabo de cavalo, os ossos largos e o sorriso dentuço. Isabel parecia um garoto grande, embora fosse muito feminina. Era praiana, direta, humorada, inteligente e atraente como um ímã.

Ela foi um acontecimento quando surgiu. Traumatizados pela derrota da seleção para os Azzurri, na segunda fase do Mundial de 1982, atravessávamos o meio da longa seca de 24 anos que separou o tri do tetra.

Só podia ser mau olhado. A superinflação somada ao estertor da ditadura, um sentimento de fracasso coletivo, contaminando até as chuteiras. Para a molecada, o basquete, mas principalmente o vôlei, vieram resgatar o amor-próprio da nação esportista, e com uma novidade e tanto, a presença das mulheres.

O governo militar surfou nas glórias da Copa de 1970. O futebol virou símbolo do "país que vai para a frente" e adotou a hierarquia dos quartéis na concentração e nos treinos. Passada uma década de continência, com o advento da abertura, o livre pensar aflorou entre atletas como Sócrates e Casagrande. Junto com Wladimir, Biro-Biro, Zé Maria e Zenon, eles moveram a Democracia Corinthiana, gestão igualitária do clube, que vestia com a camisa das Diretas Já.

Filhas da mesma democracia emergente, as garotas do vôlei já vieram ao mundo sem papas na língua, Isabel mais do que todas. Criada no Arpoador do Circo Voador, amiga do pessoal do cinema e mãe de cinco filhos, três dos quais de Rui Solberg, lenda viva do Rio de Janeiro mítico dos anos 1970, ela era o elo entre esporte e cultura, política e liberdade, raça e graça, a bossa nova e o BRock. Isabel foi a nossa Leila Diniz.

E, como se não bastasse, esse novembro chuvoso ainda nos roubou a Gal. A Gal. Não escrevi sobre a partida dela nem sobre a do , em agosto. De vez em quando, o que resta é o silêncio. Mas faço aqui, nessa página sobre a Isabel, minha despedida do Oscar dos dois. Que dezembro não me invente moda.

Conheci o Jô com sete anos de idade, no Teatro da Praia. Empoleirada no balcão vazio —o monólogo era impróprio para menores, mas meus pais me davam a liberdade—, eu o vi em cena, vestido de coração. Era um enorme coração pulsante, que ia do pescoço aos pés e de uma mãozinha à outra; a barriga protuberante no meio. É a memória mais antiga que guardo dele, resumo mais do que perfeito do que era o Jô. Depois, com os livros, desenvolvemos uma amizade a distância, comigo fingindo que era normal conversar com ele no telefone.

A Gal me flechou no "Fa-Tal", LP fetiche de infância, entre os discos dos meus pais. Quando acordei para a vida, o píer e as dunas já não estavam mais lá e só fui vê-la ao vivo no "Balancê". E amava tanto "Vapor Barato" que a cantarolei num filme.

Por causa de "Terra Estrangeira", Gal voltou a incluir a música no repertório. Nunca me esqueci do delírio que me acometeu ao ouvi-la puxar o "Vapor" em cena, delírio de que a musa cantava para mim. Entre as tantas belezas dessa voz, "Vapor Barato" está no topo da minha parada, junto com "Mãe", do Caetano, canção que abria o show dirigido por ele para a parceira da vida inteira.

Foi entregar a crônica para saber de Erasmo. Sinceramente... Ou Deus anda caolho ou é muito ruim de pontaria.


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Obrigada, Bituca!


13 de novembro de 2022, passa um pouco das 19h.

Depois de quase seis meses de espera, cerca de sessenta mil fãs recebem, no Mineirão lotado, Milton Nascimento, a voz de Deus. Como diria meu amigo Eudes Jr., uma Entidade.

Nada é exagero para você, Bituca.

É a última sessão de música.

Ponta de areia, ponto final.

Logo no início, Bituca, muito emocionado, dedica seu último show à amiga Gal Costa, que morreu há quatro dias.

"Imagina o tamanho do presente que é o show anunciado como o último da carreira de ninguém menos que Milton Nascimento ser dedicado a você", eu me pego pensando.

Milton agradece ao público por fazer sua vida tão linda. É toda a beleza que você espalha neste mundo voltando para você, Bituca. Obrigada por fazer as nossas vidas tão lindas. Tão melhores.

Não sei exatamente em qual momento ele diz que Elis é o amor da sua vida. Talvez tenha sido antes de Canção do Sal.

Quem assistiu ao musical Os sonhos não envelhecem certamente ouve, ao longe, a maravilhosa Elá Marinho próxima a um piano imaginário.

Trabalhando o saaaaaal

É amor, o suor que me sai

Vou viver cantando o dia tão quente que faz

Um dia muito quente mesmo. Um tempo tão bonito que se vê ao céu do Mineirão, distante das chuvas que inundaram a cidade nos últimos dias.

Deixo tudo, deixo nada/ Só do tempo eu não posso me livrar/ E ele corre para ter meu dia de morrer/ Mas se eu tiro do lamento um novo canto/ Outro dia vai nascer

Tão impossível imaginar um mundo em que não existisse a música de Milton, a voz de Milton. Mas em algum momento, escuto, ao menos acho que escuto, ele dizer que nunca se despedirá da música.

"Parece que é o Toninho Horta entrando ali". É. E Wagner Tiso, Beto Guedes, Lô Borges. É o Clube da Esquina reunido na nossa frente. Que dia lindo para estar viva.

Há um grito diferente nas vozes que entoam Não precisam mais temer/ Não precisam da solidão/ Todo dia é dia de viver

Sabemos o que está sendo cantado hoje, 13 dias depois das eleições presidenciais.

Atrás de mim, de tempos em tempos, dois homens levantam uma faixa com os dizeres "Ditadura nunca mais". Mostram para as pessoas a sua frente, são aplaudidos. Mostram para as pessoas atrás, são aplaudidos. A cada vez, a iniciativa é acompanhada de pessoas exaltando o presidente eleito, Lula. Alguém visivelmente irritado se levanta e sai.

"Vai tocar Paula e Bebeto e eu queria perguntar para esse moço o que é que ele entende da música", penso.

E toca. O gênio da voz Zé Ibarra nos lembra Gal.

Qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor valerá.

Existe uma beleza peculiar em todas as coisas que se vivem pela última vez. Milton foi tão generoso ao nos informar sua intenção de se despedir dos palcos. Em avisar que podia ser a última chance de participar de algo tão importante para tantos de nós, mas que podia não parecer urgente.

Viver é urgente.

Estive no show do Milton no mesmo Mineirão em 2019. Meu último show pré-pandemia, pré-maternidade. Uma outra pessoa, em um outro mundo.

Naquele dia Milton não tocou Travessia, sua parte mais importante dentro de mim.

Hoje ele vai tocar, tem que tocar.

Chegamos a Maria, Maria. Fogos, despedida. Uma pessoa atrás de mim se desespera também. Volta aqui pelo amor de Deus, Milton. E toca Travessia.

Vem um bis com Coração de Estudante. E um "viva a democracia!" que sabemos muito bem o que quer dizer.

Tem que ser agora. Só pode ser.

Quando você foi embora, fez-se noite em meu viver…

Sim, Milton. É difícil acreditar na sua despedida. Mas ela não faz noite em nossas vidas. Vamos chorar, mas temos muito que viver, embalados pelo seu legado.

E de todo modo, você não termina com Travessia. Termina cantando que gosta de poder partir sem ter planos e que melhor ainda é poder voltar quando quiser.

Estaremos aqui. Para encontros e despedidas.

Obrigada, Bituca! Obrigada por existir, por dividir a sua existência. Obrigada por não desistir, como disse Samuel Rosa. Obrigada pelo seu viva à democracia em um dos momentos mais necessários da nossa história. Por não se omitir, por seguir cantando a resistência. Suas músicas nos pegam pelas mãos e fazem com que a gente não desista também. Mesmo quando a gente custa a acreditar nessa estranha mania de ter fé na vida.


Reprodução do blogue Morte sem Tabu, na Folha de São Paulo

Milton homenageia Gal e reúne o Clube da Esquina em show de despedida em BH


O cantor e compositor Milton Nascimento abriu seu show de despedida dos palcos na noite deste domingo em Belo Horizonte homenageando a cantora Gal Costamorta no último dia 9.

Saudado por Caetano Veloso por seus "tons geniais", chamado de "único" por Cat Stevens e de "grande irmão" por Paul Simon, Milton encerrou sua turnê "A Última Sessão de Música" aclamado por uma multidão de fãs, nem tão famosos, mas não menos entusiasmados.

"Esse show é dedicado à minha querida Gal Costa", disse Milton, ao final da primeira música, "Ponta de Areia". Antes do início da apresentação, uma foto de Gal abraçada a Milton havia sido exibida nos telões do palco, assim como um vídeo dos dois cantando "Paula e Bebeto".

O show no Mineirão marca o fim da turnê "A Última Sessão de Música", que passou por outras seis capitais brasileiras e países como Estados Unidos, Portugal e Itália.

A escolha de Minas Gerais para a última apresentação também é uma homenagem de Milton ao estado que o inspirou. Não há que se falar de Minas sem Milton e vice-versa. Carioca de nascimento, o cantor foi criado no estado, onde conquistou a eternidade. O show no estádio teve lotação máxima, total de 57 mil ingressos vendidos.

Depois do anúncio de surpresas para o show, surgiram no palco Wagner Tiso, Toninho Horta, Beto Guedes e Lô Borges, relembrando o Clube da Esquina, álbum antológico do qual participaram, entoando "Para Lennon e McCartney" e "Um Girassol da Cor de Seu Cabelo".

Samuel Rosa também apareceu para cantar "Trem Azul". "Baita privilégio estar aqui. Sua música transforma as pessoas e o país", disse o fundador do Skank.

O repertório da noite, em sua maior parte, reuniu músicas compostas dos anos 1960 aos 1980. A abertura foi com "Ponta de Areia", inspirada em reportagem sobre a desativação de uma ferrovia que ligava Minas ao litoral sul da Bahia. A plateia cantou alto.

Cartazes com a frase "obrigado, Bituca" foram distribuídos aos espectadores na entrada do estádio e mostrados ao longo da apresentação. O público era uma mistura equilibrada de fãs mais jovens e mais velhos, que se embalaram quando Milton tocou "Amor de Índio", de Beto Guedes, e depois "Cais" e "Tudo o que Você Podia Ser".

"San Vicente" foi entoada por Zé Ibarra, músico também encarregado da abertura do show. E o coro do Mineirão voltou em seguida, com Milton cantando "Clube da Esquina 2" e "Nada Será Como Antes".

A instrumental "A Última Sessão de Música", que dá nome ao show, veio em seguida. Um breve momento de calmaria que antecedeu outro clássico, "Fé Cega, Faca Amolada" emendada com "Paula e Bebeto".

Milton e banda seguiram o show com "Calix Bento" e a cantiga popular "Quem me Ensinou a Nadar", depois "Cio da Terra", parceria com Chico Buarque.

"A próxima música dedico a todos vocês", disse Milton ao público antes de começar a cantar "Canção da América", com o verso "amigo é coisa para se guardar do lado esquerdo do peito". A sequência foi com "Caçador de Mim" e "Nos Bailes da Vida".

"Bola de Meia, Bola de Gude" veio já com quase duas horas de show. Milton se emocionou depois de anunciar a banda. A plateia gritava "Bituca, Bituca" quando o cantor iniciou "Maria, Maria". Uma sequência de fogos de artifício coloriu o Mineirão enquanto a música era encerrada.

As cortinas foram fechadas, mas reabertas para mais uma participação de Wagner Tiso ao piano, para tocar "Coração de Estudante". "Viva a democracia", disse Milton ao final da música, ovacionado pela plateia.

E o show continuou, agora com Toninho Horta novamente no palco para "Travessia". "Encontros e Despedidas", encerrou a noite.

Antes de deixar o palco, Milton foi levantado pelo filho Augusto Nascimento e colegas de equipe para uma saudação ao público. O cantor voltou a se emocionar muito. Noite mágica no Mineirão.


Reprodução da Folha de São Paulo

domingo, 6 de novembro de 2022

Lula destronou Bolsonaro, mas tem tarefas hercúleas adiante e pode acabar mal


Lula é o grande vulto da história republicana. Goste-se ou não dele, sua saga é heroica. A comparação com a figura que lhe vem em seguida, Getúlio Vargas, mostra que sua trajetória é excepcional e exponencial.

Estancieiro nos pampas, Vargas era um quadro da elite desde 1909, quando virou deputado. Depois governador e ministro, deu o golpe de 1930. Foi um caudilho de republiqueta por 15 anos: demagogo, oportunista, sanguinário.

Lula comeu pão pela primeira vez com sete anos, ao chegar a São Paulo de pau-de-arara. O pão que o diabo amassou; engraxate, fumava guimbas catadas na rua e usava o banheiro da freguesia de uma birosca. Não tinha onde cair morto.

A mística do Vargas Pai dos Pobres vem de seus três anos como presidente eleito. Os trabalhadores melhoraram de vida no período, mas as dádivas lhe foram concedidas por uma casta de pelegos e políticos venais que o chefe populista cevava e cooptava.

Já Lula tece sua trama com o povo pobre desde a ditadura. Liderou greves, foi preso e perdeu eleições, mas pelejou sempre pela organização autônoma dos espoliados. Relembre-se: o PT foi criado para enfrentar o patronato e os burocratas dos partidos comunistas, a começar pelo brasileiro.

Militares abutres e corvos civis avançaram na jugular de Vargas em 1954. Ele se suicidou e o golpe gorou. Dez anos depois veio a quartelada que arrochou os trabalhadores por décadas.

Açulados por Judas-Temer, burgueses, juízes, parlamentares, jornalistas e prelados cravaram os dentes na carótida de Lula em 2017. Provas forjadas, chicanas, mentiras, não faltaram caninos à matilha. Aí Lula teve sua hora alta.

Ele não fugiu. Podia ter se refugiado no exterior porque era claro como mil sóis que seria trucidado. Preferiu, disse, ser "enterrado vivo" a permitir que lhe imputassem crimes que não cometera. Teve a fibra de Mandela.

Não se cogitava que um dia lhe fizessem justiça. Porque, com covardia infame, Barroso, Carmen, Fachin, Fux, Moraes e Weber aceitaram o cabresto que lhes foi posto pelo comandante do Exército, e cassaram o direito de Lula disputar a eleição de 2018.

A cúpula da Justiça reafirmou seu caráter de classe ao decretar que lugar de líder trabalhador é na cadeia. Mais que depressa, a direita dita civilizada aceitou, como uma mula manca, que a extrema direita a cavalgasse. Sem o petista na liça, Bolsonaro venceu.

Acharam que Lula purgaria 12 anos de pena e sairia destroçado do cárcere. Ou se desmoralizaria num acordo para ser solto. Mas deu-se o inconcebível, o Supremo liberou Lula. Até para uma Justiça pangaré como a nossa, foi do jamais visto.

A justificativa das iminências teve um toque grotesco: levaram três anos para descobrir que Atibaia e o Guarujá —onde estavam o sítio e o tríplex dos quais não havia prova que fosse dono— não ficavam em Curitiba, onde corria a Lava Jato, mas em São Paulo.

Lula não deixou a solitária por obra de uma irrefreável campanha de massas. Só meia dúzia de gatos pingados lhe gritava bom dia e boa noite. Contudo, o Supremo abriu sua cela com uma canetada. A boa pergunta é: por quê?

Porque Bolsonaro escoiceava a república, trotava sobre os cadáveres da peste e zurrava que, dane-se a democracia, seria ditador. O Supremo, que come e dorme com os maiorais, imaginou a saída para a crise inexorável; deixar Lula livre para promover a boa e velha conciliação.

O herói avisou que, mesmo na idade de fazer bilu-bilu nos netos, inflamaria seu povo. Descascaria o abacaxi da campanha e enfrentaria o pepino do governo. Agora os iluminados dizem que ele ganhou graças ao centro, ao TSE e à valorosa elite. Então tá.

Essa cantilena é de quem quer tutelá-lo. Foi Lula quem reergueu o centro defunto. Foi ele que afrontou o Estado aparelhado pela gangue bolsonarista. Ao votar maciçamente nele, como disse o sociólogo Celso Rocha de Barros na sua última coluna, "os pobres salvaram a democracia".

A história não chegou ao fim. É o que diz o coro em "Édipo Rei", a tragédia de Sófocles, ao ver o herói que salvou Tebas ser moído pelo destino: "Não se diga que um homem é feliz até ele estar morto".

Lula também falou de morte no discurso depois de eleito. De improviso, disse: "O povo é a minha causa, e combater a miséria é a razão pela qual vou viver até o fim da minha vida".

Como as tarefas à frente são hercúleas, Lula pode ter um fim trágico. Mas não se pode esquecer que, aconteça o que acontecer, o herói da causa popular livrou Tebas da tirania.


Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo