Concordo com o deposto, o ano deveria ter acabado em 31 de outubro, após o fim das eleições. Só que não. Dois meses ainda nos separam do ano que vem, sendo que novembro resolveu pesar.
Escrevo na pasmaceira de mais uma infecção de Covid, minha terceira na pandemia. Gabaritei todas as ondas. O efeito das quatro doses de vacina é notável, caí com coriza, dor de cabeça e garganta, antes de positivar. Estranhíssimo. Achei que fosse psicológico, mas parece que já era o corpo agindo por antecipação. Quando amanheci bem, acusou no teste. Desde então, estou curada e contagiosa.
Na manhã do famigerado teste, a casa acordara cedo com o telefonema do fotógrafo Fernando Young, amigo e parceiro casado com Carol Solberg, filha de Isabel Salgado. A sogra adorada acabara de ser intubada na emergência do hospital Sírio Libanês, em São Paulo.
Minha família já enfrentou um transplante de medula e tem experiência com moléstias graves. Fernando pedia ajuda. Isabel havia dirigido a Dutra e chegado à cidade no dia anterior. Teve febre à tarde, foi atendida em outro hospital, voltou para casa e piorou à noite. Ajudamos no que foi possível, até receber a inadmissível notícia, na madrugada seguinte. Isabel tinha cinco anos a mais do que eu.
Havíamos nos encontrado um mês antes, na casa de Carol e Fernando. Estar com Isabel nunca foi corriqueiro. Era como se aproximar de uma divindade olímpica com sotaque carioca. As mãos imensas, que sempre me chamaram a atenção; a pele morena, boa; o cabelão crespo repuxado no rabo de cavalo, os ossos largos e o sorriso dentuço. Isabel parecia um garoto grande, embora fosse muito feminina. Era praiana, direta, humorada, inteligente e atraente como um ímã.
Ela foi um acontecimento quando surgiu. Traumatizados pela derrota da seleção para os Azzurri, na segunda fase do Mundial de 1982, atravessávamos o meio da longa seca de 24 anos que separou o tri do tetra.
Só podia ser mau olhado. A superinflação somada ao estertor da ditadura, um sentimento de fracasso coletivo, contaminando até as chuteiras. Para a molecada, o basquete, mas principalmente o vôlei, vieram resgatar o amor-próprio da nação esportista, e com uma novidade e tanto, a presença das mulheres.
O governo militar surfou nas glórias da Copa de 1970. O futebol virou símbolo do "país que vai para a frente" e adotou a hierarquia dos quartéis na concentração e nos treinos. Passada uma década de continência, com o advento da abertura, o livre pensar aflorou entre atletas como Sócrates e Casagrande. Junto com Wladimir, Biro-Biro, Zé Maria e Zenon, eles moveram a Democracia Corinthiana, gestão igualitária do clube, que vestia com a camisa das Diretas Já.
Filhas da mesma democracia emergente, as garotas do vôlei já vieram ao mundo sem papas na língua, Isabel mais do que todas. Criada no Arpoador do Circo Voador, amiga do pessoal do cinema e mãe de cinco filhos, três dos quais de Rui Solberg, lenda viva do Rio de Janeiro mítico dos anos 1970, ela era o elo entre esporte e cultura, política e liberdade, raça e graça, a bossa nova e o BRock. Isabel foi a nossa Leila Diniz.
E, como se não bastasse, esse novembro chuvoso ainda nos roubou a Gal. A Gal. Não escrevi sobre a partida dela nem sobre a do Jô, em agosto. De vez em quando, o que resta é o silêncio. Mas faço aqui, nessa página sobre a Isabel, minha despedida do Oscar dos dois. Que dezembro não me invente moda.
Conheci o Jô com sete anos de idade, no Teatro da Praia. Empoleirada no balcão vazio —o monólogo era impróprio para menores, mas meus pais me davam a liberdade—, eu o vi em cena, vestido de coração. Era um enorme coração pulsante, que ia do pescoço aos pés e de uma mãozinha à outra; a barriga protuberante no meio. É a memória mais antiga que guardo dele, resumo mais do que perfeito do que era o Jô. Depois, com os livros, desenvolvemos uma amizade a distância, comigo fingindo que era normal conversar com ele no telefone.
A Gal me flechou no "Fa-Tal", LP fetiche de infância, entre os discos dos meus pais. Quando acordei para a vida, o píer e as dunas já não estavam mais lá e só fui vê-la ao vivo no "Balancê". E amava tanto "Vapor Barato" que a cantarolei num filme.
Por causa de "Terra Estrangeira", Gal voltou a incluir a música no repertório. Nunca me esqueci do delírio que me acometeu ao ouvi-la puxar o "Vapor" em cena, delírio de que a musa cantava para mim. Entre as tantas belezas dessa voz, "Vapor Barato" está no topo da minha parada, junto com "Mãe", do Caetano, canção que abria o show dirigido por ele para a parceira da vida inteira.
Foi entregar a crônica para saber de Erasmo. Sinceramente... Ou Deus anda caolho ou é muito ruim de pontaria.
Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo.
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