terça-feira, 15 de novembro de 2022

Obrigada, Bituca!


13 de novembro de 2022, passa um pouco das 19h.

Depois de quase seis meses de espera, cerca de sessenta mil fãs recebem, no Mineirão lotado, Milton Nascimento, a voz de Deus. Como diria meu amigo Eudes Jr., uma Entidade.

Nada é exagero para você, Bituca.

É a última sessão de música.

Ponta de areia, ponto final.

Logo no início, Bituca, muito emocionado, dedica seu último show à amiga Gal Costa, que morreu há quatro dias.

"Imagina o tamanho do presente que é o show anunciado como o último da carreira de ninguém menos que Milton Nascimento ser dedicado a você", eu me pego pensando.

Milton agradece ao público por fazer sua vida tão linda. É toda a beleza que você espalha neste mundo voltando para você, Bituca. Obrigada por fazer as nossas vidas tão lindas. Tão melhores.

Não sei exatamente em qual momento ele diz que Elis é o amor da sua vida. Talvez tenha sido antes de Canção do Sal.

Quem assistiu ao musical Os sonhos não envelhecem certamente ouve, ao longe, a maravilhosa Elá Marinho próxima a um piano imaginário.

Trabalhando o saaaaaal

É amor, o suor que me sai

Vou viver cantando o dia tão quente que faz

Um dia muito quente mesmo. Um tempo tão bonito que se vê ao céu do Mineirão, distante das chuvas que inundaram a cidade nos últimos dias.

Deixo tudo, deixo nada/ Só do tempo eu não posso me livrar/ E ele corre para ter meu dia de morrer/ Mas se eu tiro do lamento um novo canto/ Outro dia vai nascer

Tão impossível imaginar um mundo em que não existisse a música de Milton, a voz de Milton. Mas em algum momento, escuto, ao menos acho que escuto, ele dizer que nunca se despedirá da música.

"Parece que é o Toninho Horta entrando ali". É. E Wagner Tiso, Beto Guedes, Lô Borges. É o Clube da Esquina reunido na nossa frente. Que dia lindo para estar viva.

Há um grito diferente nas vozes que entoam Não precisam mais temer/ Não precisam da solidão/ Todo dia é dia de viver

Sabemos o que está sendo cantado hoje, 13 dias depois das eleições presidenciais.

Atrás de mim, de tempos em tempos, dois homens levantam uma faixa com os dizeres "Ditadura nunca mais". Mostram para as pessoas a sua frente, são aplaudidos. Mostram para as pessoas atrás, são aplaudidos. A cada vez, a iniciativa é acompanhada de pessoas exaltando o presidente eleito, Lula. Alguém visivelmente irritado se levanta e sai.

"Vai tocar Paula e Bebeto e eu queria perguntar para esse moço o que é que ele entende da música", penso.

E toca. O gênio da voz Zé Ibarra nos lembra Gal.

Qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor valerá.

Existe uma beleza peculiar em todas as coisas que se vivem pela última vez. Milton foi tão generoso ao nos informar sua intenção de se despedir dos palcos. Em avisar que podia ser a última chance de participar de algo tão importante para tantos de nós, mas que podia não parecer urgente.

Viver é urgente.

Estive no show do Milton no mesmo Mineirão em 2019. Meu último show pré-pandemia, pré-maternidade. Uma outra pessoa, em um outro mundo.

Naquele dia Milton não tocou Travessia, sua parte mais importante dentro de mim.

Hoje ele vai tocar, tem que tocar.

Chegamos a Maria, Maria. Fogos, despedida. Uma pessoa atrás de mim se desespera também. Volta aqui pelo amor de Deus, Milton. E toca Travessia.

Vem um bis com Coração de Estudante. E um "viva a democracia!" que sabemos muito bem o que quer dizer.

Tem que ser agora. Só pode ser.

Quando você foi embora, fez-se noite em meu viver…

Sim, Milton. É difícil acreditar na sua despedida. Mas ela não faz noite em nossas vidas. Vamos chorar, mas temos muito que viver, embalados pelo seu legado.

E de todo modo, você não termina com Travessia. Termina cantando que gosta de poder partir sem ter planos e que melhor ainda é poder voltar quando quiser.

Estaremos aqui. Para encontros e despedidas.

Obrigada, Bituca! Obrigada por existir, por dividir a sua existência. Obrigada por não desistir, como disse Samuel Rosa. Obrigada pelo seu viva à democracia em um dos momentos mais necessários da nossa história. Por não se omitir, por seguir cantando a resistência. Suas músicas nos pegam pelas mãos e fazem com que a gente não desista também. Mesmo quando a gente custa a acreditar nessa estranha mania de ter fé na vida.


Reprodução do blogue Morte sem Tabu, na Folha de São Paulo

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