Se eu planejasse ser professor no ensino infantil em Araçatuba, São Paulo, estaria furioso.
Três deputadas estaduais do PSL apresentaram (com pedido de urgência) um projeto de lei (PL 1.174/2019) pelo qual, no futuro, só profissionais mulheres seriam responsáveis pelos cuidados íntimos das crianças (acompanhá-las ao banheiro, trocar fraldas, dar banho).
Você pensará, imagino, que as legisladoras disponham de algumas novas pesquisas segundo as quais homens professores do município de Araçatuba abusariam de crianças muito além da média nacional. Pois bem, não é assim, como atesta a ótima reportagem de Luiza Souto no Universa do UOL de 29/10.
Araçatuba, aliás, talvez não seja o problema, e nossas legisladoras estejam apenas começando a promover um movimento nacional. Entendo: elas gostariam de proteger meninas (e meninos, espero) dos abusadores que, elas acham, seriam sobretudo homens.
Se essa última ideia fosse verdadeira, teríamos soluções simples para problemas deveras complexos. Por exemplo, em vez de ficar de olho nos padres que brincam com crianças, poderíamos pedir ao Vaticano para acabar com a maluquice de ordenar só homens e começar a ordenar mulheres, as quais, segundo as legisladoras paulistas, cuidariam de crianças sem que a gente tivesse que vigiar a cada instante.
De novo, infelizmente não é assim. Como diz a professora Adla Betsaida Teixeira, da Faculdade de Educação da UFMG, entrevistada na reportagem, “é preciso ter cuidado com qualquer um: homem ou mulher, já que ambos podem cometer violência física, psicológica ou sexual”.
Por que, então, as legisladoras (e talvez muitos leitores) tenderiam a pensar que os abusadores de crianças são mais os homens, e as vítimas, mais as mulheres?
Comecemos por alguns fatos básicos.
Nós, humanos, aprendemos a falar porque encontramos indivíduos adultos que falam conosco —inicialmente, aliás, sem que a gente nem sequer entenda direito o que eles querem nos dizer.
Desenvolvemos nossa sexualidade de modo análogo —existe uma evolução “natural” (por exemplo, hormonal) da sexualidade de cada um, mas ela não é autógena, ou seja, não se produz sozinha; ela precisa da interação do indivíduo com outros mais velhos, que propõem ou impõem suas sexualidades.
Moral da história: todos nós, mulheres ou homens, construímos nossas orientações, fantasias e desejos sexuais a partir de pequenos ou grandes “abusos” sofridos ao longo da nossa infância.
Isso significa que o sexo, para todos nós, nasce de traumas? Não exatamente. Os abusos que acontecem na infância só se transformam em traumas quando eles são despertados na memória por novas experiências. Por exemplo, imaginemos que um professor, quando eu era menino, apalpava-me nas nádegas a cada vez que ele pudesse; e imaginemos que um dia, no escritório, meu chefe faça a mesma coisa, apostando que ficarei calado por vergonha ou (imagina ele) porque eu gosto. Esse segundo abuso transforma a lembrança do primeiro em trauma, ou seja, em algo que, de repente, torna-se muito difícil tragar.
Posso conviver com a lembrança do cretino que abria seu impermeável na frente da escola para mostrar sua salsicha, até o dia em que um produtor de cinema se apresenta para mim de roupão aberto. Aí, a lembrança é reativada como trauma, intragável. Ou, então, posso conviver com a memória de uma tentativa de estupro na escola, até o dia em que vejo um deputado na televisão declarando que uma colega dele não “merece” ser estuprada, como se o estupro fosse uma forma de apreciação do charme feminino. Aí, a lembrança é reativada, intragável.
Esses exemplos explicam por que há mais mulheres do que homens para quem os abusos da infância se transformam em traumas e continuam como traumas: é por causa dos abusos do machismo, que as mulheres encontram quase inevitavelmente na vida adulta.
Em outras palavras, homens e mulheres são todos vítimas de abuso sexual na infância —é claro, alguns de abusos mais violentos, e outros, menos—, mas, na vida adulta, no caso das mulheres, a estupidez do machismo ambiente transforma os abusos da infância em traumas.
O problema que preocupa as legisladoras paulistas, em suma, não se resolverá afastando os professores (ou as professoras) dos cuidados íntimos das crianças, mas acabando com o machismo e a misoginia que esperam qualquer menina, uma vez adulta.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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