terça-feira, 19 de novembro de 2019

A culpa é da minha deepfake

Há uma impostora, nas redes sociais, se fazendo passar por mim. É um golpe elaboradíssimo, executado por hackers mal-intencionados, que visam nada menos do que o meu cancelamento.
Para aqueles que orbitam fora da lacrosfera, o cancelamento é um linchamento virtual cujo objetivo é fazer justiça com as próprias mãos. As mãos que apedrejam, nesse caso, digitam comentários furiosos e clicam no botão “deixar de seguir”.
Aproveitando-se desse cenário acalorado, o golpe consiste em manipular a imagem da vítima até que ela seja considerada culpada pela mais alta instância do Poder Judiciário: a tribuna do Twitter.
Um dos primeiros a se tornar alvo desse tipo de ciberataque no Brasil foi o então candidato ao governo de São Paulo, João Doria. Envolvido em um escândalo por causa de um vídeo comprometedor —o Suruba Gate—, Doria prontamente se defendeu dizendo-se vítima da tecnologia deepfake, uma técnica de edição que conseguiu emular sua presença (um tanto inexpressiva) em uma orgia com cinco garotas de programa.
Pois minha impostora, criada com essa mesma tecnologia, tem publicado vídeos completamente desconectados da minha realidade. Não precisa ser nenhum Sherlock Holmes para constatar que aquela moça sorridente no Instagram não sou eu. Inclusive, posso comprovar que os meus níveis de serotonina não são compatíveis com aquela felicidade toda.
Postada há alguns dias, uma foto de biquíni que mais parece uma desculpa mal-ajambrada para exibir minha bunda veio de encontro à minha luta diária pelo fim da objetificação dos corpos femininos.
Aquela bunda, apesar de idêntica à minha bunda, não é a minha bunda. E quem me conhece sabe que eu seria incapaz de postar uma bunda em meio à crise política na América Latina.
O pior não é o que a impostora posta, e sim o que a impostora deixa de postar. Seu silêncio sobre o atual governo é ensurdecedor. Aliás, quem poderia discorrer sobre o assunto é a cantora Anitta, cancelada pelo mesmo motivo. Mas ela prefere não se posicionar.
Agora, estou perdendo seguidores que já não eram meus, pois foram usurpados por essa personagem que só existe em um mundo de faz de conta. Um mundo onde é possível ser indiferente.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

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