Acordou com um feixe de luz lanhando o rosto, o quarto girando junto com o ventilador de teto. Custou a reagir, até que, num impulso, deu início a uma busca frenética pelo quarto, atrás de alguma pista do que tinha acontecido na noite anterior.
Pescou roupas vermelhas espalhadas pelo chão, encontrou uma passagem de ônibus para São Bernardo do Campo na cabeceira. No celular, uma notificação recebida por email confirmava sua filiação ao Partido dos Trabalhadores. Hesitou em abrir a porta do banheiro, com medo de encontrar o Zé Dirceu lá dentro.
Definitivamente, as coisas haviam saído do controle. E ela não tinha apenas convicção disso, tinha provas.
Pouco a pouco, fragmentos de memória foram se juntando como peças de um quebra-cabeça. O expediente estava perto do fim, os colegas de trabalho se apinhavam em volta do computador, assistindo a uma live transmitida de Curitiba. O que aconteceu, em seguida, o Brasil inteiro já sabe: sextou.
O verbo “sextar”, patrimônio imaterial do proletariado em contagem regressiva para o fim de semana, quando o trabalhador pode enfim relaxar e esquecer seus problemas, nunca fez tanto sentido quanto naquela noite.
A democracia respirava, ainda que por aparelhos. Para alguém que já não tinha motivos para comemorar desde 2014, aquela era uma oportunidade a ser agarrada com unhas e dentes.
A festa, no entanto, não fez jus a tanto alarde. O Brasil não virou o Chile, centenas de milhares de criminosos não foram soltos da noite para o dia. Ela decidiu, então, pela catarse coletiva dos que
entoavam o jingle presidencial de 1989 em looping, na Lapa, às cinco da manhã, sem medo de ser feliz.
entoavam o jingle presidencial de 1989 em looping, na Lapa, às cinco da manhã, sem medo de ser feliz.
Logo ela, que problematizava a idolatria em torno de qualquer figura política, que nunca engoliu a aliança com o antigo PMDB e tantos outros erros que acabaram nos custando tão caro. Agora, revirava o lixo, em busca da autocrítica que havia descartado só por uma noite.
Uma ducha de água fria e alguns goles de Coca-Cola foram o suficiente para ela se dar conta de que, em um Brasil polarizado, é praticamente impossível beber com moderação.
Crônica de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo.
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