Num dia do verão de 1967, em Cascade, Colorado, uma tia da minha mulher contava a morte da mãe dela, avó de minha mulher. Num sotaque forte do sudoeste dos EUA: “Then she got the cancer”, aí ela pegou o câncer. Estranhei o “pegou”, como se fosse uma infecção que vem de fora, e ainda mais o artigo (“o” câncer, não “um” câncer). Também ela logo acrescentou, como se fosse uma coisa boa ou uma sorte, que, até o fim, a mãe nem sequer soubera que estava com câncer.
Quando eu tinha 11 anos, meu avô morreu de um câncer de laringe. Mudo, traqueostomizado, esperou que as células enlouquecidas atingissem a aorta e, numa manhã de domingo, em que eu estava em casa, foi-se embora me apertando a mão e espirrando sangue pela cânula traqueal.
Acompanhei outro sogro, o avô de meu filho, num verão quente, em Grenoble, na França, tentando vencer uma leucemia monoblástica aguda. No meio de uma tarde, do nada, embora ele fosse médico, disse: “Se soubesse que seria assim, nunca os deixaria tentar me curar”.
Poderia continuar, com mais parentes e mais amigos —ou com os muitos pacientes que acompanhei ao longo de um câncer, que acabou bem ou mal, ou que não acabou. Também poderia continuar com as histórias de meus cânceres. De qualquer forma, é raro que a vida de alguém, hoje, não seja tocada, direta ou indiretamente, em algum momento, por um diagnóstico de câncer.
Nos últimos 60 anos, muito mudou, não só no tratamento dos cânceres, mas, talvez tão importante quanto, na nossa maneira de falar de câncer.
Na casinha de Cascade, hoje, até a tia do sudoeste falaria de “um” câncer e do órgão onde ele surgiu. A vovó talvez morresse ainda, mas a sua doença seria tratada e falada como um mal específico, ou melhor, como sendo uma enfermidade dela, com a singularidade de sua história de vida e de seus genes.
Também ninguém hoje deixaria de dizer à paciente a exata extensão de sua condição.
Meu avô e meu sogro sabiam do que sofriam, mas fico com a suspeita de que nunca lhes fora dito a que preço eles durariam um pouco mais.
Quanto aos meus pacientes, o marco foi, no fim dos anos 1970, minha leitura de “A Doença como Metáfora”, de Susan Sontag (Cia. das Letras).
Até então, nos consultórios dos psicoterapeutas, era de praxe associar o câncer a traços psicológicos ou “eventos traumáticos” da vida do paciente.
Para o que servia (e ainda serve), na cultura popular, a psicologização do câncer? Ela não ajuda nem o paciente nem o terapeuta, mas aparentemente conforta terceiros, os que acham que, por sorte ou mérito, eles não têm nada.
A psicologização do câncer afasta o medo de adoecer —fulana fez um câncer de mama porque é muito reprimida, eu não sou nada reprimida, portanto…
Recentemente, um jovem, que acabava de descobrir um câncer no aparelho digestivo, consultou-se comigo para perguntar: como eu fabriquei isso? Ajudá-lo a abandonar essa pergunta foi a condição para que ele não fugisse, culpado e envergonhado, de um tratamento possível.
Acabo de ler “O Ser Humano Diante do Câncer e a Vontade de Curar”, de Nise Yamagushi (Unesp), oncologista extraordinariamente atenta às descobertas da medicina personalizada e, ao mesmo tempo, engajada no esforço para levar qualquer avanço para os usuários da medicina pública.
O livro é crucial para aprender e entender em que pé está hoje a possibilidade de cura para os diferentes tipos de câncer. E é fascinante descobrir como a oncologia se torna cada vez mais uma ciência do singular (talvez exista uma cura certa não só para cada câncer, mas também para cada indivíduo).
Mas o que mais me tocou, no livro, foi outra coisa. Nise Yamagushi aponta que o paciente com câncer é instigado a “rever sua vida”. E ela comenta que, para o médico, surge assim a possibilidade privilegiada de “compartilhar esse momento em que um ser humano precisa se reinventar, rediscutir seus valores e descartar o que passa a ser irrelevante”.
Outras doenças matam tanto quanto o câncer, se não mais, mas o câncer, também pelo lugar que ainda ocupa no imaginário popular, parece avivar o espantalho da nossa finitude como nenhuma outra enfermidade.
Talvez, durante muito tempo, um diagnóstico de câncer tenha sido só isto: “Lembre-se que vai morrer e prepare-se para isso”.
Ora, para Nise Yamagushi, um câncer, mesmo ameaçador, pode e deveria ser uma ocasião para redescobrir a vida: “Prepare-se para viver”.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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