1. O turista moderno passa horas e horas nas filas para comprar ingressos. Quando finalmente está na presença daquele quadro, daquele vitral, daquela escultura, o turista demora cinco segundos, talvez dez.
Não para contemplar a obra depois de uma longa espera; para tirar um selfie com ela.
Não para contemplar a obra depois de uma longa espera; para tirar um selfie com ela.
Eis, em resumo, a minha experiência recente em périplo italiano. O turismo de massas não é apenas um inferno físico; é um inferno narcísico, em que o viajante nunca sai verdadeiramente de si próprio para se render a algo que é melhor, mais belo e mais importante do que o seu patético sorriso.
2. Saio para beber com os amigos e percebo o anacronismo da expressão “sair para beber”. Nós, rapazes de 40 anos, ainda nos entregamos aos prazeres do álcool.
Mas a geração que entrou agora na idade adulta não partilha esse vício. Eles e elas bebem coquetéis sem álcool e olham para os dinossauros com aquele esgar de compaixão que normalmente dedicamos aos animais doentes. Que se passa?
Um amigo jornalista, versado em “tendências”, leu algures que a epidemia tem nome: “mindful drinking”. Até há festivais para isso, onde a ideia é beber até (não) cair.
Por mim, estejam à vontade. Mas desconfio que a febre abstêmia não se explica apenas por razões de saúde. Não beber é também uma forma de sinalizar virtude e pureza perante o mundo corrompido.
Infelizmente, é também essa falsa virtude e essa falsa pureza que explicam o tom histérico com que os mais novos reagem a qualquer dissonância.
A política é um bom exemplo. Nos meus contatos com o pessoal, reparo que a maioria está cada vez mais intolerante perante opiniões contrárias. Melhor dizendo: uma opinião contrária não é apenas uma forma alternativa de ver o mundo. É um insulto pessoal que deve ser respondido na mesma moeda.
Era inevitável. Quando nos amamos demasiado não suportamos a evidência de que os outros não nos amam da mesma forma.
3. E se um dia existirem lentes de contato que permitem ao utilizador filmar e tirar fotos com um mero movimento ocular?
A Samsung aposta nessa proeza, dizem os jornais. Depois do fiasco do Google Glass, os sacerdotes da tecnologia garantem que as lentes de contato da Samsung serão um incomparável progresso.
Sobre isso, não tenho dúvidas. Embora a palavra “progresso” seja vazia de conteúdo. Como conceito, poder filmar ou fotografar com as lentes de contato pode inaugurar um novo capítulo na devassa da vida privada. Como saber que o nosso interlocutor não está a filmar-nos contra a nossa vontade?
E como ter a certeza que ele não partilhará qualquer conversa nas suas redes (sociais ou privadas)?
E como ter a certeza que ele não partilhará qualquer conversa nas suas redes (sociais ou privadas)?
A primeira consequência desse “progresso” seria a transformação da vida social numa encenação permanente, abolindo por completo a confidência e a intimidade.
Hoje, com as redes sociais, o nível de dissimulação e performance já excede o tolerável —gente fingindo a vida que não tem, a felicidade que não tem, o afeto que não tem et cetera.
Mas como será transpor essa mentira virtual para o mundo real, 24 horas sobre 24 horas, sem pausa para enxugarmos as lágrimas?
4. O homem solitário é uma besta ou um deus, dizia Aristóteles. A relação de Michel Houellebecq com a vida moderna se explica com esses dois extremos. O homem moderno se considera um deus na sua solidão radical. Para Houellebecq, é uma besta.
É por isso que os seus romances são, literalmente, um bestiário: um desfile de personagens patéticas, grotescas, vazias —e, palavra fundamental, enganadas. E enganadas por quê?
Porque compraram a grande ilusão de que, rejeitando os valores e as instituições “burguesas” —o amor, a amizade, o casamento, a família—, o que existe por baixo da calçada é a praia, como diziam os revolucionários do Maio de 1968, em Paris (“sous les pavés, la plage”).
Falso, diz Houellebecq. Sob a calçada, o que existe é o abismo —e é nesse abismo que desaparece Florent-Claude Labrouste, o personagem de “Serotonina” (Alfaguara), o mais recente romance do escritor francês.
Os críticos, “comme d’habitude”, aplaudiram ou insultaram o niilismo existencial de Houellebecq.
Discordo deles. O que torna Houellebecq um escritor notável é o fato de ele ser, provavelmente, o último grande romântico da literatura europeia contemporânea. E “romântico” no sentido preciso da palavra. Cada livro seu é uma declaração de amor às ruínas.
Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo.
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