Assim como Lolita, Capitu, Julieta, Mia Wallace, Daenerys e outras tantas, sou uma personagem feminina criada e escrita por um homem.
A primeira coisa que o autor tem a dizer sobre mim é que sou bonita. Que exagero. Não sou lá uma Gisele, uma Lupita, não posso ser tão linda a ponto de parecer inalcançável. O autor insiste que não tenho consciência da minha beleza. Por isso, a escondo atrás de óculos de armação grossa e um jeitinho estabanado.
A segunda coisa que o autor tem a dizer sobre mim é que pareço um pouco triste. Não é uma tristeza profunda ou um quadro clínico de depressão. É mais uma melancolia sexy, uma amargura sensual. Talvez porque ainda não conheci meu par romântico. Então vamos logo ao que interessa: ele.
Meu maior desafio é me apaixonar pelo protagonista logo de cara. Ele é bem mais velho e mesmo assim consegue ser mais imaturo do que eu. Não chega a ser um homem bonito, mas eu não me importo com essas bobagens. E daí que ele é misantropo, neurótico e machista? Farei o papel que for preciso para consertá-lo: professora, mãe, terapeuta e até cartela de Rivotril.
Puxo meu par romântico pelo braço e dançamos dentro do chafariz da praça Paris —como se trata de uma ficção, não precisamos nos preocupar em pegar hepatite. Sou maluquete, mas não maluca.
Agora, ele me olha de um jeito estranho. Cismou que meu sorriso esconde um segredo. Talvez eu seja estéril —"o pior pesadelo das mulheres"—, talvez tenha saído de uma relação abusiva, talvez meus pais tenham morrido em um acidente de carro porque eu estava fazendo pirraça no banco de trás, talvez eu esteja tendo um caso —"o pior pesadelo dos homens". Tanto faz, meus traumas só servem para destacar minha fragilidade, assim como meus constrangedores desmaios de emoção.
Tudo indica que o protagonista está obcecado por mim. Mal sabe ele que desmarquei todos os meus compromissos para investir 100% da minha energia vital nesse relacionamento. Não tenho nada mais importante para fazer do que mudar a vida de um homem, essa é a minha função na história. Pena que ele tem outras prioridades, como salvar a humanidade ou coisa do tipo. Só me resta chorar um choro sem coriza, sem baba no travesseiro, sem olhos inchados. Um choro sexy. Eu não existo longe dele. Ainda bem.
Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo.
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