quarta-feira, 31 de julho de 2019

A cena do crime

Cheguei chorando no trabalho porque um homem-placa me ignorou. Não queria o panfleto dele, mas e daí? No elevador, sinto minha menstruação descer. Isso explica muita coisa.
Passo na sala onde a Joyce trabalha —a única amiga que fiz ao longo desses três meses de experiência— em busca de um absorvente. Ela olha para os lados e o entrega disfarçando com um cumprimento de mão, como se estivesse traficando drogas.
Trabalho um pouco, pego um café. Na volta para minha mesa, uma cena de terror. A mancha de sangue no estofado da minha cadeira. Provavelmente minha calça também está manchada. Olho em volta, talvez ninguém tenha reparado. Ainda. Sento em cima da mancha.
Mando uma mensagem para Joyce. Ela leva seis minutos digitando. A resposta, no final das contas, chega sucinta e em caixa alta: “SIMULA UM DESMAIO”. É o conselho padrão da Joyce para situações-limite. Meu plano é mais simples. Vou ficar aqui. Sentada. 
Até todo mundo ir embora. Então limpo a cena do crime.
O plano perfeito começa a ruir quando meu chefe diz que quer falar comigo na sala dele. Digo que estou ocupada. Meia hora depois, ele passa pela minha mesa de novo. Pergunto se não podemos resolver o assunto por email enquanto evito contato visual com ele. O resultado é uma torta de climão de sete andares.
Por que estou disposta a perder meu novo emprego em vez de simplesmente contar o que aconteceu? Como um óvulo não fecundado e um pouquinho de tecido uterino podem causar tanta vergonha?
Fecho os olhos, tento meditar, acessar um sentimento de gratidão por estar menstruada, saudável e, principalmente, não grávida. A gratidão é atropelada por uma gritaria lá fora. É um assalto à mão armada.
Aos poucos, todo mundo se levanta para ver da janela o espetáculo da violência urbana. Todo mundo, menos eu.
Meus colegas de trabalho narram o que estou perdendo. O homem-placa tenta dar uma de herói e toma uma coronhada. Tento disfarçar meu desinteresse mórbido: “Ah, gente, Copacabana. Isso acontece o tempo todo”.
Eles devem me achar um nojo de pessoa. Se soubessem a verdade, ficariam ainda mais enojados. Por quê? 
Sangrar pela vagina é natural. Mesmo assim, suspeito que a mancha de sangue na cadeira causaria mais horror do que a mancha de sangue no asfalto.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Turma do barulho

Faz cem anos. Em junho de 1919, quatro jornalistas de Nova York foram almoçar num hotel na rua 44 Oeste, entre 5ª e 6ª avenidas, chamado Algonquin. Um deles, Alexander Woollcott, provara dias antes a torta de maçã do restaurante e queria repetir a experiência. Os outros eram Robert Benchley, Dorothy Parker e Robert Sherwood.
A torta não os empolgou, mas o papo e o ambiente, sim. Voltaram no dia seguinte e em todos os dias pelos dez anos seguintes. Outros jornalistas aderiram, e o gerente lhes deu uma mesa cativa, redonda. Nascia a Mesa Redonda do Algonquin.
Os aderentes eram George S. Kaufman, Edna Ferber, Mark Connelly, Franklin P. Adams, Ring Lardner, Herman J. Mankiewicz, Ben Hecht, Donald Ogden Stewart, James Thurber, Heywood Broun, Jane Grant, Harold Ross e outros, futuros teatrólogos, poetas, romancistas e roteiristas, e até o ator Harpo Marx e o campeão de boxe Gene Tunney, que não falavam muito, mas prestavam grande atenção. Aliás, toda Nova York prestava atenção —porque eles passavam o almoço disparando frases mordazes e brilhantes sobre os costumes, política e produção artística daquele tempo.
Ao publicar essas frases em seus veículos, ficaram famosos por elas. Mas, aos poucos, começaram também a produzir os poemas, peças de teatro, roteiros e romances que lhes assegurariam a imortalidade. Exemplos: Ferber escreveu “Show Boat”; Mankiewicz, “Cidadão Kane”; Sherwood tornou-se consultor do presidente Roosevelt; Hecht, o maior roteirista do cinema; Ross e Grant fundaram a revista The New Yorker; e Benchley, Parker, Thurber, Kaufman e Lardner, nem se discute. A lenda da Mesa Redonda não era à toa.
Em 1974, passei 40 dias no Algonquin, cortesia de uma revista americana para a qual eu trabalhava. Todos os heróis da Mesa Redonda tinham morrido. Mas, magicamente, mais de uma vez pensei estar cruzando com um deles nos corredores.

Crônica de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Ensaio sobre a blogueira

A influencer cega por likes acorda tateando sua mesa de cabeceira em busca do celular. Abre o Instagram e, para seu desespero, não consegue ver o número de curtidas das fotos. Só pode ser um pesadelo.
Como quem busca seu reflexo no espelho, a influencer à beira de um colapso acessa o próprio perfil. Sim, é um pesadelo. Seus likes, de fato, sumiram. Não foram roubados ou sugados por um buraco negro virtual. Eles ainda estão ali. Mas ninguém consegue enxergá-los, apenas ela, como se fossem uma alucinação.
Com a visão turva de lágrimas, a influencer em crise existencial não vê sentido em tomar seu bulletproof coffee, já que não vê sentido em postar seu bulletproof coffee, já que ninguém vai ver as curtidas de seu bulletproof coffee.
Uma influencer sem curtidas é como Buchecha sem Claudinho, Dallagnol sem Moro, Chimbinha sem Joelma. Suas centenas de milhares de seguidores se tornaram inúteis do dia para a noite. Uma horda invisível de plebeus que ganham menos de cem curtidas por foto. Uma horda da qual a influencer decadente agora também faz parte.
Recusando-se a engolir essa súbita preocupação do Instagram com a autoestima de seus usuários, a influencer indignada se lança às margens da deep web para pesquisar o real motivo daquela mudança. E descobre que sua rede social favorita arrumou um jeito de lacrar e lucrar ao mesmo tempo.
Tudo indica que o mercado paralelo de compra e venda de curtidas --que a própria influencer cega por likes ajudava a financiar-- gerava uma quantidade absurda de dinheiro, do qual Mr. Zuckerberg jamais viu a cor. A influencer tomada pela culpa demite seus robôs --também conhecidos como like bots-- repentinamente obsoletos.
A influencer em desencanto decide encontrar outras influencers para pensar em estratégias de sobrevivência. No táxi até lá, ela presta atenção, pela primeira vez, num podcast de notícias chamado rádio FM, e se dá conta de que o país atravessa um período de trevas.
"Ainda não consigo acreditar." De óculos escuros, as influencers enlutadas padecem numa bakery descolada, trocando longos abraços em vez de likes. "É a vingança dos medíocres", lamenta a ex-influencer, cuspindo farelos de ciabatta, rendendo-se ao glúten depois de anos.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 19 de julho de 2019

'Garota' sob nova 'leitura'

Toquinho, violonista e parceiro de Vinicius de Moraes, disse a Bruna Narcizo na Folha de domingo último (14) que "Garota de Ipanema", de Tom e Vinicius, a música brasileira mais executada no planeta, "hoje seria execrada". Concordo com Toquinho e vou mais longe —talvez nem fosse composta. E, se fosse, qual cantora ousaria interpretar esse hino ao assédio, ao sexismo e, talvez, à pedofilia?
Afinal, a letra diz "Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça/ É ela, menina, que vem e que passa/ Num doce balanço, caminho do mar" --é uma menina que está sendo cantada por aqueles dois velhos babões, notou? E prossegue, sexista: "Moça do corpo dourado/ Do sol de Ipanema/ O seu balançado é mais que um poema/ É a coisa mais linda que eu já vi passar". E, depois de um falso intermezzo romântico, termina apelando para um quase estupro universal: "Ah, se ela soubesse/ Que quando ela passa/ O mundo inteirinho se enche de graça/ E fica mais lindo/ Por causa do amor". 
É triste, mas é assim que se faz hoje a "leitura" da letra. "Garota de Ipanema" é de 1962. A ipanemense Helô Pinheiro, 19 anos, pode tê-la inspirado, mas a canção sempre se referiu às muitas moças de Ipanema, de antes e depois, que, pelo trabalho, pela coragem e pelo exemplo, ajudaram a tornar a mulher brasileira mais adulta e independente. Eis algumas, apenas entre as mais famosas: 
Tonia Carrero, Miriam Etz, Vera Barreto Leite, Danuza Leão, Odette Lara, Marilia Carneiro, Marilia Kranz, Marina Colasanti, Ira Etz, Germana De Lamare, Betty Faria, Maria Lucia Dahl, Duda Cavalcanti, Olga Savary, Martha Alencar, Regina Rosemburgo, Leila Diniz, Zezé Motta, Tania Caldas, Patricia Casé, Scarlet Moon, Lygia Marina, Angela Ro-Ro, Isabel e Jacqueline do vôlei. 

Essas grandes mulheres sempre souberam que a letra, de alguma maneira, lhes dizia respeito. E sempre se orgulharam disso.

Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 15 de julho de 2019

As lições do 'Senhor Israel'

Há exatos 60 anos, terminava longevo capítulo da carreira de um personagem marcante na diplomacia do século 20. O israelense AbbaEban retornava para casa após cerca de dez anos como embaixador nos EUA e representante junto à ONU; ele comandaria ainda o ministério das Relações Exteriores e se transformaria numa das faces mais célebres de seu país. Ganhou o epíteto de "Senhor Israel".
Para David Ben-Gurion, patriarca da independência, Eban foi "a voz da nação hebraica". O diplomata, que morreu em 2002, aos 87, deixou como legado alicerces da relação entre EUA e Israel, a busca pela convivência pacífica entre países do Oriente Médio e articulação diplomática famosa pelos ingredientes de singular sofisticação intelectual.
Eban enfrentou o fracasso em 1988, quando, após quase trinta anos de mandatos seguidos no Parlamento, não se reelegeu. Dono de fina ironia, disse certa feita que conseguiria chegar ao cargo de primeiro-ministro "se as pessoas de fora do país pudessem votar nas eleições israelenses".
Como a maioria dos líderes sionistas de sua geração, representada por Ben-Gurion e Golda Meir, Eban lia a cartilha do socialismo. Convicções ideológicas, no entanto, não o impediram de construir, em solo norte-americano, diálogos com democratas e republicanos.
Em setembro de 1950, apresentou credenciais ao presidente Harry Truman, do Partido Democrata. Três anos depois, o republicano Dwight Eisenhower chegou à Casa Branca, e, apesar da troca, Eban continuou a circular por Washington e Nova York em busca da consolidação de laços bilaterais, à época, complicados.
Corria a Guerra Fria. Importantes setores do governo norte-americano olhavam para Israel com desconfiança, pois o país, independente em 1948, construía uma sociedade sobre pilares socialistas, com o kibutz (fazenda coletiva) como emblema.
Em 1949, relatório da CIA chegou a sustentar que, num confronto entre Estados Unidos e União Soviética, Israel permaneceria "provavelmente neutro". Moscou também cortejava o Estado judeu e havia lhe oferecido apoio relevante no período pós-independência.
Abba Eban, portanto, precisava convencer as alas anticomunistas mais fervorosas em Washington das credenciais democráticas de Israel. Recorria ao talento como orador e à desenvoltura linguística, com o domínio de diversos idiomas.
Nascido em 1915, na sul-africana Cidade do Cabo, chegou ao Reino Unido na infância. Educou-se em Cambridge, estudou hebraico e árabe e, na universidade, engajou-se no sionismo, movimento nacionalista judaico.
Pendor intelectual e habilidade diplomática levaram-no à ONU, onde trabalhou pela aprovação, em 1947, da resolução responsável pela Partilha da Palestina. Com a persistente rejeição dos vizinhos ao diálogo com Israel, Eban declarou em 1978 que líderes árabes "nunca perdem a chance de perder uma chance".
Além de frases de efeito, o diplomata deixou como herança bases para que, a partir de meados dos anos 1960, EUA e Israel abandonassem desconfianças e construíssem a relação estratégica. Para tanto, dialogou com diversas correntes políticas norte-americanas, como impõe a essência plural da missão de um embaixador.
Eban corresponde a um exemplo de diplomata que, sem abrir mão de suas convicções ideológicas, cumpriu a tarefa de defender os interesses do Estado israelense, e não apenas do governo de plantão, de sinergias familiares ou de agendas partidárias. Ler a biografia do "Senhor Israel" certamente vai ajudar quem se disponha a fazer diplomacia no século 21.

Texto de Jaime Spitzcovsky, na Folha de São Paulo

De volta do futuro

Foi por meio de uma “dobra no tempo” que obtive as informações aqui reveladas. Vêm dos extratos de jornais do ano 2033. Eis algumas mudanças que inferi dessas notícias.
1. O Supremo Tribunal de Justiça havia acolhido algumas atribuições adicionais. Com a inclusão de novos ministros, pastores de igrejas pentecostais, que se tornaram majoritários neste tribunal, ele havia assumido novas responsabilidades e consequentemente mudado a denominação para Supremo Tribunal de Justiça e Inquisição. Com isso, havia conseguido eliminar o comunismo, o petismo, os movimentos LGBT, feministas de quase todas as instâncias governamentais.
2. As universidades públicas haviam sido privatizadas, cursos inúteis e perversos como filosofia, sociologia e ciências políticas haviam sido substituídos por moral e cívica (dados por militares da reserva especialmente dotados), tiro ao alvo, educação física, astrologia e estudo da Bíblia. Currículos haviam sido elaborados e ampliados por especialistas. Tiro ao alvo, por exemplo, se dividia em várias etapas: tiro a alvos fixos, tiro a alvos móveis, tiro ao pombo, tiro a comunistas e petistas etc. Aliás, cursos iniciais de tiro seriam dados a alunos a partir dos cinco anos de idade, mas só para legítima defesa.
3. O Ministério das Relações Exteriores passou a ser chamado Ministério de Relações Exteriores e Propagação da Fé. Embaixadores, cônsules e outros diplomatas teriam que ser praticantes e apoiados por uma igreja pentecostal. O ministro teria que ter o título de bispo. Sob este aspecto não houve mudança significativa, apenas formal.
4. O Ministério do Meio Ambiente promoveria viagens turísticas a reservas de mata amazônica. Uma fila imensa de turistas ecológicos se acumulava junto às portas de entrada da reserva que se estendia por dez hectares, ou seja, 20 campos de futebol, e que, segundo informações oficiais, abrigava um casal de tucanos e três saimiris (macacos-de-cheiro). No entorno, milhões de hectares de pastagens e plantações de soja para alimentar os porcos da China. Ao lado, um museu com onças e caititus empalhados.
5. As milícias haviam acabado com a baderna. Haviam pacificamente dividido o Brasil em zonas. A polícia se recolhera aos quartéis. A tortura fora reduzida ao essencial. E por um preço módico poderia ter o cidadão segurança em sua casa.
6. Uma notícia alvissareira foi a de que havia sido encontrada enfim uma nova aplicação para o nióbio, metal de que o Brasil é rico. Foram banidos todos os materiais, tais como ouro, resinas e porcelanas, que servem para preenchimento de buracos devidos a cáries de dentes, e substituídos pelo negro e reluzente metal. Além disso, como o grafeno pode ser obtido de qualquer material orgânico, com o que o Brasil não teria vantagem competitiva alguma, pudemos desenvolver uma fonte única de carbono, elemento do qual é constituído o grafeno. Cientistas brasileiros teriam sido os primeiros a produzir grafeno do flato do macaco barrigudo em cativeiro.
Pois bem, após estas deprimentes experiências, aos poucos comecei a acreditar que teriam sido não mais que um pesadelo. Mas eis que me acode uma preocupação: o pesadelo de um pode bem ser o sonho de outrem.

Texto de Rogério Cezar de Cerqueira Leite, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 12 de julho de 2019

João Gilberto não era o rabugento que se pensa

João Gilberto era um homem inteligente e engraçado, o mais elegante que conheci. De pijama azul, bem escanhoado, banho tomado e penteadinho, dava a impressão de estar de smoking ao abrir a porta do apartamento, num oitavo andar na rua Carlos Góis.
Movia-se com a graça de Fred Astaire. Era incapaz de vulgaridade e afetação. Nunca atendia ao telefone quando tinha convidados. 
Fazia perguntas por curiosidade e não por polidez, e escutava a resposta com atenção plena. Das 22h às 10h, cantava e tocava como um deus —misto de Orfeu e Apolo— músicas que doíam, de tão belas.
Em abril de 1990, telefonei-lhe pela primeira vez. Ele acabara de gravar um disco, o primeiro em estúdio numa década, e eu precisava de fotos para a capa de Veja. Podia ter respondido sim, não, talvez, depende. Mas perguntou: “Mario, te gusta la samba?”.
Falou mais de uma hora sobre “la samba” e Nara Leão, que adorava. As fotos nunca foram feitas, mas a capa da revista saiu. Já o CD, “João”, foi lançado só um ano depois. Ouviu-o pronto, pela primeira vez, na minha casa. Achou que não ficara lá essas coisas.
Penava para terminar o que começava de maneira tão fácil. Mudava interminavelmente a mixagem e reclamava dos arranjos. Achava que a sonoridade estava aquém do que conseguira —ou imaginara. Como não ficava satisfeito, ficou com fama de encrenqueiro, chato, neurótico.
 
Testemunhei anos de hesitação na feitura de discos, um documentário e o roteiro de um filme. Suas dúvidas e demoras exasperavam. Vistas hoje, o correto é considerá-las dedicação ao trabalho, o que é tido na indústria da música por capricho chocante.
Não acreditava no borbulhar do gênio nem no bafejar das musas. Queria fazer o melhor. Nunca insinuou
ser superior a um brasileiro comum. Ensaiava com afinco para aprimorar sua música. Era essa a sua “missão”. 
Achava que o Brasil se aproximara da libertação, que no entanto fora barrada pelo golpe de 1964, que teve apoio americano. A bossa nova era um momento da afirmação nacional —que ele persistia em tornar mais nítida. Essa visão, objetiva e política, convivia com sua alta espiritualidade.
João era místico. “Católico apostólico romano”, como dizia, rezava para santa Clara. Mas sabia de cor Yogananda, o autor de “Autobiografia de um Iogue”, bem como versículos do Evangelho de João. Disse-me duas vezes o “Om”, o mantra sagrado do hinduísmo —algo deveras formidável.
Como não catequizava, a sua religiosidade não pesava. Ademais, era culto. Embora gostasse de Marx, João Cabral e Fernando Pessoa, achava Drummond mais enriquecedor do que todos eles, inclusive Yogananda e a Bíblia.
Para além da matéria e do espírito, sua maneira de ser era marcada pelo que sua filha mais velha, que ele chamava de Isabelzinha, disse no enterro: “João foi jovem até o fim”.
Ou seja, mesmo entrado nos anos, era inquieto e curioso. Queria saber as novidades —como era fulana, o que sicrano falou, o que acontecerá com a gente? Interessava-se por tudo, mas mais por estratégia do que por tática, mais pelo alcance histórico do que pelas limitações do cotidiano.
Seus raciocínios surpreendiam. Narrava sua única conversa com Denis Brean, compositor de “Bahia com H”, como quem contava uma parábola.
“Venci a timidez e lhe disse que seu samba cantava Salvador com perfeição: ‘Seus sobrados, igrejas, santos, ladeiras e montes tal qual um postal’.”
Brean era de Campinas, de modo que lhe perguntou quantas vezes estivera na capital baiana, pois demonstrava intimidade com a cidade. “Nunca fui”, respondeu o compositor, alegre. “Sei que é bacana porque os sambas dizem isso.” João ficou maravilhado.
A resposta se coadunava com o que ele pensava: para fazer boa música, era vital estar atento ao som das pessoas. “Música é som”, era o seu mantra. E o som vinha “dos brasileiros em movimento”.
 
O aforismo era útil para explicar fatos comezinhos. Como a acústica da Câmara Federal é horrenda, ele dizia, os brasileiros têm dificuldade em se entenderem. “Se os deputados não escutam a si mesmos, como vamos compreender o que decidem?”, perguntava.
O mantra também justificava o seu trabalho. Ele queria adequar a música brasileira, o maior meio de expressão popular, ao som de um povo fraternal. No Brasil moderno e livre, dizia, as pessoas escutariam umas às outras; acabariam se entendendo.
“Nossa música, tão bonita, evita que sejamos Honduras”, disse. Depois, em outro telefonema, se penitenciou: “Não tenho nada que falar de Honduras, nem sei o que tocam lá”. Estava consternado com o deslize, a seu ver ofensivo.
Dava, assim, verdadeiras piruetas dialéticas. O papo com Denis Brean conduzia-o a determinada compreensão da música, passava pelo Congresso e por Honduras e se completava com o remorso por ter feito uma anedota com o “simpático país latino-americano”, como disse.
João não transigia. Pôs terno e gravata para atender a um telefonema do governador Antonio Carlos Magalhães, que queria que cantasse na reinauguração do Teatro Castro Alves, em Salvador. Mas 
não aceitou o convite para visitá-lo no Palácio de Ondina.
Telefonou-me um dia e elogiou Lula. Não pela sua política, e sim porque ele chamara Marisa de “minha galega”. Comemorou: “É um brasileiro de Pernambuco!”. Em contrapartida, achava Fernando Henrique Cardoso “paulista no mau sentido”, o que talvez queira dizer “presunçoso”.
São Paulo tinha destaque na sua cartografia sentimental. Foi onde primeiro fez sucesso, e a cidade pujante fora construída por “homens que vieram do Norte”, como ele.
Diamantina era importante porque sua irmã Dadainha o acolhera ali. Depois vinham Salvador, onde morava seu irmão Vavá, e Porto Alegre, onde vivera alguns meses.
Com sete irmãos e vários sobrinhos, era um homem de família. Conhecia-os pelo nome e a todos acolhia. Como nascera no mesmo dia que minha mãe, 10 de junho, adotou-a.
No seu aniversário, telefonava e lhe dizia que escolhesse uma música para ele cantar. Ela escolhia “Eu Sonhei que Tu Estavas Tão Linda”, de Lamartine Babo: “Numa festa de raro esplendor/ Teu vestido de baile lembro ainda/ Era branco, todo branco, meu amor”.
 
Quis passar um Natal conosco, em São Paulo, mas acabou não vindo. Na hora da ceia, telefonou e falou com todos, um a um. A mim, recitou trechos de “A Mesa”, de Drummond. Durante anos, falou “daquele Natal que passamos juntos”.
Deu-nos uma filmadora; uma caixa de vinhos espanhóis na qual cada garrafa custava € 200; uma baixela de prata; um jantar do Antiquarius, entregue em casa por um garçom no dia da inauguração da árvore de Natal da Lagoa.
Isso quando tinha dinheiro. Quando não, pedia emprestado, e pagava sempre. Tanta gentileza não o impedia de, a cada reportagem que escrevi a seu respeito, dizer que eu não entendera nada. 
Uma vez me chamou de “burrão latino-americano”. Era um amigo crítico e franco.
É difícil ver nesse brasileiro sensível, afetuoso e otimista —nesse homem solar— o gênio rabugento e recluso que pintam. João tinha vários amigos, amou muitas mulheres. Gostava de viver e era intenso.
Bertrand Russell conta na sua autobiografia suas conversas com Joseph Conrad. À medida que avançavam, e a complexidade dos temas aumentava, a intimidade entre eles também crescia. A ponto de o filósofo se admirar de continuarem ainda juntos, em regiões remotas do pensamento e da emoção. Adeus, solidão.
Senti algo parecido nas madrugadas que passamos juntos. Conversávamos, ríamos, bebíamos, fumávamos, ele tocava e cantava. Eu subia a regiões da sensibilidade onde nunca estivera —o lugar onde a arte e a amizade são uma coisa só, de onde se vê a vida com olhos livres.

Uma crônica de Mário Sergio Conti, na Folha de São Paulo

terça-feira, 9 de julho de 2019

Morte de João Gilberto encerra a utopia de um país do futuro

Utopia é uma palavra sequestrada pelo lodaçal brasileiro, mas a morte de João Gilberto deu uma revanche ao termo, talvez um suspiro ingênuo ou um salvo-conduto. E voltamos a reencontrar a ideia nos lamentos sobre a perda do mestre radical e eremita. 

Nesse espasmo utópico, é inevitável lembrar o Brasil do governo Juscelino Kubitschek em sua mobilização de otimismos benignos, ainda que a sua figura histórica seja revista nos excessos desenvolvimentistas. 
No ciclo de JK, avançando sobre o período de João Goulart, o país acompanhava o desenvolvimento da arquitetura modernista de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa —os inventores de Brasília—, da bossa nova, da modernização gráfica dos jornais, do concretismo dos irmãos Campos e Décio Pignatari, do neoconcretismo, do cinema novo, do futebol-arte, da crítica moderna de teatro. 
Viviam entre nós o conto de Clarice Lispector, a crônica de Rubem Braga e Antonio Maria, Guimarães Rosa, a euforia cinéfila, os museus de arte moderna, as exposições de Lina Bo Bardi. Houve até um toque português. Na Bahia, um filósofo refugiado da ditadura de Salazar, Agostinho da Silva, difundia o sebastianismo pessoano de “Mensagem”. O sonho Brasil era vendido em qualquer padaria. 
João Gilberto foi um sobrevivente dessa miragem. Síntese do artista moderno, reorganizou a tradição do samba e construiu um caminho contrário à autossacralização dentro do território seguro da bossa nova. No México, quem diria, gravou boleros. A influência intergeracional de João comprova as possibilidades culturais de sua ruptura em diálogo contínuo com outras utopias, sem excluir as que ainda não existiam. 
Vertentes distintas e conflitantes da música popular se tocam na assimilação do trauma de “Chega de Saudade”, de 1959, “O Amor, o Sorriso e a Flor”, de 1960, e “João Gilberto”, de 1961. O roqueiro Raul Seixas, que atacava os bossa-novistas baianos, reconheceria ao jornal Pasquim que “gostava de João Gilberto, gostava muito”. 
Caetano Veloso, com certeza o discípulo mais amado por João, assumiu o músico como filtro estético e humano de seu próprio projeto pessoal. Mesmo Paulinho da Viola, formado na escola de Jacob do Bandolim e César Faria, sentiria seus impactos tardios.
A bossa nova encarnou a utopia brasileira para a geração do cinema novo, empenhada em acrescentar dissonâncias —conflitos e mazelas sociais— à leitura artística do país integrado enfim ao mundo, nas beiradas do golpe de 1964. 
Essa visão estabelecida do programa cinema-novista merece um olhar cauteloso, pois João, Tom e o grupo da bossa nova não estavam alheios aos absurdos brasileiros e, em alguns momentos, houve até uma feliz contaminação de ideários.
Só em 1962 dois filmes exemplificam essa proximidade de projetos. “Cinco Vezes Favela” ganha a colaboração de Carlos Lyra, um dos criadores do Centro Popular de Cultura e compositor da “Canção do Subdesenvolvido” ao lado de Chico de Assis. E “Porto das Caixas”, de Paulo Cesar Saraceni, flutua na trilha musical de Tom Jobim. 
O cineasta Glauber Rocha não gostava de bossa nova e preferia o modernismo musical de Villa-Lobos. Ao conhecer João Gilberto nos Estados Unidos, em 1969, saiu seduzido pela esfinge, a ponto de escrever um roteiro jamais filmado em que o músico perfeccionista seria capaz de incendiar cidades.
Os escritores reconheceriam os efeitos de seu uso clarificador da língua portuguesa. A obra de Carlos Drummond de Andrade, seu poeta-modelo, sem dúvida contribuiu para o reposicionamento da palavra em seus planos musicais. Os concretistas sacaram na hora. O poeta Augusto de Campos, autor de “Balanço da Bossa e Outras Bossas”, de 1968, tornou-se seu primeiro intérprete de envergadura (mais tarde, Walter Garcia daria contribuições finas), estabelecendo os vínculos do artista com a música moderna.
O tropicalismo floresceu num Brasil já autoritário, perto do abismo do AI-5, e encontrou sua senda entre João Gilberto e Glauber Rocha. Outra vez, o bruxo de Juazeiro estava na encruzilhada. 
“O tropicalismo foi um movimento romântico-destrutivo, mas a bossa nova foi um movimento clássico construtivo”, definiu Caetano, num texto de 1984 sobre os 25 anos de carreira do mestre que o convocara a deixar de vez o exílio em Londres. 
João continuava olhando. Em sua estranha reaparição neste ano, na circunstância triste dessa morte, a ideia de um Brasil promissor nos interpela. O pensamento utópico produziu desastres no século 20, mas evitou tantos outros em seu efeito saneador nas vanguardas artísticas. 
Agora, uma ilustração da distopia. O atual presidente da República, Jair Bolsonaro, precisou ser provocado para comentar a morte de João Gilberto. “Era uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá OK?”, disse. Mais que anti-JK, Bolsonaro é o antipresidente bossa nova, o retrato da fissura no destino brasileiro, o vácuo apontado contra os indígenas, os negros, os gays, os professores, as florestas e os rios. 
“Morte do Leiteiro”, de Drummond, era um dos poemas favoritos de João Gilberto. “Há no país uma legenda,/ que ladrão se mata com tiro./ Então o moço que é leiteiro/ de madrugada com sua lata/ sai correndo e distribuindo/ leite bom para gente ruim.”

Texto de Claudio Leal, na Folha de São Paulo.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Relaxo nos voos com uma combinação de boa música e bons livros e filmes

Já comentei aqui: gosto de viajar de avião durante o dia. Aproveito mais o tempo do que à noite. Para ocupá-lo, não levo séries inteiras baixadas no laptop, levo um livro grande e o computador com trabalho a fazer (não quer dizer que faça). O resto ocupo ao acaso da programação de bordo.
Sempre tem algum filme do Oscar que não estreou ainda nos cinemas. Bons clássicos para rever. E blockbusters que dão preguiça de ir assistir, mas divertem estando ao alcance de um clique (no voo da vez, de Istambul para São Paulo, marquei “Deadpool 2”, esperando que tenha tanto nonsense e tanta Morena Baccarin quanto o primeiro).
Tenho explorado a seção de documentários e de música (algumas para ver, outras somente para ouvir). Num longo voo para Hong Kong pela Cathay Pacific, foi um bálsamo ver o documentário sobre os 50 anos da revista Rolling Stone, tão comprido que dividi entre a ida e a volta.
Financiado pela própria revista (mas mesmo assim tocando em pontos polêmicos, como uma abertura comercial que arranhou sua imagem) e produzido pela HBO (portanto pode ser visto no streaming, sem precisar ir para a China), “Rolling Stone: Stories From The Edge” desfilou diante do meu assento décadas de cultura, contracultura e política. Sim, porque a revista começou falando de música, mas foi muito além.
O filme fala de Lennon, Hendrix, Stones, mas também de todos os presidentes americanos por eles entrevistados. 
E fala da guerra do Vietnã, cujo chefe militar, o mais patenteado do país, foi demitido por ter dado entrevista a eles. E de Patty Hearst, dondoca herdeira do magnata que inspirou “Cidadão Kane”. Ela foi sequestrada e aderiu aos terroristas. Mostra também o inclassificável Hunter S. Thompson (1937-2005), colaborador da revista e criador do jornalismo gonzo, e a fotógrafa Annie Leibovitz, que comenta fotos vistas por todos nós—só não lembrávamos onde.
Também garimpo (são poucos) os documentários com orquestras, bandas ou shows.
Como os melhores momentos das edições do festival de Glastonbury, na Inglaterra, filmados pela BBC, onde descubro pérolas fora do meu cego radar para música pop.
Foi onde vi, por exemplo, num voo da Qantas a caminho da Austrália, interpretações antológicas como as de PJ Harvey para “Let England Shake” e de Jack Garratt para “Worry”, num transe próximo ao de Joe Cocker (1944-2014) em Woodstock.
Às vezes as músicas são para ouvir e ver, caso da “performance corporal” de Gustavo Dudamel regendo a “Sinfonia N° 1” de Gustav Mahler com a filarmônica de Los Angeles. Outras, para ouvir enquanto trabalho ou leio, seja para relaxar com Vivaldi ou me estimular com o “Anel do Nibelungo”, de Richard Wagner, regido por Karajan com a filarmônica de Berlim —ouvidos neste voo da Turkish Airlines.
Também experimento uma variante: adequar a música ao que estou lendo ou escrevendo. Por exemplo, lendo há pouco a novíssima edição de “Jogo da Amarelinha”, de Julio Cortázar, coloquei no áudio jazz, jazz, jazz, como a vitrola dos personagens em seu desvario parisiense.
Assim como, escrevendo sobre um restaurante cuja trilha sonora é de rock dos anos 1970 e 1980, sintonizei um documentário sobre um show dos Rolling Stones celebrando seu disco “Sticky Fingers” (1971).
Continuei na mesma linha. Em Istambul visitei tantas mesquitas e igrejas que trouxe a bordo material distribuído nos templos, sempre versando sobre religião e crendices que não me seduzem, mas atraíram minha curiosidade.
Comecei lendo uma edição de bolso do Alcorão. E, para tal, na companhia aérea de um país com história muçulmana, não foi difícil encontrar para ouvir algo que me sugerisse uma atmosfera adequada. A música clássica turca, sedutora e hipnotizante, começou a embalar meu espírito, aberto e suscetível como estava naquele momento.
Mas o livro só acirrou minhas convicções. É espantoso como a religião cria guetos de separação e de ódio, produz guerras e sangue. Tudo isso, de uma forma ou de outra, anunciado nos seus escritos.
Em poucas páginas entendi o recado: eu tinha que ser um deles ou estaria bem ferrado. E mesmo declarando sinceramente ser um deles, eu poderia estar mentindo (até sem perceber) e, portanto, estaria muito ferrado do mesmo jeito. Só o fanatismo salva.
Eu sou da paz. Fechei o livro. E mudei a música: voltei aos Stones, direto na mais irônica “Sympathy for the Devil”.

O texto é de Josimar Melo, na Folha de São Paulo