Já comentei aqui: gosto de viajar de avião durante o dia. Aproveito mais o tempo do que à noite. Para ocupá-lo, não levo séries inteiras baixadas no laptop, levo um livro grande e o computador com trabalho a fazer (não quer dizer que faça). O resto ocupo ao acaso da programação de bordo.
Sempre tem algum filme do Oscar que não estreou ainda nos cinemas. Bons clássicos para rever. E blockbusters que dão preguiça de ir assistir, mas divertem estando ao alcance de um clique (no voo da vez, de Istambul para São Paulo, marquei “Deadpool 2”, esperando que tenha tanto nonsense e tanta Morena Baccarin quanto o primeiro).
Tenho explorado a seção de documentários e de música (algumas para ver, outras somente para ouvir). Num longo voo para Hong Kong pela Cathay Pacific, foi um bálsamo ver o documentário sobre os 50 anos da revista Rolling Stone, tão comprido que dividi entre a ida e a volta.
Financiado pela própria revista (mas mesmo assim tocando em pontos polêmicos, como uma abertura comercial que arranhou sua imagem) e produzido pela HBO (portanto pode ser visto no streaming, sem precisar ir para a China), “Rolling Stone: Stories From The Edge” desfilou diante do meu assento décadas de cultura, contracultura e política. Sim, porque a revista começou falando de música, mas foi muito além.
O filme fala de Lennon, Hendrix, Stones, mas também de todos os presidentes americanos por eles entrevistados.
O filme fala de Lennon, Hendrix, Stones, mas também de todos os presidentes americanos por eles entrevistados.
E fala da guerra do Vietnã, cujo chefe militar, o mais patenteado do país, foi demitido por ter dado entrevista a eles. E de Patty Hearst, dondoca herdeira do magnata que inspirou “Cidadão Kane”. Ela foi sequestrada e aderiu aos terroristas. Mostra também o inclassificável Hunter S. Thompson (1937-2005), colaborador da revista e criador do jornalismo gonzo, e a fotógrafa Annie Leibovitz, que comenta fotos vistas por todos nós—só não lembrávamos onde.
Também garimpo (são poucos) os documentários com orquestras, bandas ou shows.
Como os melhores momentos das edições do festival de Glastonbury, na Inglaterra, filmados pela BBC, onde descubro pérolas fora do meu cego radar para música pop.
Como os melhores momentos das edições do festival de Glastonbury, na Inglaterra, filmados pela BBC, onde descubro pérolas fora do meu cego radar para música pop.
Foi onde vi, por exemplo, num voo da Qantas a caminho da Austrália, interpretações antológicas como as de PJ Harvey para “Let England Shake” e de Jack Garratt para “Worry”, num transe próximo ao de Joe Cocker (1944-2014) em Woodstock.
Às vezes as músicas são para ouvir e ver, caso da “performance corporal” de Gustavo Dudamel regendo a “Sinfonia N° 1” de Gustav Mahler com a filarmônica de Los Angeles. Outras, para ouvir enquanto trabalho ou leio, seja para relaxar com Vivaldi ou me estimular com o “Anel do Nibelungo”, de Richard Wagner, regido por Karajan com a filarmônica de Berlim —ouvidos neste voo da Turkish Airlines.
Também experimento uma variante: adequar a música ao que estou lendo ou escrevendo. Por exemplo, lendo há pouco a novíssima edição de “Jogo da Amarelinha”, de Julio Cortázar, coloquei no áudio jazz, jazz, jazz, como a vitrola dos personagens em seu desvario parisiense.
Assim como, escrevendo sobre um restaurante cuja trilha sonora é de rock dos anos 1970 e 1980, sintonizei um documentário sobre um show dos Rolling Stones celebrando seu disco “Sticky Fingers” (1971).
Continuei na mesma linha. Em Istambul visitei tantas mesquitas e igrejas que trouxe a bordo material distribuído nos templos, sempre versando sobre religião e crendices que não me seduzem, mas atraíram minha curiosidade.
Comecei lendo uma edição de bolso do Alcorão. E, para tal, na companhia aérea de um país com história muçulmana, não foi difícil encontrar para ouvir algo que me sugerisse uma atmosfera adequada. A música clássica turca, sedutora e hipnotizante, começou a embalar meu espírito, aberto e suscetível como estava naquele momento.
Mas o livro só acirrou minhas convicções. É espantoso como a religião cria guetos de separação e de ódio, produz guerras e sangue. Tudo isso, de uma forma ou de outra, anunciado nos seus escritos.
Em poucas páginas entendi o recado: eu tinha que ser um deles ou estaria bem ferrado. E mesmo declarando sinceramente ser um deles, eu poderia estar mentindo (até sem perceber) e, portanto, estaria muito ferrado do mesmo jeito. Só o fanatismo salva.
Eu sou da paz. Fechei o livro. E mudei a música: voltei aos Stones, direto na mais irônica “Sympathy for the Devil”.
O texto é de Josimar Melo, na Folha de São Paulo.
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