segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Jesus não é cão

Rosa pode ser simples, mas não é boba. Quando bateram na porta, ela estava explicando para Wellington que, desde que o homem se conhece por gente, falar em nome de Deus faz parte de um projeto de poder. E como o toque de recolher já estava valendo e o filho, Pedro, ainda não tinha voltado, ela nem pensou duas vezes antes de abrir, achando que era ele. Não era. 
Os Soldados de Cristo em Armas trazem as efígies do presidente e do ministro da Justiça tatuadas nos antebraços direito e esquerdo, respectivamente. Já os Vigilantes de Jesus, que comandam o bairro vizinho, usam as mesmas tatuagens, porém nos antebraços esquerdo e direito, respectivamente. Não quer dizer nada. Serve de salvo-conduto.
As caras do presidente e do ministro da Justiça em geral resultam em borrões aproximativos nos antebraços dos justiceiros de Deus. E nesse caso não eram exceção. Tinham a expressão sinistra das cicatrizes. O que vale é que todo mundo reconhece na hora. E foi a primeira coisa que o Soldado de Cristo em Armas mostrou quando Rosa abriu a porta, para que não houvesse dúvida quanto ao motivo da visita. Os Soldados de Cristo em Armas são autoridade no bairro desde que deixou de haver Estado.
Você não pagou o pedágio de novembro?, Rosa gritou para Wellington, que tinha ido buscar alguma coisa lá dentro.
Claro que paguei, Wellington gritou de volta.
Ele está dizendo que não.
A esta altura, o Soldado de Cristo em Armas já está dentro da sala, com um 38, arma oficial do país, apontado para Rosa. Desde que deixou de haver Estado, a economia se autorregula pelo mercado.
Pra continuar vivo tem que pagar, o Soldado de Cristo em Armas anunciou.
Rosa e Wellington estavam sabendo. Nem precisava ter dito, moço, ela disse, mas antes de poder concluir, um tiro de espingarda arrancou o 38 e um pedaço da mão do Soldado de Cristo em Armas. 
Tá louco, Wellington? Não sabe que esses caras têm treinamento policial?
Enchi o saco. Agora, explica pra ele o que tu tava me explicando, Rosa, Wellington disse, diante do Soldado de Cristo em Armas ajoelhado no chão, gritando às cusparadas Puta que pariu! Puta que pariu! e segurando o pedaço de mão que normalmente ficava abaixo da efígie borrada do presidente, com a outra mão, que ainda se encontrava abaixo da efígie do ministro da Justiça.
Explica pra ele, Wellington insistiu, vendo que Rosa estava atônita e paralisada. Conta pra ele a história de Jonas, por exemplo.
Rosa tomou fôlego e começou: Deus mandou Jonas avisar o pessoal lá em Nínive que daquele jeito não ia dar.
Diz pra ele que Nínive era mais ou menos que nem o Brasil hoje, senão ele não vai entender. Tudo fora do lugar, um monte de marmanjo no poder, falando e fazendo merda, blasfemando em nome de Deus, só no desmonte, porque o desmonte era o único objetivo, Wellington exortou à mulher.
Nínive era que nem o Brasil hoje, só no desmonte, Rosa repetiu, e Jonas não estava a fim de ir lá avisar ninguém. Então pegou um navio e fugiu de Deus, mas Deus levantou uma tempestade e o navio só não afundou porque Jonas pediu pra ser jogado no mar, pra salvar os outros no mesmo barco. Bastou ele cair no mar pra vir a calmaria.
Entendeu ou tá difícil?, Wellington perguntou ao Soldado de Cristo em Armas, ajoelhado no chão. E depois, virando-se para Rosa: Diz pra ele que com Jesus isso aí ficou ainda mais claro.
Com Jesus ficou ainda mais claro que servir a Deus não é acusar os outros; é assumir a culpa e se sacrificar pelo bem comum, abrir mão dos privilégios pelo bem de todos, Rosa disse.
Ouviu? A culpa não é dos outros, do sistema e o caralho; a culpa é sua. Não é pra se dar bem em cima da ignorância e da fragilidade dos outros, tirar vantagem da ignorância e da fragilidade dos outros pra encher o cu de grana e foder com o mundo e com o direito dos outros, entendeu? Antes de sair por aí falando em nome de Deus, dizendo que vai fazer justiça em nome de Jesus, você devia olhar pra própria merda. E que merda, né? Wellington se empolgou, assumindo de vez a palavra.
Tá na Bíblia, malandro. Antes de ficar apontando pros outros, devia olhar pra si. Devia saber, já que é fiel a Jesus, Wellington prosseguiu, chegando mais perto do Soldado de Cristo em Armas ajoelhado no chão. Ou melhor, como vocês dizem, Jesus é que é fiel a vocês, certo? E nessa hora, percebendo que o Soldado de Cristo em Armas já não estava em condições de ouvir, muito menos de responder, murmurou no ouvido dele: Jesus não é cão pra ser fiel, meu amigo. Jesus não é cão.

Texto de Bernardo Carvalho, na Folha de São Paulo

Melhores livros de política em 2019 foram sobre como nos metemos nesse buraco

Começando com algo que dá alguma esperança, Djamila Ribeiro escreveu “Pequeno Manual Antirracista”, um manifesto simples e direto que tem cara de que vai durar. Mas grande parte dos melhores livros de política de 2019, aqui e no exterior, foi sobre como nos metemos nesse buraco.
Também foi um bom ano para grandes análises de longo prazo sobre capitalismo, desenvolvimento e desigualdade. No ano passado, os grandes lançamentos foram sobre a crise das democracias.
Como as democracias ainda não se recuperaram, 2019 viu o lançamento de mais bons trabalhos sobre o problema. De longe, o melhor foi “Crisis of Democracy” (crise da democracia), de Adam Przeworski, o maior comparativista da ciência política atual. Outro destaque foi “Os Engenheiros do Caos”, de Giuliano da Empoli, um livro muito bem escrito sobre a ascensão do populismo de algoritmo e a nova direita, inclusive a brasileira.
"Amanhã Vai Ser Maior", da antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, oferece uma interpretação inteligente da ascensão do bolsonarismo, propõe estratégias para a esquerda, e parte de conversas muito ricas com caminhoneiros em greve e ex-participantes de “rolezinhos” que se tornaram bolsonaristas. Também do ponto de vista da esquerda, "Sobre Lutas e Lágrimas: Uma Biografia de 2018”, do jornalista Mário Magalhães, é uma bela crônica de um ano feio.
Os desdobramentos da Lava Jato renderam bons livros. A biografia não-autorizada de Eduardo Cunha, "Deus Tenha Misericórdia dessa Nação", de Aloy Jupiara e Chico Otavio, mostra nas mãos de quem o Brasil esteve em 2015. “Why Not”, de Raquel Landim, conta a história assustadora do grupo JBS (o do Joesley, amigo do Temer) e mostra o que é o capitalismo patrimonialista brasileiro.
“A Elite na Cadeia”, de Wálter Nunes, conta o cotidiano e as intrigas entre empreiteiros presos na Lava Jato e já valeria só pela descrição do literal “jogo do prisioneiro” de quem delataria primeiro.
Atores institucionais importantes também renderam bons livros. “Os Onze”, de Felipe Recondo e Luiz Weber, deve continuar sendo o melhor livro sobre o STF por algum tempo. “O Reino”, de Gilberto Nascimento, conta a história da Igreja Universal do Reino de Deus, com ênfase em sua relação com a política e bons bastidores de sua política interna.
 
Na linha “grandes interpretações”, “The Narrow Corridor” (o corredor estreito), de Daron Acemoglu e James Robinson, propõe que os países constroem as instituições certas para o desenvolvimento  quando sociedade civil e Estado se mantêm em uma corrida uma contra o outro em que ninguém nunca ganha.
 
“Capital et Ideologie”, de Thomas Piketty, procura preencher duas lacunas deixadas pelo best-seller improvável “Capital no Século XXI”: a análise de países periféricos (inclusive, rápida e algo insatisfatoriamente, o Brasil) e a história política da desigualdade, com destaque para a mudança de perfil eleitoral da esquerda europeia (de partidos dos trabalhadores a partidos dos mais diplomados).

Mas o melhor dos três é “Capitalism, Alone”, de Branko Milanovic. Oferece um panorama da desigualdade no capitalismo ocidental e uma interpretação original sobre o lugar dos regimes comunistas na história do capitalismo como matrizes do capitalismo político de tipo chinês, que tem suas próprias fontes de instabilidade. É o livro do ano.

Texto de Celso de Rocha Barros, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

O mundo não vai acabar

Olha, se você não encontrar a Dani (amiga da qual você nem gosta tanto e que não vê há oito meses) antes do dia 31 de dezembro, o mundo não vai acabar.
Tem aí janeiro logo na sequência, depois vem fevereiro e, reza a lenda, 2020 chega contendo 12 meses.
Não precisa ficar sete horas parada no trânsito da árvore do Ibirapuera e entrar em um desespero maluco para dar um abracinho na Dani (da qual você, vamos lembrar, nem gosta tanto e que não vê há oito meses). 
Se lhe faltar vivacidade para aparecer no “último happy hour do ano” da empresa que te explorou, te humilhou, fez fofoca sobre a sua vida sexual e fez meme da sua face com olheiras chamando-lhe de filhote de panda, o que de tão horrível pode lhe acontecer?
Sério que em plena sexta-feira você, com enxaqueca, vai pegar um engarrafamento histórico até um bar ridículo do Itaim para abraçar gente que você desejou esse tempo todo que pegasse micose anal? Por que cacete você comprou até roupa nova para ir a essa merda? 
Vai de novo dar camiseta cara da Osklen e ganhar chinelo escroto e com o número errado? Por que você passou o ano falando mal das pessoas na terapia e agora, só porque todos esses desgraçados vão sair da cidade (o que tornará as ruas plenas de incomensurável felicidade) corre feito um condenado com medo da solidão?
Que ansiedade desembestada é essa que nos acomete no final do ano? Por que queremos nos despedir de meia humanidade como se fosse todo mundo desaparecer em poucos dias? E, pior de tudo, por que somos invadidos por algum tipo de mau gosto irrefreável que nos leva a ter paciência (e até a comprar presentes e nos locomover sofregamente para bairros e cidades distantes) com gente que, ao longo de todo o ano que acaba, já tínhamos combinado em nosso íntimo que não tinha mais nada a ver?
Outra coisa: o que você teria contra, de verdade, se meia humanidade desaparecesse da sua vida? Não foi você que (durante o inferno astral, o inverno, o Carnaval, a virose, a dor de cabeça, a leitura do jornal, a festa barulhenta no vizinho) estava desejando isso intensamente?
Daí chega o Natal e, que engodo, seus olhinhos brilham de tamanha benevolência e vontade de ir até a puta que o pariu dizer a um semidesconhecido que você odeia: boas festas!
Já aconteceu de eu fazer o trajeto Berrini-Campinas para encontrar umas amigas da faculdade às vésperas do final de 2015.
Metade delas havia marcado um almoço na Berrini (oi?), e a outra metade estava visitando um bebê no interior.
Ao final do périplo lembrei que não tinha ido nem sequer ao aniversário delas (em bairros bem próximos da minha casa), durante todo aquele ano, e que não fazia nenhum sentido aquela palhaçada.
Dei presentes ótimos e ganhei umas desgraças de uns sachês de gaveta. Nada do que elas falavam me interessava.
Eu só desejava a morte rápida enquanto estava entre aquelas mulheres chatas que não leram um livro que prestasse, não viram um filme que pudessem debater, não tinham nem sequer uma angústia relevante para me presentear com parcas fagulhas emanando de suas mentes programadas para o descaso com a profundidade.
Olha, você não gosta de 87% da sua família. Você odeia 91% dos antigos colegas que parou de visitar.
Pega os cinco sobreviventes e faz um almocinho despretensioso na sua casa. Manda o resto pastar.
Confia em mim. Inventa uma psicose antes que ela se torne real. Inventa uma coceira louca antes que você derreta seu delicado couro tentando suportar o inferno. Feliz 2020 e fora Bolsonaro, porra!

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Fascismo identitário não existe

Começo aqui com uma digressão. “Vista-se como quiser. Chame a si mesma como quiser. Durma com qualquer adulto que consinta. Viva sua melhor vida em paz e segurança. Mas [é justo] forçar as mulheres a deixarem seus empregos por afirmarem que sexo é real? #EuApoioMaya”. Este é um tuíte da escritora britânica J.K. Rowling, autora da série de livros Harry Potter, na última quarta (19).
A Maya a que se refere a hashtag é a pesquisadora Maya Forstater, cujo contrato de trabalho em um centro de pesquisa em Londres não foi renovado. Maya é contra o reconhecimento legal de mulheres transexuais como mulheres. Em setembro de 2018, postou não acreditar “que ser mulher seja uma questão de identidade. É uma questão de biologia”. Aqui, Maya adentra uma seara de imprecisão conceitual na distinção sexo/gênero, objeto de celeuma histórica, inclusive entre feministas.
Rowling criticou a decisão judicial no último dia 18 desfavorável a Maya, segundo a qual suas posições não constituem visões filosóficas protegidas pela lei de igualdade britânica, pois incompatíveis com a dignidade e direitos fundamentais de outros e capaz de gerar um ambiente de hostilidade, inclusive no trabalho. Importante mencionar que o juiz não chegou a discutir em si a legalidade da não renovação do contrato de trabalho —assunto que ficou para 2020.
No mar de hashtags, há um lugar para argumentar, numa só toada, que a posição de Forstater é profundamente transfóbica, por anular a experiência vivida de mulheres trans enquanto mulheres —com a consequência jurídica cabível— ao mesmo tempo em que deixa espaço para o debate histórico sobre sexo/gênero? 
No momento em que os termos do debate restam hiperbolizados, pouco avançamos. Abro a Folha deste domingo (22) e descubro que, para Antonio Risério, lugar de fala leva a um fascismo identitário. Deixemos de lado o hiperbolismo do termo fascismo —desconheço a existência de esquadrões armados de militantes identitários em busca da constituição de um Estado de partido único opressor gayzista. Deixemos de lado, inclusive, que branquitude também é identidade.
Chamar lugar de fala de fascismo identitário é não o compreender. Lugar de fala não é para impedir o debate, não é um argumento de autoridade para determinar quem esteja certo e não é para definir identidades únicas. Atentar para as experiências vividas que informam a fala é questionar hierarquias de discurso e fluir diálogo. Deveria, ao menos. É para que mulheres não sejam interrompidas constantemente em reuniões de trabalho, para que negros e negras tenham direito à voz diante do poder armado que lhes rouba a voz e a vida. 
Não é da literatura sobre o tema que se extrai qualquer postura autoritária do lugar de fala. Certamente não de Spivak, que, ao olhar como sujeitos subalternos são silenciados, questiona uma visão única da história. Certamente não de bell hooks, que ressalta no clássico “Censura da Esquerda e da Direita” a responsabilidade de professores e grupos progressistas para com a liberdade de expressão, necessária para desmantelar opressão. Certamente não de Djamila Ribeiro, que em seu livro defende lugar de fala não como censura, mas como questionamento das hierarquias da fala.
À esquerda com o uso incorreto de lugar de fala como autoridade, e à direita com a apropriação de negros e LGBTs conservadores para as suas trincheiras, o que era para ser um mecanismo para fomentar debate se torna seu oposto.
Estou mais interessado em onde nossos lugares de fala se encontram. Na possibilidade de construção de um mundo onde nossas experiências vividas não sejam nem silenciadas, nem essencializadas. Para que isso aconteça, alguns precisam reconhecer, com humildade, que suas visões de mundo não são universais. Chamar isso de fascismo é ignorar a multiplicidade da experiência humana.

Texto de Thiago Amparo, na Folha de São Paulo

Lugar de fala é instrumento para fascismo identitário

Minha intenção, aqui, é colocar o tal do lugar de fala no seu devido lugar. Mas, antes disso, me sinto na obrigação de fazer umas observações preliminares.
De uns tempos para cá, temos visto uma onda de violência se encorpando assustadoramente em todo o país. São calúnias, linchamentos verbais, agressões físicas. Partindo tanto do segmento atualmente mais barulhento da esquerda, cristalizado nos movimentos identitários e suas milícias (eufemisticamente tratadas como “coletivos”), quanto da extrema direita, com sua ponta de lança na boçalidade bolsonarista.
Recentemente, intelectuais de esquerda, a exemplo de Renato Janine Ribeiro, vêm falando sobre o assunto. Denunciando, por exemplo, ações para impedir que críticos do atual governo se manifestem em festas ou feiras literárias que, como a de Paraty, se converteram em arraiais juninos do identitarismo. Mas a crítica esquerdista a uma ascensão do fascismo entre nós tem sido feita de maneira estranha e sintomaticamente seletiva.
[ x ]
O que vemos são ataques ao fascismo de direita —e silêncio sobre o fascismo de esquerda. Como no dito popular, os macacos se negam a olhar o próprio rabo. E isso embora, em nossa conjuntura recente, o fascismo de esquerda tenha saltado na frente, como vimos em 2013, numa feira literária em Cachoeira do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, quando extremistas identitários impediram o geógrafo Demétrio Magnoli de falar e praticamente o expulsaram da cidade.
Antes que algum esquerdista proteste, aviso que uso a palavra “fascismo” a propósito de qualquer iniciativa que vise a exercer controle ditatorial sobre postura e pensamento dos outros, a fim de impedir que estes questionem dogmas de determinado grupo que se considera portador da verdade e do destino histórico da coletividade. 
Digo isso porque, muito curiosamente, ainda existe quem pense que a esquerda —apesar das atrocidades protagonizadas por Stálin, Mao Tsé-tung, Pol Pot, Fidel Castro etc.— é imune ao fascismo.
Bem, o fascismo identitário corre solto, com sua pitoresca mescla de revolucionarismo fraseológico e conservadorismo ideológico (afinal, ninguém mais fala em transformação global da sociedade e instauração de um novo mundo; antes, luta-se por maior participação e mais oportunidades no interior da sociedade que aí está— batalha por empregos, salários etc., com todos ansiando fazer parte do “mainstream”, o que não tem nada de errado, mas também nada tem a ver com subversão e muito menos com socialismo) e seu típico pessimismo programático com relação às sociedades ocidentais modernas, mas com o neofeminismo fechando os olhos para a opressão masculina entre muçulmanos e o racialismo neonegro fingindo não ver a exploração do negro pelo negro em Angola ou na Nigéria, por exemplo.
E aqui, finalmente, chego ao ponto que anunciei. É o tal do lugar de fala, que defino como expediente fascista típico do identitarismo, em sua ânsia de calar a diferença, silenciar a outridade. Mas, como tem gente que acha que esse lugar de fala é fundamental, avanço então para dar a minha visão (mesmo resumida) de tal procedimento supostamente democrático, mas, na realidade, perversamente ditatorial e excludente.
Sim: “lugar de fala” é uma perversão ideológica doentia de um antigo truísmo sociológico. No caso, a banalidade sociológica foi distorcida em guilhotina ideológica, destinada a cortar cabeças genital ou cromaticamente diferentes ou política e ideologicamente discordantes. Um instrumento ou mecanismo fascista feito sob medida para eliminar dissidências.
Aprendemos há muito, com a sociologia, a fazer a leitura de qualquer discurso em conexão com a “posição de classe”, com o lugar do discursante na estrutura da sociedade e em sua hierarquia sociocultural. É o beabá da sociologia, embora sua aplicação nem sempre seja fácil e imediata (pode ser altamente complexa, se tomarmos como objeto de análise, por exemplo, o discurso de Karl Marx ou o do nosso Joaquim Nabuco), a menos que cedamos à tentação emburrecedora do chamado marxismo vulgar, que acaba não dizendo nada sobre nada.
Mas vejamos em plano geral. O que a filosofia e a sociologia ensinam, pelo menos da passagem do século 18 para o 19 e até aos dias de hoje, é que as ideias (os discursos, na gíria mais moderna) têm sua origem em alguma base fundamental, ou em algum espaço basilar, que é exterior ao mundo das próprias ideias. Vale dizer: as ideias se configuram num espaço, base ou recanto extraideacional.
Já se pensava assim quando Destutt de Tracy publicou seus “Eléments d’Idéologie” em 1801. O sociólogo berlinense Reinhard Bendix sintetiza: “As ideias derivam exclusivamente de percepções sensoriais, acreditava ele. A inteligência humana é um aspecto da vida animal e ‘ideologia’ [na acepção de ciência das ideias] é, portanto, parte da zoologia. Tracy e seus colegas achavam que, através dessa análise reducionista, no sentido de atividades mentais serem atribuídas a causas fisiológicas subjacentes, haviam chegado à verdade científica”.
Já o marxismo clássico reza que cada classe social gera uma certa consciência da vida e do mundo. De Destutt de Tracy a Marx, no entanto, o pressuposto é o mesmo: o significado último das ideias deve ser buscado não nelas mesmas, mas no que está por trás delas, sejam constrangimentos físicos, sejam condicionamentos sociais.
Aí estão balizamentos teóricos do lugar de fala, na tradição do conhecimento filosófico e social. O que diferencia esse lugar de fala do lugar de fala do identitarismo? Simples. Mas antes façamos uma observação necessária. O lugar de fala identitário não deixa de ser um retrocesso a Destutt de Tracy, no sentido de que volta a tomar a realidade ou a situação física da pessoa (não se pensa mais em classe social, claro) como base e explicação de tudo.
O identitarismo representa assim um retorno epistemológico à configuração física do indivíduo. Especificamente, à organização genital da pessoa (não no sentido complexo da “Teoria Psicanalítica da Libido” de Karl Abraham, é claro, mas no do simplismo neofeminista, corpo marcado pela presença do célebre “penis erectus”, ou com a fenda subclitoridiana e seus lábios se abrindo sob pelos pubianos) ou à pigmentação da pele (a melanina da bioquímica) ou mesmo à negação metafísica da bipartição sexual objetiva da espécie humana (e não me lembro quem escreveu que toda negação se contém no espaço daquilo que nega). Ou seja: estamos nos reinos da vagina e da melanina.
Mas há uma diferença imensa, escandalosa mesmo, entre a disposição sociológica e a predisposição identitária. Para a sociologia, o que está em tela é uma constrição relativa à “posição de classe” do indivíduo. Um condicionamento (e não um determinante, por sinal) desenhado pelo lugar do indivíduo, do grupo ou da classe na estruturação hierárquica da sociedade.
Para a perversão identitária, a conversa é outra: essa posição na estrutura da sociedade, antes que ser tomada como realidade a ser imparcialmente reconhecida e examinada, assume um significado moral: é razão de condenação inapelável (se o sujeito se achar na posição de “opressor”) ou de celebração irrestrita, de canonização como fonte de legitimidade discursiva (se o sujeito se achar na posição de “oprimido”).
Vale dizer: para a sociologia, trata-se de compreender o fenômeno —para o identitarismo, trata-se de julgar. E quem por acaso se encontrar no lugar do “opressor” deve ter a voz cassada, deve ser calado, mesmo que à força, na base do grito e da porrada. Daí que, regra geral mesmo, tudo que o identitarismo define como “inclusivo”, a exemplo do seu “lugar de fala”, é coisa que circunscreve um agrupamento e implica a exclusão dos demais. E assim o que vemos, à nossa frente, é o paradoxo da inclusividade excludente.
Mas vamos finalizar. Não me lembro agora quem fez a distinção política precisa. Nestes últimos anos, a liberdade de expressão e o pensamento independente sofrem pressões e ameaças vindas de duas direções poderosas. No espaço geral da sociedade, elas vêm basicamente da extrema direita. No espaço mais restrito do campo universitário e do mundo artístico-intelectual, vêm basicamente da esquerda identitária.
Plantado com clareza no campo da esquerda democrática, penso que temos de combater esses dois fascismos, na base do vigor, do rigor, da criatividade e da coragem. Combater “ambos os dois” —como diria o velho Luiz de Camões. Hoje, a liberdade, juntamente com a necessidade de redução das distâncias sociais, é questão essencial da vida brasileira. 

Texto de Antonio Risério, na Folha de São Paulo

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

O monstro

Abri a porta do armário e dei de cara com o monstro de novo. Sua respiração ofegante fazia tremular as camisas nos cabides.
Decidida a ignorar sua presença, experimentei uma camiseta que havia usado recentemente. É claro que ele não deixaria barato: “Você não é uma personagem da Turma da Mônica para repetir a mesma roupa todo dia”.
De fato, no universo criado por Mauricio de Sousa ninguém perde tempo escolhendo o que vai vestir. A Mônica nem sequer usa sapatos e tenho certeza de que seu guarda-roupa monocromático mataria o monstro de tédio.
O monstro no meu armário é um amontoado de peças encalhadas com um buraco sem fundo no lugar da boca. 
Ele vive na escuridão, entregue ao vício em roupas novas. Reconhece o farfalhar das sacolas da Zara a metros de distância. Ama fast fashion como algumas pessoas amam fast food: mesmo sabendo que faz mal, que é nocivo ao planeta, que o preço não compensa e que o prazer logo se transformará em culpa.
Aos olhos do monstro, nenhuma roupa naquele armário me cai bem. Ele consegue ser mais cruel do que um espelho de aumento. Insiste que não tenho o que vestir. 
É incapaz de enxergar a si mesmo e quer que eu me sinta da mesma forma.
Além de aniquilar minha autoestima, sua missão é me soterrar em dívidas e em blusas com mangas bufantes. Mas o mundo não precisa de mais uma perdulária fantasiada de pirata, e eu estava disposta a romper aquele ciclo vicioso de uma vez por todas.
O problema é que nem os Caça-Fantasmas ou a Marie Kondo em pessoa conseguiriam dar cabo do monstro naquela sexta-feira maldita, conhecida popularmente como Black Friday.
A Black Friday é quando os monstros saem do armário, pisoteando uns aos outros em shopping centers, disputando produtos entre si num cabo de guerra patético, parcelando impulsos a perder de vista.
Eu juro que tentei impedi-lo. Segui o monstro pelas escadas rolantes, entrei com ele em provadores, suportei filas intermináveis em seu encalço, mas ele estava fora de controle.
Achou até que ia me comprar com um presente. E conseguiu. Com um desconto irrecusável, ainda por cima. Não foi o patrão que ficou maluco, fomos nós.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Quanto pior, melhor

Uma releitura da bandeira do Brasil, estampada com um olho humano, que deixa escapar uma lágrima. A obra de autor desconhecido começou a ser difundida nas redes sociais em 2013, muitas vezes acompanhada pelo ambíguo subtítulo “luto pelo Brasil”. 
Qualquer brasileiro com acesso à internet teve a sua retina levemente arranhada pelo “olho patriota”. A ilustração foi o prenúncio de uma crise estética que hoje afeta inúmeras formas de expressão artística.
No campo das artes plásticas, destacam-se instalações infláveis como o icônico pato da Fiesp, o Pixuleco e o Super Moro. 
Entre as performances, a coreografia encenada em um flash mob pró-Bolsonaro em Fortaleza, no período das eleições, deixou seu legado de eterno constrangimento. 
Falando em legado, o autor do funk “Proibidão do Bolsonaro”, MC Reaça, pode não estar mais entre nós, mas sua música segue perpetuando a misoginia que ele praticou em vida.
Já o setor audiovisual sentiu o impacto da atuação do deputado do PSDB Alexandre Frota, que recentemente publicou uma série de vídeos vestido de palhaço e ameaçando opositores. Não é o Coringa que o Brasil precisa, mas o Coringa que o Brasil merece agora. 
Quando o assunto é design gráfico, impossível ignorar a substituição do Photoshop —um dos softwares mais utilizados para manipulação de imagens digitais— pelo Paint Brush do Windows 95 —uma ferramenta mais arcaica, perfeita para ilustrar o amadorismo e os retrocessos do atual governo. 
O boom das camisas da CBF e o figurino de Zé Carioca adotado por Luciano Hang não deixam dúvidas de que a indústria da moda também foi influenciada. Vi, com meus próprios olhos, um manequim em Copacabana usando um top com estampa militar e uma bandeira do Brasil enrolada em volta da cintura como se fosse uma minissaia. 
Mas nada simboliza essa crise estética com mais precisão do que o mural de projéteis do partido Aliança pelo Brasil. 
Os painéis feitos com cartuchos de munição de armas de alto calibre estão em alta.
O presidente da República, Jair Bolsonaro, e o governador do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, já foram retratados com essa técnica, que alude à necropolítica praticada por ambos. 
Um partido que escolheu o número 38, o mesmo de um revólver, não poderia ser melhor representado. Seu logo de projéteis é um ataque à democracia, à população brasileira e às nossas retinas, que nunca estiveram tão vulneráveis.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Uma consulta ginecológica

No já clássico “A Ordem Médica”, do psicanalista Jean Clavreul (Brasiliense, 1983), encontramos uma avaliação muito precisa das condições a que estão submetidos médicos e pacientes na atualidade.
Segundo o autor, não se trata de uma relação entre dois sujeitos nas posições cuidador/cuidado, respectivamente. Trata-se da pretensão de uma relação asséptica entre o saber da medicina e a doença.
Nem médico, nem paciente comparecem como sujeitos, pois a ciência almeja eliminar a subjetividade. É óbvio que toda essa assepsia não existe e resulta, de um lado, na baixa adesão aos tratamentos por parte dos pacientes e, de outro, no famoso “burnout” da classe médica, cuja taxa de suicídio e drogadição é assustadora.
Por quê? Porque “tumor” tem nome, sobrenome, sexualidade, história e o “saber médico”, por sua vez, é encarnado por um sujeito, que tem suas paixões, medos, fantasias. A busca por tamanha isenção é nociva e vem sendo denunciada pela psicanálise desde sua fundação.
E como isso aparece nos excruciantes exames ginecológicos?
Logo de cara a jovem descobre que os exames clínicos femininos requerem uma dose considerável de estoicismo. Deitada de pernas para o alto, passará por uma rotina de coleta de material e apalpação que é tão necessária, quanto desagradável. Calvário de toda mulher que tem o privilégio de receber assistência ginecológica precoce e periódica.
A vida segue e ela terá doenças mais ou menos sérias, filhos, abortos, mais exames, mais invasivos, mais precisos, mais excruciantes. Existe alternativa para o que é necessário? Alguns ginecologistas apostam que sim.
Nesse caso, o ginecologista convida a paciente a acompanhar ativamente o exame —o mesmo que algumas fazem resignadas há tantas décadas, que chegam a esquecer como é grotesco. Começa com a oferta de um espelhinho para que a paciente veja o que se passa com seu corpo durante o processo.
O espéculo, objeto que é desconfortavelmente introduzido para retirada de material do colo do útero, é entregue à paciente para que ela mesma o insira, respeitando sua propriocepção. A vagina, de difícil visualização no dia a dia, lhe é apresentada e todas as explicações lhe são dadas, não para sobrecarregá-la de informações científicas, mas para aproximá-la do próprio corpo. Todos os toques são acompanhados do incentivo para que ela participe ativamente em sua avaliação. Essa pequena revolução atende pelo nome de medicina entre seres humanos.
Essa “nova” forma de clinicar tem sido discutida por coletivos feministas e por profissionais antenados e sensíveis, que se preocupam com a relação da mulher com seu próprio corpo e em como interferir positivamente nessa relação. Não se trata de mais um protocolo a ser reproduzido mecanicamente.
Sabemos como a impessoalidade no método canguru, na assistência ao aleitamento e ao parto vem transformando boas iniciativas em novas imposições à mulher e ao profissional. A “revolução” se resume ao considerar que mulheres não são simples corpos a serem examinados e médicos não são máquinas de fazer exames e aplicar protocolos. Pode parecer pouco, mas tem um efeito surpreendente nas subjetividades.
Depois de décadas, em plena menopausa, com mais horas de consulta ginecológica do que urubu de voo, algumas mulheres se mostram claramente afetadas pelo respeito e consideração despendidos. A frase “nunca esperei me emocionar em uma consulta ginecológica” pode sair da boca de pacientes, mas não sem afetar seus médicos.

Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

Os danos que o sol causa

Eu francamente não entendo a lógica veranil do "está-ridiculamente-quente-então-vou-à-praia-me-expor-diretamente-ao-sol", embora carioca e criada à beira do mar. Sim, a brisa fresca do mar é uma delícia, e o contraste da água gelada sobre a pele quente é divino. Mas quanto mais meu trabalho me ensina sobre biologia, neurociência e envelhecimento, mais quero distância do sol.
O cerne do problema é a nova compreensão de que muito da decrepitude crescente que constitui o processo de envelhecimento do corpo é devido ao acúmulo de danos ao DNA, aquela molécula enorme que constitui os 30 bilhões de pares de unidades do nosso genoma: o repositório de códigos que são traduzidos em proteínas que constroem todas as células. 
Quanto mais tempo se vive, mais danos o DNA acumula. Minha própria pesquisa no momento envolve determinar se são esses danos acumulados pelos neurônios do cérebro que eventualmente encerram nossas carreiras individuais no planeta.
Donde meu novo amor por chapéus e pouca saudade do sol do verão brasileiro: radiação ultravioleta (UV) é sabidamente um grande destruidor de DNA. 
O vermelho do "queimadinho de sol" no rosto é a resposta inflamatória aguda das células da pele aos danos causados ao seu DNA pelo UV solar. O bronzeado? Desejada por muitos e evitada por mim, que aprendi a ficar feliz com o que meu pai denomina minha "brancura-laboratório", pele bronzeada é pele danificada. A melanina adicional até que ajuda a proteger de mais danos, mas também é evidência de que muito estrago já aconteceu.
A pesquisa do holandês Jan Hoeijmakers, na Universidade de Rotterdam, mostrou que camundongos mutantes tornados especialmente incapazes de reparar seu DNA envelhecem prematuramente, padecem de toda forma de decrepitude, e morrem cedo, cheios de danos no cérebro. Tudo vai razoavelmente bem até o fim da infância; depois disso, o fim chega rápido.
De alguma forma, criaturas novinhas são extremamente eficazes em reparar danos ao DNA. Mas quando nos tornamos adultos, mais danos ocorrem do que são reparados, com saldo negativo crescente contra nós. Torrar ao sol é acelerar os danos à pele, se não ao corpo todo.
Não sei se exposição direta à radiação UV (prefiro esse nome, que soa danoso; "raios UV" parecem coisa de herói da Marvel) também acelera o acúmulo de danos ao DNA de neurônios, mas em todo caso, prefiro distância. 
Sol indireto é bom, permite ao corpo produzir vitamina D. Sol direto é para as plantas. 

Texto de Suzana Herculano-Houzel, na Folha de São Paulo

A culpa é da minha deepfake

Há uma impostora, nas redes sociais, se fazendo passar por mim. É um golpe elaboradíssimo, executado por hackers mal-intencionados, que visam nada menos do que o meu cancelamento.
Para aqueles que orbitam fora da lacrosfera, o cancelamento é um linchamento virtual cujo objetivo é fazer justiça com as próprias mãos. As mãos que apedrejam, nesse caso, digitam comentários furiosos e clicam no botão “deixar de seguir”.
Aproveitando-se desse cenário acalorado, o golpe consiste em manipular a imagem da vítima até que ela seja considerada culpada pela mais alta instância do Poder Judiciário: a tribuna do Twitter.
Um dos primeiros a se tornar alvo desse tipo de ciberataque no Brasil foi o então candidato ao governo de São Paulo, João Doria. Envolvido em um escândalo por causa de um vídeo comprometedor —o Suruba Gate—, Doria prontamente se defendeu dizendo-se vítima da tecnologia deepfake, uma técnica de edição que conseguiu emular sua presença (um tanto inexpressiva) em uma orgia com cinco garotas de programa.
Pois minha impostora, criada com essa mesma tecnologia, tem publicado vídeos completamente desconectados da minha realidade. Não precisa ser nenhum Sherlock Holmes para constatar que aquela moça sorridente no Instagram não sou eu. Inclusive, posso comprovar que os meus níveis de serotonina não são compatíveis com aquela felicidade toda.
Postada há alguns dias, uma foto de biquíni que mais parece uma desculpa mal-ajambrada para exibir minha bunda veio de encontro à minha luta diária pelo fim da objetificação dos corpos femininos.
Aquela bunda, apesar de idêntica à minha bunda, não é a minha bunda. E quem me conhece sabe que eu seria incapaz de postar uma bunda em meio à crise política na América Latina.
O pior não é o que a impostora posta, e sim o que a impostora deixa de postar. Seu silêncio sobre o atual governo é ensurdecedor. Aliás, quem poderia discorrer sobre o assunto é a cantora Anitta, cancelada pelo mesmo motivo. Mas ela prefere não se posicionar.
Agora, estou perdendo seguidores que já não eram meus, pois foram usurpados por essa personagem que só existe em um mundo de faz de conta. Um mundo onde é possível ser indiferente.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

Os piratas da insurgência

O povo é explorado pelos ricos. Os Estados Unidos não são o policial do mundo. As grandes empresas tecnológicas têm demasiado poder sobre as nossas vidas. Quem disse isso? Bernie Sanders? Elizabeth Warren? Alexandria Ocasio-Cortez? 
Errado, errado, errado. O autor dessas frases é Stephen K. Bannon, o estratego que levou Donald Trump ao poder e que representa o novo movimento populista de direita. 
Eu já sabia que o populismo era uma espécie de novo marxismo —tosco, conspiratório, maniqueísta. Mas é preciso ver para crer.
Ou, melhor dizendo, ler para crer: sempre fui fã dos Munk Debates, que ocorrem no Canadá e que normalmente juntam duas figuras em confronto sobre um tema quente. Mas tinha perdido o “rendez-vous” entre Bannon e David Frum.
Não mais. Em livro que recomendo —“The Rise of Populism”— lá encontramos Bannon e as suas jeremíadas. E então pasmamos: um progressista de inclinação revolucionária poderia dizer as mesmas coisas que Bannon. Aliás, o próprio mediador do debate, Rudyard Griffiths, faz essa observação. 
A narrativa de Bannon começa com a crise financeira de 2008, causada pelo “partido de Davos” (referência ao Fórum Econômico Mundial que reúne anualmente empresários e políticos nessa localidade suíça). 
Depois, defende o fim do imperialismo americano e, sobretudo, recusa qualquer tentativa de democratizar o mundo pela força (a velha acusação da esquerda contra George W. Bush, por exemplo). 
Finalmente, dedica algumas palavras duras às grandes corporações —tecnológicas, mídia etc.— que não defendem os interesses dos cidadãos. Haverá coisa mais de esquerda? 
É também por isso que, no debate, estou com David Frum. Sobretudo com duas observações de Frum que ganham relevância máxima nos tempos de cólera que vivemos. Para começar, o que é um conservador? 
David Frum, que se apresenta como um, responde: um conservador, no século 21, defende a herança do liberalismo que recebeu do século 20. 
Que o mesmo é dizer: defende o império da lei, a separação dos poderes, a limitação do Poder Executivo, a liberdade de expressão e, já agora, a civilidade social. 
Por outro lado, e sobre a noção de “patriotismo”, concordo com a posição antiutópica de Frum: ser patriota é amar o país que temos, não um país imaginário e expurgado de certos grupos ou minorias. 
Existe um ponto, porém, em que é impossível não concordar com Bannon: se o populismo é uma força revolucionária —e o próprio diz que sim, o que só aprofunda o seu esquerdismo— são os jovens, os “millennials”, que serão o motor dessa revolução. 
Em metáfora feliz, esclarece Bannon: os “millennials” são como os servos na Rússia do século 18. Estão melhor alimentados, têm melhor educação, estão mais informados — mas não são donos de nada. 
Nem serão. Casa? Carreira? Independência econômica? Os pais tiveram isso. Eles, pelo contrário, não podem olhar para o futuro com a mesma confiança. O potencial de revolta que existe neles é gigantesco. 
É uma grande verdade. Que, instintivamente, me fez recordar as “Memórias do Conde de Rambuteau”. 
Conta o conde que, anos antes da Revolução de 1848, um prefeito de Paris teria dito ao rei de França: cuidado com os “déclassés”; eles são “os médicos sem pacientes, os arquitetos sem edifícios, os jornalistas sem jornais, os advogados sem clientes”. 
Por outras palavras: havia uma classe mais letrada, mais preparada, com grandes expectativas sociais e econômicas —mas o sentimento de bloqueio era asfixiante.
E o prefeito avisou ainda: esses jovens serão “os artífices das revoluções, os sacerdotes da anarquia, os piratas da insurgência”. 
Com a típica estupidez dos Bourbon, o rei Luís Felipe só percebeu o aviso quando Paris estava em chamas —e ele, a grande promessa dos reformistas liberais, a caminho do exílio inglês. 
Não sei se Stephen Bannon leu o conde de Rambuteau. Mas Bannon percebeu algo de essencial: os “piratas da insurgência” não acabaram em 1848. 
Sem perspectivas de uma vida decente, ou pelo menos tão decente como a dos seus pais, esses jovens letrados e depenados sempre foram o combustível do radicalismo. 
Só para termos uma dimensão do problema: 9 em cada 10 americanos nascidos em 1940, quando chegaram aos 30 anos, ganhavam mais do que os progenitores quando tinham a mesma idade.
Hoje, informa o cientista político Yascha Mounk, 1 em cada 2 americanos nascidos em 1980 pode dizer o mesmo. É um padrão que se estende às economias do Ocidente. 
A sério: alguém pensa que essa história vai ter um final feliz?

Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

O dia seguinte

Acordou com um feixe de luz lanhando o rosto, o quarto girando junto com o ventilador de teto. Custou a reagir, até que, num impulso, deu início a uma busca frenética pelo quarto, atrás de alguma pista do que tinha acontecido na noite anterior.
Pescou roupas vermelhas espalhadas pelo chão, encontrou uma passagem de ônibus para São Bernardo do Campo na cabeceira. No celular, uma notificação recebida por email confirmava sua filiação ao Partido dos Trabalhadores. Hesitou em abrir a porta do banheiro, com medo de encontrar o Zé Dirceu lá dentro.
Definitivamente, as coisas haviam saído do controle. E ela não tinha apenas convicção disso, tinha provas.
Pouco a pouco, fragmentos de memória foram se juntando como peças de um quebra-cabeça. O expediente estava perto do fim, os colegas de trabalho se apinhavam em volta do computador, assistindo a uma live transmitida de Curitiba. O que aconteceu, em seguida, o Brasil inteiro já sabe: sextou.
O verbo “sextar”, patrimônio imaterial do proletariado em contagem regressiva para o fim de semana, quando o trabalhador pode enfim relaxar e esquecer seus problemas, nunca fez tanto sentido quanto naquela noite.
A democracia respirava, ainda que por aparelhos. Para alguém que já não tinha motivos para comemorar desde 2014, aquela era uma oportunidade a ser agarrada com unhas e dentes.
A festa, no entanto, não fez jus a tanto alarde. O Brasil não virou o Chile, centenas de milhares de criminosos não foram soltos da noite para o dia. Ela decidiu, então, pela catarse coletiva dos que 
entoavam o jingle presidencial de 1989 em looping, na Lapa, às cinco da manhã, sem medo de ser feliz.
Logo ela, que problematizava a idolatria em torno de qualquer figura política, que nunca engoliu a aliança com o antigo PMDB e tantos outros erros que acabaram nos custando tão caro. Agora, revirava o lixo, em busca da autocrítica que havia descartado só por uma noite.
Uma ducha de água fria e alguns goles de Coca-Cola foram o suficiente para ela se dar conta de que, em um Brasil polarizado, é praticamente impossível beber com moderação.

Crônica de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo