Rosa pode ser simples, mas não é boba. Quando bateram na porta, ela estava explicando para Wellington que, desde que o homem se conhece por gente, falar em nome de Deus faz parte de um projeto de poder. E como o toque de recolher já estava valendo e o filho, Pedro, ainda não tinha voltado, ela nem pensou duas vezes antes de abrir, achando que era ele. Não era.
Os Soldados de Cristo em Armas trazem as efígies do presidente e do ministro da Justiça tatuadas nos antebraços direito e esquerdo, respectivamente. Já os Vigilantes de Jesus, que comandam o bairro vizinho, usam as mesmas tatuagens, porém nos antebraços esquerdo e direito, respectivamente. Não quer dizer nada. Serve de salvo-conduto.
As caras do presidente e do ministro da Justiça em geral resultam em borrões aproximativos nos antebraços dos justiceiros de Deus. E nesse caso não eram exceção. Tinham a expressão sinistra das cicatrizes. O que vale é que todo mundo reconhece na hora. E foi a primeira coisa que o Soldado de Cristo em Armas mostrou quando Rosa abriu a porta, para que não houvesse dúvida quanto ao motivo da visita. Os Soldados de Cristo em Armas são autoridade no bairro desde que deixou de haver Estado.
Você não pagou o pedágio de novembro?, Rosa gritou para Wellington, que tinha ido buscar alguma coisa lá dentro.
Claro que paguei, Wellington gritou de volta.
Ele está dizendo que não.
A esta altura, o Soldado de Cristo em Armas já está dentro da sala, com um 38, arma oficial do país, apontado para Rosa. Desde que deixou de haver Estado, a economia se autorregula pelo mercado.
Pra continuar vivo tem que pagar, o Soldado de Cristo em Armas anunciou.
Pra continuar vivo tem que pagar, o Soldado de Cristo em Armas anunciou.
Rosa e Wellington estavam sabendo. Nem precisava ter dito, moço, ela disse, mas antes de poder concluir, um tiro de espingarda arrancou o 38 e um pedaço da mão do Soldado de Cristo em Armas.
Tá louco, Wellington? Não sabe que esses caras têm treinamento policial?
Enchi o saco. Agora, explica pra ele o que tu tava me explicando, Rosa, Wellington disse, diante do Soldado de Cristo em Armas ajoelhado no chão, gritando às cusparadas Puta que pariu! Puta que pariu! e segurando o pedaço de mão que normalmente ficava abaixo da efígie borrada do presidente, com a outra mão, que ainda se encontrava abaixo da efígie do ministro da Justiça.
Explica pra ele, Wellington insistiu, vendo que Rosa estava atônita e paralisada. Conta pra ele a história de Jonas, por exemplo.
Rosa tomou fôlego e começou: Deus mandou Jonas avisar o pessoal lá em Nínive que daquele jeito não ia dar.
Diz pra ele que Nínive era mais ou menos que nem o Brasil hoje, senão ele não vai entender. Tudo fora do lugar, um monte de marmanjo no poder, falando e fazendo merda, blasfemando em nome de Deus, só no desmonte, porque o desmonte era o único objetivo, Wellington exortou à mulher.
Nínive era que nem o Brasil hoje, só no desmonte, Rosa repetiu, e Jonas não estava a fim de ir lá avisar ninguém. Então pegou um navio e fugiu de Deus, mas Deus levantou uma tempestade e o navio só não afundou porque Jonas pediu pra ser jogado no mar, pra salvar os outros no mesmo barco. Bastou ele cair no mar pra vir a calmaria.
Entendeu ou tá difícil?, Wellington perguntou ao Soldado de Cristo em Armas, ajoelhado no chão. E depois, virando-se para Rosa: Diz pra ele que com Jesus isso aí ficou ainda mais claro.
Com Jesus ficou ainda mais claro que servir a Deus não é acusar os outros; é assumir a culpa e se sacrificar pelo bem comum, abrir mão dos privilégios pelo bem de todos, Rosa disse.
Ouviu? A culpa não é dos outros, do sistema e o caralho; a culpa é sua. Não é pra se dar bem em cima da ignorância e da fragilidade dos outros, tirar vantagem da ignorância e da fragilidade dos outros pra encher o cu de grana e foder com o mundo e com o direito dos outros, entendeu? Antes de sair por aí falando em nome de Deus, dizendo que vai fazer justiça em nome de Jesus, você devia olhar pra própria merda. E que merda, né? Wellington se empolgou, assumindo de vez a palavra.
Tá na Bíblia, malandro. Antes de ficar apontando pros outros, devia olhar pra si. Devia saber, já que é fiel a Jesus, Wellington prosseguiu, chegando mais perto do Soldado de Cristo em Armas ajoelhado no chão. Ou melhor, como vocês dizem, Jesus é que é fiel a vocês, certo? E nessa hora, percebendo que o Soldado de Cristo em Armas já não estava em condições de ouvir, muito menos de responder, murmurou no ouvido dele: Jesus não é cão pra ser fiel, meu amigo. Jesus não é cão.
Texto de Bernardo Carvalho, na Folha de São Paulo.