quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Para ateu nenhum botar defeito

Mesmo quem não tem religião pode se interessar pelo engenho, pela imaginação e pela arte de alguns defensores do cristianismo.
Os esforços de um escritor como G. K. Chesterton (1874-1936), por exemplo, não se dirigem tanto para provar “a verdade” de alguns dogmas cristãos —como a virgindade de Maria ou a salvação das almas—, mas o seu “acerto”, do ponto de vista psicológico ou, talvez, humano.
É assim que, em “O Homem Eterno” (Ecclesiae, 2014) ele destaca a beleza, e a novidade, que há na ideia de um Deus tomando a forma de um bebê e nascendo de um casal refugiado, escondido numa caverna.
Para Chesterton, qualquer ateu que tenha vivido, na infância, a experiência do Natal sempre será sensível a um paradoxo imenso.
Irá associar na memória duas coisas absolutamente distintas: a ideia de uma criança indefesa e nua à concepção de uma força desconhecida, capaz de sustentar todas as estrelas. Mesmo perdendo a fé, não perderá o senso obscuro de que há algo de suave e de desprotegido por trás da menção ao nome assustador de Deus.
Há algo de incurável nisso, brinca Chesterton. Posso até achar melhor a ideia de um Deus que está em tudo, na eclosão milagrosa e diária das árvores, dos rios, do céu e das pessoas à minha volta.
Mas é como se, nesse Deus-Natureza que funciona como uma circunferência infinita, faltasse um centro. E o centro de uma circunferência infinita, diz Chesterton, tem de ser infinitamente pequeno.
Com a ideia de um Deus sem-teto, excluído, e até mesmo fora da lei, o cristianismo mudou tudo: “É uma profunda verdade dizer que, desse momento em diante, não era mais possível haver escravos no mundo”.
Lembro que também o judaísmo associa a noção de um povo eleito à de um povo escravo, que se liberta.
Talvez outras religiões tenham contribuições tão valiosas quanto essa; nenhuma deixou de trazer, igualmente, desastres totalmente evitáveis.
Desse ponto de vista, o ateísmo talvez não seja um “nada”, um vazio completo de crença e convicção, mas a depuração, a purificação, a salvação do que há de humano e de bom em qualquer fé religiosa.
Com isso, chego ao pensamento de outro autor, que declara convictamente que “Deus não é uma invenção”. Trata-se de René Girard(1923-2015), cuja obra vem sendo traduzida no Brasil pela editora 
É Realizações.
O autor de “A Violência e o Sagrado” conhece uma voga crescente em outros países, mas aqui a sua “teoria mimética”, aplicada fartamente na literatura e na antropologia, não parece ter muita divulgação.
Da longa bibliografia já disponível em português, leio um livro curto, escrito em colaboração com dois religiosos protestantes, Alain Houziaux e André Gounelle.
Estamos longe dos habituais confortos do catecismo. Provar a existência de Deus, diz Alain Houziaux, é quase irreligioso. “Um Deus que podemos provar é um Deus conforme a nossa lógica. Mas, se Deus existe, ele é certamente independente de nossa lógica e não pode ser provado.”
Se Deus existe, é “de graça”, sem explicação, simplesmente porque sim —como todo o Universo, aliás.
A audácia dessa teologia é enorme, e a meu ver praticamente anula o sentido de qualquer religião.
René Girard vai por outro caminho, atribuindo o fenômeno religioso ao que ele chama de “crise mimética”.
Ele acredita, sem me convencer, que o ser humano é marcado pelo desejo de ter o que o outro deseja; a rivalidade, a inveja, simplesmente destruiriam toda possibilidade de convívio social se não surgisse, de quando em quando, um “bode expiatório”.
Contra esse inimigo imaginário, todos se unem e podem purgar a inimizade que compartilham indiscriminadamente.
Pois bem, a novidade do  reside, para Girard, no fato de que Jesus foi ao mesmo tempo um bode expiatório —detestável e objeto de desprezo— e Deus. Sempre se destruiu o bode expiatório; agora é cultuado, enquanto tal.
Em outro texto, Girard tira dessa teoria, ou desse mito antropológico, uma conclusão escandalosa.
Ao revelar a brutalidade e o erro inerentes a toda religião —sempre, a seu ver, um sacrifício institucionalizado—, o cristianismo foi na verdade o destruidor das religiões. “A morte de Deus é um fenômeno cristão”, diz Girard. “No seu sentido moderno, o ateísmo é uma invenção cristã.”
Como ateu, depois dessa, só posso acrescentar que, seja como for, somos todos irmãos.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

Não consegui conter-me

Este fim de 2018 marcou verdade mais explícita, mas ignorada por uma nação do planeta, a mais infeliz Federação de Corporações.
Não me refiro ao ato indigno feito a um país indefeso de sua ignorância, ao eleger o fascismo para governa-lo. Isso passará e ele continuará, não importa como, se matando e fazendo sofrer seus pobres, ou crescendo no topo da pirâmide e definhando na base, como tem sido.
Falo do presidente Luiz Inácio da Silva, nosso Lula, em cárcere, depois de ter-nos feito País em crescimento e distribuição reconhecidos em todo o planeta. Aos ricos sobrou distribuir migalhas aos pobres extremos e remediados, como nós, e se sentirem aliviados e sem débito com o Deus em que dizem acreditarem.
Curioso. Para ele estar lá, em Curitiba, impedido de passar as Festas com filhos e netos, pois esposa assassinada por Sérgio Moro e o Supremo Tribunal Federal (STF) não estará a seu lado, não há grana, posse, ou bens públicos e corruptíveis provados. Apenas seguidos golpes para eliminar a possibilidade de os pobres terem o líder que elegeriam. Ou não fomos 47 milhões assim?
Falo com vocês, donos de oficiais folhas e telas cotidianas. Por que o escroto de esconderem a verdade? Ah, se fazem neutros, vagabundos? Dentro de seus computadores, editores e proprietários escorrem o fel e o vírus de suas mentiras e covardias. Ninguém mais informados de vocês para conhecerem a verdade. Mas, bostas são, e assim continuarão.
Sob a capa dos ódio, preconceito e servilismo, atendem a seus patrões, não caninamente, que isso faria injustiça aos cães, mas como lacaios do fim do país que tanto lhes proporcionou até aí chegarem.
Lula passou o Natal preso, seus bostas. Nenhuma menção? O ódio privilegiado dos Marinho, Frias, Mesquita, (poucos, não?), através de salários de má sobrevivência, conseguem fazê-los calar?
Pouco respeitos a vocês. Faço meu viver com trabalho digno. Minhas opiniões não carecem de remuneração. Faço-as para apenas poder odiá-los.     
Como imagino muitos de vocês, nesta época natalina, comemorando Jesus Cristo e fazendo-se cristãos, digo que estariam expulsos do templo a chicotadas.
Boas Festas. Com Lula no cárcere, o mesmo em que repetem Hitler, Goering, Eichmann, Goebbels, Himmler, e outros nazistas.

Texto de Rui Daher, no Jornal GGN

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Confusos e distraídos


Uma amiga andou perdendo o sono por causa do Natal. Nada a ver com compras ou presentes. Mas porque, noites em seguida e até de manhã, o tec-tec de uma bolinha de pingue-pongue no andar de cima não a deixava dormir. Ele se perguntava como o casal seu vizinho conseguia jogar pingue-pongue a noite inteira e sair cedo para trabalhar. Mas o mistério acaba de se resolver. Ninguém estava jogando pingue-pongue. Era a gatinha do casal brincando com uma bola que subtraíra à árvore de Natal de seus donos. Essas bolas não são mais de vidro, mas de plástico, como as de pingue-pongue, e fazem o mesmo tec-tec. 
Minha amiga atribuiu o equívoco à sua imaginação, que às vezes se mistura com a realidade a ponto de se confundirem. Ela é daquelas que fazem sinal para o metrô na estação, tentam abrir a roleta com a chave de casa e, ao volante, abaixam a cabeça ao entrar no túnel. Um dia, numa loja, esbarrou num manequim e pediu-lhe desculpas pensando que era o vendedor. Já lhe aconteceu de, ao tomar um ônibus, esquecer o filho no ponto e só se dar conta disso no ponto seguinte. E, fã de jazz, passou uma noite conversando comigo sobre o baterista Gene Krupa. Só que ela o chamava de Frank Capra, que, como se sabe, foi um diretor de cinema. 
Eu próprio vivo dando foras. Há anos, fui apresentado num aeroporto ao cearense Ciro Gomes. Conversamos por alguns minutos e pedi licença: “Bem, tenho de tomar um avião. Tchau, Tasso” —e saí, confundindo Ciro com seu arqui-inimigo na política do Ceará, Tasso Jereissati. 
Às vezes, a confusão é coletiva. Estava eu num botequim com o escritor baiano Marcos Santarrita quando entra um sujeito e me pergunta: “O senhor é o João Ubaldo Ribeiro?”. E eu: “Não. Eu sou o Rubem Fonseca”. Apontei para o Santarrita: “Ele é que é o João Ubaldo Ribeiro”. 
O homem nos abraçou, empolgado. Era fã do Zé Rubem e do João Ubaldo.

Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Para a história

Os 50 anos do AI-5 foram percorridos, de ponta a ponta, por um problema de incorreção histórica ou, no mínimo, de dúvida. Sua intocada existência em nada influencia a visão estabelecida do Ato brutal, mas importa para a caracterização do que o antecedeu e o seguiu.
O entendimento de que o AI-5 foi um golpe dentro da ditadura ainda é, apesar de sua fundamentação, secundário na interpretação do episódio. Desde o primeiro momento, prevaleceu a dedução de que o endurecimento do regime refletia o ditador Costa e Silva. Assim foi, ou porque se sucediam contestações à ordem ditatorial, e o AI-5 repunha a primazia da força, ou porque Costa e Silva ficara identificado como chefe da linha mais dura. Motivos que, aliás, se completavam.
Muitos fatos não se encaixam nas duas explicações. A começar da reunião, nos primeiros dias pós-golpe, de alguns governadores chamados por Costa e Silva ao então Ministério da Guerra, no Rio. A Presidência estava com o interino de sempre, Ranieri Mazzilli, e o Congresso vivia as vésperas de indicar o presidente para complementar o mandato interrompido. Disso o general queria falar. Para advertir os governadores de que se enganavam no apoio ao chefe do Estado-Maior do Exército, general Castello Branco, da corrente militar contrária à devolução do poder aos civis, no tempo previsto. Não foi explícito, mas a insinuação de um civil para o cargo não era imperceptível na exposição.
Carlos Lacerda, pré-candidato nas eleições presidenciais do ano seguinte, insurgiu-se contra as informações e argumentos de Costa e Silva, que traduziu como manobra para prejudicá-lo: Castello também era udenista, e Costa e Silva tinha proximidade com o PSD de Juscelino. O general insistiu em vão. Os udenistas Magalhães Pinto e Ney Braga, também aspirantes à Presidência, reforçaram Lacerda.
Ao final dos três anos seguintes, que Castello presidiu com a supressão das eleições presidenciais, Costa e Silva venceu a dura batalha interna para sucedê-lo. Seu primeiro ano de presidente foi tranquilo, com plena liberdade de imprensa, nenhuma cassação, Congresso livre de pressões, a oposição ativa a ponto de Lacerda, Juscelino e Jango se juntarem em Frente Ampla pela redemocratização. O chefe da linha dura fazia o país entrever liberdades e direitos. Os estudantes aproveitaram.
O que diziam ser a linha branda, exemplificada em Castello, passou a cobrar com parte da imprensa (a de sempre) providências contra "os agitadores". Costa e Silva abriu 1968 com resposta inesperada: no primeiro dia 2, mandou ouvir os estudantes. Lacerda elevou o tom, propagando que os vencedores e os vencidos de 64 iam fazer, unidos, "a verdadeira revolução". Os indícios de inquietação dos extremistas militares se sucediam. Costa e Silva, sob pressões múltiplas, em março foi falar na Escola Superior de Guerra. E, para irritados e aliviados, defendeu a oposição como necessária para vigiar o governo.
A morte do estudante Edson Luís provocou um movimento de massas sem precedente. Houve choques numerosos com as PMs em vários estados. Os apoiadores civis da ditadura, como se pôde ver na imprensa, estavam atônitos. O recurso a ato institucional, arma de Castello, voltava a ser cobrado. A proposta de estado de sítio logo aparecia. Ambos eram assuntos diários. Costa e Silva os abordou um mês depois da fala na ESG: "Não pensei, não penso e não pensarei" nessas medidas. E, para pasmo de todos os lados, se dispôs a conversar com uma comissão representativa das manifestações.
A ditadura estava dividida entre Costa e Silva e uma titubeante articulação contra a linha do governo. Em dezembro, o AI-5 foi levado a Costa e Silva, um texto produzido por seu ministro da Justiça, Gama e Silva. Traição? Sendo, não foi única no ministério. Costa e Silva jogou o jogo. Assinou o Ato. O que lhe restava era repetir o que fez para derrotar a obstrução dos castelistas e chegar à Presidência: levantar forças a seu favor. Morreu antes disso. Seu acidente vascular cerebral foi dado por muitos como efeito do golpe que sofrera.
Quando divulgou sua equipe para o governo, entre jornalistas, escritores e políticos houve uma surpresa: Heraclio Salles, intelectual de alto nível, machadiano, crítico brilhante de literatura, jornalista de política extraordinário, democrata inabalável, seria o secretário de imprensa do ditador Costa e Silva. Emitido o AI-5, Heraclio Salles se demitiu. Na preparação do governo, Costa e Silva convencera-o de que mudaria o regime, e precisava do seu auxílio.
Costa e Silva como governante e seus anos na Presidência esperam ser estudados, para que o país saiba o que foram, afinal: o do AI-5 ou da redemocratização que o golpismo retardou por mais de 15 anos.

Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Tradutora de 'Harry Potter', Lia Wyler morre aos 84 anos, no Rio de Janeiro

A tradutora Lia Wyler, famosa por ter vertido para o português os sete livros da série "Harry Potter", morreu na manhã desta terça-feira (11), em sua casa no Rio de Janeiro. A causa exata da morte não foi divulgada, mas Wyler já estava debilitada há alguns anos, depois de sofrer dois AVCs. Ela tinha 84 anos.
O velório da tradutora será nesta quarta (12), às 8h, no cemitério São João Batista, no Rio. O sepultamento está marcado para 10h30.​
Com os três primeiros livros da série "Harry Potter", ela ganhou prêmios como Monteiro Lobato e o selo de "altamente recomendável" da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, ambos em 2001, entre outros troféus.
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Sua tradução da história de Harry é conhecida por criar versões em português para nomes próprios e palavras inventadas por Rowling, seja de locais ou poções mágicas. É assim que o "Knight Bus", ônibus da série, no Brasil se chama "nôitibus", ou o vendedor de varinhas mágicas, o Mr. Olivanders, ganha o nome de Senhor Olivaras.
Além da saga de J. K. Rowling e outras obras infantojuvenis, ela traduziu para o português a obra de grandes autores do século 20, como John Updike, Saul Bellow e Joyce Carol Oates. Também escritores como Margaret Atwood, Norman Mailer, Isaac Bashevis Singer e Conan Doyle, entre outros.
Lia Carneiro da Cunha Alverga Wyler nasceu em Ourinhos, no interior de São Paulo, mas radicou-se no Rio, onde se formou no curso de letras português-inglês, com especialização em tradução.
Começou a traduzir ainda nos anos 1970, em vários gêneros, como ficção literária e comercial, divulgação científica, verbetes de enciclopédias etc. Nos anos 1990, chegou a ser presidente do Sindicato Nacional dos Tradutores. Um de seus livros, "Línguas, Poetas e Bacharéis", de 2003, é usado até hoje nos cursos de tradução.​

Por Mauricio Meireles, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Irmãos em Livros

Outro dia, num táxi, o motorista me disse que “gostava de ler” e comprava “muitos livros”. Dei-lhe parabéns e perguntei qual era sua livraria favorita. Respondeu que “gostava de todas”, mas, de há alguns anos, só comprava livros pela internet. Ah, sim? Comentei que também gostava de todos os táxis, mas, a partir dali, passaria a andar só de Uber. Ele diminuiu a marcha, como se processasse a informação. Virou-se para mim e disse: “Entendi. O senhor tem razão”.
Tenho amigos que não leem e não frequentam livrarias. Não são pessoas primitivas ou despreparadas —apenas não têm a bênção de conviver com as palavras. Posso muito bem entendê-las porque também não tenho o menor interesse por automóveis, pela alta cozinha ou pelo mundo digital— nunca dirigi um carro, acho que qualquer prato melhora com um ovo frito por cima e, quando me mostram alguma coisa num smartphone, vou de dedão sem querer e mando a imagem para o espaço. Nada disso me faz falta, assim como o livro e a livraria a eles.
No entanto, quando entro numa livraria, pergunto-me que outro lugar pode ser tão fascinante. São milhares de livros à vista, cada qual com um título, um design, uma personalidade. São romances, biografias, ensaios, poesia, livros de história, de fotos, de autoajuda, infantis, o que você quiser. O que se despendeu de esforço intelectual para produzi-los e em tal variedade é impossível de quantificar. Cada livro, bom ou mau, medíocre ou brilhante, exigiu o melhor que cada autor conseguiu dar.
Uma livraria é um lugar de congraçamento. Todos ali somos irmãos na busca de algum tipo de conhecimento. E, como este é infinito, não nos faltarão irmãos para congraçar. Aliás, quanto mais se aprende, mais se vai às livrarias. 
Lá dentro, ninguém nos obriga a comprar um livro. Mas os livros parecem saber quem somos e, inevitavelmente, um deles salta da pilha para as nossas mãos.

A crônica é de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Votaram em quem?

No segundo turno das presidenciais, vários amigos e conhecidos votaram em Haddad, "tapando o nariz" sobre o cheiro do PT. Outros, com sentimentos parecidos, anularam seu voto.
Para outros, porém, a decepção falou mais alto do que qualquer desconfiança: votaram em Bolsonaro para votar contra o PT, cansados da corrupção, do aparelhamento do Estado e da incompetência do governo Dilma.
E, ainda, vários amigos e conhecidos meus votaram em Bolsonaro positivamente, ou seja, não contra o PT, mas por aquilo que o candidato propunha: mais segurança, menos corrupção e uma guinada liberal na economia.
A maioria desses amigos e conhecidos bolsonaristas declara de antemão que despreza os ranços bizarramente caretas da campanha de Bolsonaro. Mas eles sequer se preocupam com isso, pois lhes parece óbvio que os evangélicos e os TFPs não irão interferir na vida de ninguém.
Esses dois grupos dos eleitores de Bolsonaro que eu conheço —os que afirmam que votaram contra o PT e os que dizem que votaram para uma mudança econômica sem a qual o país iria pelo ralo— têm algo em comum: nas conversas que eu presenciei, eles afirmam que votaram em Bolsonaro e, a seguir, também afirmam que eles não concordam com o moralismo tacanho, por exemplo, dos futuros ministros da Educação ou das Relações Exteriores.
"A cada vez que via a Gleisi Hoffmann na TV, queria votar mais no Bolsonaro, mas não tenho nada a ver com Malafaia, viu?" "Votei nele, sim, mas sou totalmente feminista; o que importa hoje é permitir ao país uma virada modernizadora, justamente."
Claro, entre os eleitores de Bolsonaro, deve haver uma parte grande de indivíduos explicitamente engajados no projeto de impor aos outros as regras de conduta que eles idealizam (e que eles mesmos, aliás, mal conseguem seguir). Os indivíduos que gostam de regrar a vida dos outros, eu chamo de boçais —salientando que os boçais não são uma prerrogativa do eleitorado de Bolsonaro, eles existem no espectro político inteiro.
Os bolsonaristas com quem converso não são boçais: eles dizem que votaram quer seja contra o PT, quer seja para promover uma reforma liberal da economia —sem por isso apoiar em nada as ideias ou o temperamento autoritário dos que gostariam de regrar o comportamento dos outros.
Agora, a questão está justamente aí: "eles dizem" isso MUITO. À força de escutar negações preventivas que não eram solicitadas nem por mim nem por ninguém, comecei a duvidar delas.
Para a psicanálise, a negação não solicitada é suspeita: "Sonhei com uma mulher mais velha, loira como minha mãe, mas não era minha mãe, não era mesmo". Claro, claro...
Da mesma forma, negando com força sua adesão à agenda mais boçal da base de seu candidato, talvez esses eleitores estejam revelando uma adesão que eles mesmos, racionalmente, ignoram.
Para esses eleitores que se consideram "esclarecidos", o ranço autoritário, antidemocrático, homofóbico, misógino e racista não seria algo que eles tiveram que engolir (tapando o nariz) para acabar com o PT ou para ter uma política econômica liberal. Na verdade, para eles, o tal ranço talvez seja a verdadeira razão para eles votarem em Bolsonaro —uma razão que eles escondem de si mesmos.
Não só no Brasil, ao longo dos últimos 30 anos, constituiu-se uma classe média aparentemente esclarecida, ou seja, que compartilha, em tese, o ideal social-democrata que parecia prevalecer no mundo.
Mas 30 anos é muito pouco, e a mudança pedida é muito grande: essa classe supostamente esclarecida engoliu mas não digeriu quase nada das "conquistas" das últimas décadas —nem o feminismo, nem o MeToo, nem os direitos das minorias raciais e sexuais— e, no fundo, nem os próprios direitos civis.
Ao contrário, o aparente triunfo dessas reivindicações as tornou mais indigestas para essa classe, que certamente gostava de seus pequenos privilégios mais do que ela admitia.
Seu racismo, sua misoginia e sua homofobia ficaram como uma espécie de pequena dor de dentes, quase esquecida. Até o dia em que alguém veio liberá-los, ou seja, conclamar que não era vergonhoso pensar nada do que eles não se permitiam mais pensar.
Alguns foram para a rua caçar veado. Outros foram para exterminar vermelhos. Outros ainda, para censurar e chantagear professor. Outros, os mais modestos, disseram que eles não concordam, mas, enfim, é preciso salvar o país, não é?

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Meu Primeiro Livro

"Capitães da Areia" foi o primeiro livro de que gostei. "Cem Anos de Solidão" foi o primeiro livro que me deu vergonha de contar que não tinha gostado. "Perto do Coração Selvagem" foi o primeiro livro que me fez não entender nada de um jeito tão dolorido que aprendi que esse era um jeito de entender as coisas.
"Lolita" foi o primeiro livro longo que devorei em dois dias. "Um Copo de Cólera" foi o primeiro livro curto que demorei meses degustando. "O Complexo de Portnoy" foi o primeiro livro que me veio à cabeça quando me perguntaram, em um programa de rádio cujo tema era feminismo: "Qual seu livro preferido?".
"Dom Casmurro" foi o primeiro livro que me apresentou ao narrador neurótico, o meu preferido. "Máquina de Pinball" foi o primeiro livro que me fez perceber que existiam escritores da minha idade, falando deles mesmos de um jeito destrambelhado e corajoso, e que era isso o que eu queria fazer da vida. "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" foi o primeiro livro que me mostrou que eu deveria saber escrever para além dos temas que eu gostava de tratar.
"O Lobo da Estepe" foi o primeiro livro que levei para a praia quando eu tinha um namorado muito feliz que andava com uma galera ainda mais animada e, cada vez que eles faziam "uhuuuu" e eu queria morrer, eu lia mais uma página e mais uma página, e cá estou eu, vivinha. "A Insustentável Leveza do Ser" foi o primeiro livro que eu li para agradar um namorado ultra-angustiado. "A Vida Sexual da Mulher Feia" foi o primeiro livro que me fez gargalhar tão alto numa ponte aérea que a moça ao meu lado mudou de lugar. "O Filho de Mil Homens" foi o primeiro livro que me fez falar: "Caceta, acho que esse é o livro mais lindo que eu já li na vida!".
"Retrato de um Viciado Quando Jovem" foi o primeiro livro que me deixou tão obcecada pelo autor que eu o persegui pelas ruas da Flip gritando: "Your book inspired me to write mine", e meu marido falou: "Tem que falar 'has inspired'", e eu gritei de novo, e o cara (Bill Clegg, te amo) acenou de longe num misto de educação e pavor.
As "Obras Completas de Freud" foram as primeiras obras completas que eu comprei, e não tem nada no mundo que me deixe mais fascinada e curiosa do que ler psicanálise. "O Demônio do Meio-Dia" foi o primeiro livro que eu parei de ler de tanto que eu estava gostando. "Grande Sertão: Veredas" é o primeiro livro que eu tento retomar toda semana há 15 anos.
"A Criança e o seu Mundo" foi o primeiro livro que ganhei quando fiquei grávida. "O Amor Acaba" foi o primeiro livro que ganhei quando achei que ia me separar e —que bom!—​ não me separei e o amor não acabou e fizemos uma filha.​
"O Discreto Charme do Intestino" foi o primeiro livro que me fez cogitar uma colonoscopia, mas ainda sigo sem coragem.
"O Apanhador no Campo de Centeio" foi o primeiro livro que me fez pensar que eu também tinha um enorme saco cheio de tudo.
Hoje, amanhã e neste Natal, dê livros. E no Natal do ano que vem também. Se a pessoa que ganhou o livro te olhar feio, lhe dê mais cinco livros. Não desista das pessoas ou, o que costuma querer dizer a mesma coisa: não desista dos livros. Compre livros, dê livros e, sobretudo, leia muitos livros. A Netflix não está passando por nenhuma crise, então a deixemos um pouco de lado. Salvemos nossos maiores e melhores amigos. Ninguém solta a mão de ninguém, a não ser que seja para segurar um livro.

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo