Um dos poucos campos da neurociência em que pesquisadores brasileiros podem tomar a dianteira mundial é a ciência psicodélica, apontou reunião realizada quinta-feira (13) em Campinas. E a ayahuasca, chá também conhecido como Santo Daime, está no centro desse sonho.
Cerca de 120 pessoas —várias delas jovens ayahuasqueiros— compareceram ao fórum “A Neurociência dos Psicodélicos: Uma Revolução em Curso”. O auditório Zeferino Vaz, no Instituto de Economia da Unicamp, ficou quase todo o tempo lotado.
“É uma imensa oportunidade [para o Brasil]”, disse Sidarta Ribeiro, neurocientista do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), um dos cinco palestrantes. “Nós temos de fazer isso antes que os gringos e os chineses façam.”
Psicodélicos —LSD, MDMA (base do ecstasy), mescalina, psilocibina etc.— são definidos como compostos que agem sobre receptores do neurotransmissor serotonina, envolvido, entre outras coisas, na regulação do humor. A maioria está no rol de substâncias de abuso, proibidas, o que dificulta obter as substâncias e licenças para fazer pesquisas.
Podem provocar visões, como a ayahuasca (as “mirações” de que se fala em cultos como Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha). Neste caso, contudo, o chá feito com o cipó mariri e a erva chacrona foi legalizado no país para uso ritual.
Os psicodélicos já foram drogas legais, muito estudadas nas décadas de 1950 e 1960 como possíveis remédios associados a psicoterapia. Tornou-se famoso o LSD, cujo efeito alucinógeno foi descoberto em 1943 pelo químico suíço Albert Hofmann, da Sandoz.
O LSD caiu nas graças da contracultura e, associado com a contestação política, sobretudo com o movimento hippie e a oposição à Guerra do Vietnã, terminou proibido nos EUA em 1970. Uma convenção da ONU de 1971 requer que seus membros o proíbam.
O proibicionismo redundou no quase desaparecimento da pesquisa psicodélica, apesar de resultados iniciais promissores no tratamento de alcoolismo e depressão. Nos últimos anos, ela vem passando por um renascimento, capitaneado pelo emprego do MDMA na recuperação de estresse pós-traumático —estudo de grande interesse para veteranos de guerra dos EUA, onde a droga está perto de obter aprovação para esse fim.
No Brasil, a ayahuasca vem sendo estudada em grande parte pela facilidade de acesso, mas também pelos relatos de efeitos benéficos obtidos em cultos. Pesquisa recente liderada por Dráulio Araújo, da UFRN, encontrou melhora significativa entre pacientes deprimidos.
Foi o primeiro estudo feito no mundo usando psicodélico para depressão com controle de um grupo placebo (no caso, um chá marrom de gosto ruim, como a ayahuasca). Saiu publicado no periódico Psychological Medicine, após ser recusado por uma dúzia de outras revistas especializadas, talvez por preconceito contra a droga ou o local de pesquisa.
A ambição dos neurocientistas brasileiros, agora, é ir além dos estudos comportamentais e partir para elucidar os mecanismos bioquímicos e neurológicos do efeito psicodélico.
A química da ayahuasca foi o tema da palestra de Alessandra Sussulini, do Laboratório de Bioanalítica e Ciências Ômicas Integradas da Unicamp. Ela usou análises por cromatografia e espectrometria de massa para caracterizar a presença de quatro compostos alcaloides conhecidos do chá: DMT (dimetiltriptamina), harmina, harmalina e tetraidroarmina.
Sussulini encontrou grande variação, nas 38 amostras fornecidas por cultos tradicionais, entre as concentrações relativas do quarteto de substâncias, como seria de esperar num preparado obtido de plantas. Mas um padrão emergiu: a mais abundante era a tetraidroarmina, seguida de harmina, DMT e harmalina.
Mais problemáticas se revelaram outras 39 amostras conseguidas em outras fontes, como grupos europeus, de países em que a ayahuasca não está autorizada. Não só a concentração dos quatro compostos variava ainda mais como ainda foram encontradas outras substâncias psicoativas, como mescalina e psilocibina e até drogas antidepressivas.
Conclusão: os chás que não foram preparados no contexto dos cultos brasileiros haviam sido “batizados”. Não deixa de ser um argumento em favor da legalização, pondera Luís Fernando Tófoli, da Unicamp, organizador do evento: a proibição, no caso, levou à circulação de formulações mais perigosas.
O fórum se encerrou com uma apresentação conjunta de Sidarta Ribeiro, da UFRN, e Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’Or de Ensino e Pesquisa —duas estrelas brilhantes no pequeno firmamento da ciência psicodélica nacional.
Ribeiro apresentou como seu grupo do Instituto do Cérebro potiguar vem usando ratos para esmiuçar os efeitos de psicodélicos. Rehen, de seu lado, falou de como busca fazer o mesmo com recurso a “minicérebros”.
Os organoides são cultivados a partir de células-tronco derivadas de células adultas coletadas da urina de pacientes. Primeiro elas são induzidas a se transformar em neurônios, que são depois postos a se reproduzir e se organizar em frascos que ficam girando, resultando em corpos tridimensionais de alguns milímetros que começam a formar estruturas similares a tecidos neurais, como córtex e até um proto-olho.
É um mundo novo e admirável de pesquisa, que mal está começando.
Fonte: Folha de São Paulo.
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