Até que enfim Wolfgang Streeck chegou ao Brasil. Veio na forma de um livro que saiu do âmbito dos estudos acadêmicos e ganhou milhares de leitores na Europa: "Tempo Comprado - A Crise Adiada do Capitalismo Democrático" (ed. Boitempo, 240 págs.).
Streeck, um sociólogo de 71 anos especializado em crises econômicas, deu aulas nos Estados Unidos e é diretor emérito do Instituto Max Planck, na Alemanha, onde nasceu.
Seu livro é um estudo bem embasado e criativo da crise econômica de 2008.
Streeck a vê como um processo que se inicia no fim dos anos 1970. Foi quando começou a entrar em colapso o período de progresso que se iniciara com a vitória sobre o nazifacismo.
Nos países ricos, a organização social arquitetada no pós-guerra buscava fazer frente à imprevisibilidade dos mercados e legitimar o capitalismo democrático —que serviria de dique duplo para regressões fascistas e tentações socialistas. Foram os 30 anos de ouro da social-democracia e do Estado de bem-estar social.
A intervenção na economia, o planejamento estatal para garantir o desenvolvimento, a redistribuição de bens e serviços e a proteção social comportavam uma utopia, reformista e de longo prazo. Controlados, lucros e juros decresceriam suavemente —o capitalismo se dissolveria.
O sistema não era, como se diz hoje, autossustentável. O incremento tecnológico tanto aumentou a produtividade como fez minguar o papel da maior força de trabalho, o próprio homem. A taxa de lucro diminuiu, forçando, de um lado, a monopolização e, de outro, as disputas intercapitalistas.
Streeck historia esse processo com dados econômicos oficiais. Constata que ele teve três consequências. Os índices de crescimento caíram nos países capitalistas maduros, a desigualdade voltou a níveis pré-Primeira Grande Guerra, e a dívida, pública e privada, explodiu. É essa a crise.
Ela foi enfrentada com a emissão de mais dinheiro. Ou seja, pela inflação; pela concessão de crédito sem lastros concretos; pelo desbalanceamento dos orçamentos públicos. O tumulto de 2008 foi, pois, triplo: conjugou crise bancária (inadimplência), crise fiscal (Estados falimentares) e crise da economia real (estagnação e desemprego).
A concepção de classes sociais de Streeck é sumária. Para ele, as duas principais são formadas pelos que dependem da remuneração de seu trabalho e pelos que vivem de rendas do capital. Uma seria o Povo do Estado (Staatsvolk). A outra, o Povo do Mercado (Marktvolk).
O primeiro povo é formado por cidadãos nacionais que precisam de serviços públicos e votam pelos seus direitos. O segundo povo é de investidores internacionais que têm créditos a receber e estão mais interessados em taxas de juros do que em eleições.
É óbvio quem vem vencendo a luta entre os dois povos-classes. O arsenal dos dominantes é vasto: privatizações; preservação dos bancos que "eram demasiado grandes para quebrar"; corte de aposentadorias e aumento os anos de trabalho; congelamento dos orçamentos estatais; entrega da gestão econômica à grande finança (oi, Meirelles).
Resta, porém, outra evidência grandiloquente: nada disso está dando certo. Os cortes na carne do Povo do Estado têm impacto negativo no desenvolvimento econômico. "A tarefa de conciliar a austeridade com o crescimento assemelha-se à quadradura do círculo; ninguém sabe realmente como resolvê-la", afirma Streeck.
O Povo do Mercado capturou os Estados e repete a cantilena da austeridade, da facilitação do crédito, da emissão de dinheiro fictício para cobrir despesas reais. Já o Povo do Estado elege partidos que dizem representá-lo. Uma vez no poder, porém, eles rezam conforme o Mercado quer.
Ambos os lados tentam ganhar tempo. Querem preservar um sistema crescentemente irracional, que desorganiza a vida de milhões, mas do qual dependem. Agem como o Barão de Münchhausen, que tentava sair do solo puxando os próprios cabelos.
Está aí a raiz do decantado descrédito da política. O que fazer? "Tempo Comprado" conclui com audácia: "A alternativa a um capitalismo sem democracia seria uma democracia sem capitalismo".
Mas não se espere de Wolfgang Streeck loas à aurora vermelha que virá inelutavelmente. Como não há um sujeito histórico capaz de liderar a transformação, as disfuncionalidades não têm desenlace à vista. A catástrofe, que a gentil leitora pode contemplar ao abrir a janela, prosseguirá.
Pessimismo? Não, realismo. Melhor assim. É na realidade que vivemos, e ela pode ser mudada.
Texto de Mário Sérgio Conti, na Folha de São Paulo.
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