Parece um paradoxo. A maior parte das forças políticas e a maior parte dos analistas consideram nosso sistema tributário essencialmente equivocado. O Brasil taxa muito o consumo e pouco a renda e a propriedade e, por isso, os mais pobres pagam proporcionalmente mais imposto do que os mais ricos, uma distorção absurda chamada de regressividade. O paradoxo consiste no fato de que, embora essa regressividade seja quase que universalmente condenada, ninguém se empenha em revertê-la. Tanto quando fomos governados pelo PSDB, como quando fomos governados pelo PT, os pobres seguiram pagando proporcionalmente mais impostos do que os ricos – na verdade, a diferença entre o que pagam até aumentou.
Reformar o sistema tributário não é trivial. A mudança é tão necessária quanto é difícil, porque implica não apenas em redistribuir a carga entre os mais ricos e os mais pobres, como entre as unidades federativas (Estados e municípios) e as destinações vinculadas (saúde, educação, assistência social). Em parte por isso, até pouco tempo atrás, o nosso sistema era uma espécie de monstro que só crescia na sua monstruosidade, já que era mais fácil ampliar ou criar mais um tributo injusto do que reordenar o conjunto.
Mas o obstáculo maior nunca foi a engenharia política requerida para fazer uma reforma tributária – o maior obstáculo sempre foi o de enfrentar a resistência dos ricos que não pagam e não querem pagar impostos como o resto dos brasileiros. Quando se decidiu aumentar a carga tributária, mudanças mais ou menos simples como cobrar mais imposto de renda para faixas de renda mais altas, cobrar imposto sobre os lucros e os dividendos, cobrar mais imposto territorial rural e mais imposto sobre a herança, sempre foram preteridas em prol de saídas mais "fáceis" como os impostos indiretos que oneram mais os pobres.
A falta de empenho em mudar o nosso sistema tributário é difícil de aceitar. Somos um dos países mais desiguais do mundo e nosso sistema tributário, ao invés de reverter a situação, a acentua. E nosso sistema político, da direita à esquerda, não parece dar muito prioridade para a questão.
Países que já têm sistemas tributários progressivos, como a França, os Estados Unidos e a Inglaterra tiveram seus processos eleitorais mais recentes marcados pelo debate sobre se seus impostos deveriam ser mais progressivos, com tributos ainda mais duros para os ricos. Hillary Clinton, nos Estados Unidos, propôs sobretaxar em 4% aqueles que ganham mais de 5 milhões de dólares e ampliar o imposto sobre a herança; Jeremy Corbyn, na Inglaterra, propôs ampliar o imposto de renda sobre salários acima de 80 mil libras e criar uma sobretaxa às empresas de 2,5% sobre salários maiores que 330 mil libras e 5% sobre salários maiores que 500 mil libras; finalmente, na França, Jean-Luc Mélenchon simplesmente propôs taxar em 90% os rendimentos acima de 400 mil euros, praticamente criando um teto.
Enquanto isso, o tema segue ausente por aqui, com as exceções retóricas de praxe. Nos 14 anos em que governou o Brasil, a esquerda preferiu não mexer na distribuição do ônus tributário, limitando-se a aproveitar o boom das commodities para financiar programas sociais – iniciativa relevante para aumentar a renda dos mais pobres, mas insuficiente para diminuir a desigualdade na velocidade que a urgência social requer.
Está mais do que na hora de colocarmos em primeiro plano a agenda de uma reforma tributária com vistas a um sistema progressivo. Só com ele poderemos reduzir nossa vergonhosa desigualdade e levar a cabo a construção dos nossos serviços públicos de educação, saúde e previdência, cuja sustentabilidade está atualmente ameaçada.
Texto de Pablo Ortellado, na Folha de São Paulo.
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