Fiquei com uma lembrança totalmente errada de "Taxi Driver", filme de Martin Scorsese que volta agora ao Cinesesc, mais de 40 anos depois de seu lançamento.
Pensava que era mais uma daquelas histórias de vingança pessoal, no estilo de Charles Bronson, em que o protagonista é vítima da injustiça ou da indiferença das autoridades, partindo para fazer justiça com as próprias mãos.
O epílogo de "Taxi Driver" até sugere algo assim, mas provavelmente é pura ironia. O filme parece mostrar, antes de tudo, o vazio mental, a burrice, o deserto espiritual e ideológico de toda a sociedade americana.
Até a personagem mais espertinha, que trabalha no comitê de um candidato à Presidência dos Estados Unidos, é de dar pena. Entra na conversa, nitidamente desarticulada e quase assustadora, do motorista de táxi vivido por Robert De Niro.
Ex-combatente do Vietnã, e com sequelas psicológicas que no começo se disfarçam na rotina indiferente de seu trabalho nas ruas de Nova York, De Niro aborda a mocinha como se tivesse a missão de salvá-la de alguma coisa, leva-a para um programa que qualquer pessoa logo vê tratar-se de uma fria.
Ainda assim, Betsy (Cybill Shepherd) é menos burra do que o candidato para quem trabalha, capaz unicamente de dizer que com ele o povo será dono de seus destinos. Que destinos? O triste, na Nova York de Martin Scorsese, é que ninguém sabe o que fazer da própria vida.
Um taxista veterano, a quem Robert De Niro pede conselhos, não consegue ir além de afirmar que seu trabalho é levar pessoas de um lado para outro. No fim, nem sabe exatamente o que Robert De Niro está perguntando, e este tampouco tem condições verbais de se explicar.
Há, em tudo, a noção de que algo precisa ser salvo de alguma coisa. Os Estados Unidos tinham, durante a Guerra Fria, a crença de que valia a pena lutar contra o comunismo. Depois do Vietnã, essa bandeira caiu provisoriamente no vazio.
O taxista se volta contra sua realidade imediata. Há muita sujeira na cidade, diz ele. Pensa em grandes jatos d'água expulsando drogados, prostitutas e vagabundos das ruas onde circula.
Fora isso, não sabe muito o que fazer. Poderia cuidar bem de uma mocinha solitária e elegante ou fuzilar assaltantes de um mercadinho; tirar uma prostituta das ruas ou cometer algum tipo de atentado político.
Qualquer coisa serve. Houve a moda, em meados do século passado, do "rebelde sem causa", no gênero de James Dean ou Marlon Brando. O taxista de Robert De Niro seria o inverso, um tipo de "ordeiro sem causa", querendo restaurar algo que ele não sabe direito o que é.
Antes disso, o "Estrangeiro" de Albert Camus encarnava uma espécie de mal-estar que não chegava a ser rebeldia, e não tinha referência consciente ao desajuste geracional ou a desencaixes sociais. Vivia a falta de sentido.
Mas uma coisa é se ver jogado de repente num mundo sem explicação, experimentar a "Geworfenheit" heideggeriana. Outra é imaginar que o sentido existia, mas que o tiraram de você.
Num caso, você nasceu num quarto vazio; no outro, retiraram os móveis e puxaram o seu tapete.
Natural que sua reação seja destrutiva também. O razoável, claro, seria cuidar de mobiliar novamente o lugar destituído, mas aí seria preciso uma dose de paciência e imaginação que nem sempre possuímos.
A vontade que surge, portanto, é outra. Já que nada sobrou para mim, que se faça a limpeza geral.
Entenderemos as demolições como sinal de progresso. Onde há mato, que se ponha cimento. Onde há camelôs, que se faça o rapa na calçada.
Onde há cracolândia, que se limpe o terreno. Onde houver imigrantes, que se construam muros. Se o muro estiver pichado, que seja pintado de branco.
A mania de limpeza não é sempre negativa. A Lava Jato também possui esse propósito purificador, e isso representa um progresso.
O problema é que, como no caso do taxista de Scorsese, o desejo de destruição, de assassinato, de devastação tende a sobrepor-se aos procedimentos mais racionais e cuidadosos da lei.
É assim que nos países desenvolvidos, desde Bush, encontrou-se nova missão para dar sentido à vida nacional: o combate ao terrorismo. Curiosamente, os terroristas isolados que atacam suas capitais também vivem o mesmo vazio, e o preenchem com missão igualmente destrutiva.
Qualquer dia, não sobra nada mesmo.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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