sábado, 29 de novembro de 2014

Criador de Chaves e Chapolin morre aos 85

ILUSTRADA EM CIMA DA HORA

Criador de Chaves e Chapolin morre aos 85

Protagonista de séries exibidas no SBT desde 1984, Roberto Bolaños sofria havia anos de problemas respiratórios
No ar até hoje, programa sobre vila mexicana fez de canal líder do ibope e tornou personagem um fenômeno popular
DE SÃO PAULO

O ator mexicano Roberto Bolaños, criador e intérprete dos personagens Chaves e Chapolin nas séries homônimas, morreu na tarde desta sexta-feira (28) aos 85 anos.
Ele estava em sua casa em Cancún, no México, onde morava com a mulher, a também atriz Florinda Meza, que vivia a personagem Dona Florinda em "Chaves". A causa da morte não foi divulgada.
O ator sofria de problemas respiratórios havia anos. Em março de 2012, foi internado em um hospital na Cidade do México com insuficiência respiratória. Desde maio último, a imprensa mexicana dizia que sua saúde inspirava cuidados.
Na época, seu filho Roberto declarou que Bolaños passava bem, mas que estava com dificuldades de locomoção. Em 10 de novembro, sua filha Paulina publicou no Twitter uma foto ao lado pai, que aparecia respirando com a ajuda de aparelhos.
A série "Chaves", que retratava o cotidiano dos moradores de uma vila, estreou em 1971 e tornou-se um fenômeno mundial, sendo transmitida em países como Tailândia e Rússia. No Brasil, estreou em 1984 no SBT, onde é exibido até hoje.
O canal, que tem um especial gravado sobre a morte do ator desde o ano passado, com depoimentos de fãs, ainda guarda episódios inéditos do programa. Pelo menos 39 histórias estão engavetadas.
"Chaves" foi ao ar pela primeira vez no Brasil no programa "TV Pow", com o episódio "Caçando Lagartixas", quatro dias após "Chapolin".
Ao longo dos anos, as séries foram retiradas do ar algumas vezes, mas sempre voltavam, graças às reclamações dos fãs. O SBT interrompeu ontem a exibição de "Chaves"para anunciar a morte do ator --que ficou entre os tópicos mais populares no Twitter mundial.
"Chaves" já esteve entre as maiores audiência do SBT, chegando até à liderança. Há cinco anos, registrava média de 12 pontos. Atualmente marca sete pontos, ficando em terceiro lugar no horário. Cada ponto equivale a 65 mil domicílios na Grande SP.
O elenco do programa dizia que o Brasil era o país em que "Chaves" mais fazia sucesso no mundo. O último post de Bolaños no Twitter --em que tinha mais de 6,6 milhões de seguidores-- foi uma mensagem de amor ao país. "Todo o meu amor para o Brasil", escreveu na quarta (26), em resposta a uma fã brasileira.
Bolaños viveu um triângulo amoroso com seus colegas de série Carlos Villagrán, o Quico, e Florinda Meza, a dona Florinda. A atriz namorou Villagrán por anos antes de engatar um relacionamento com Bolaños. Villagrán deixou então o programa para seguir carreira solo.
Essa não foi a única desavença no elenco: Maria Antonieta de Las Nieves, a Chiquinha, brigou com Bolaños em 1994 e iniciou uma disputa na Justiça para manter o direito de uso de sua personagem, que venceu em julho de 2013.
"Chapolin", exibida originalmente até 1979 (e reprisada até hoje), parodiava programas americanos de heróis. De Las Nieves e Ramón Valdés, o Seu Madruga de "Chaves", integravam o elenco.
O ator deixa seis filhos, de seu primeiro casamento.


Reprodução da Folha de São Paulo

P.D. James, dama dos livros policiais, morre aos 94 anos

P.D. James, dama dos livros policiais, morre aos 94 anos

Escritora britânica tornou-se célebre com os romances protagonizados pelo investigador Adam Dalgliesh
Em uma de suas últimas entrevistas, autora disse ter planos de escrever mais um livro, que não foi publicado
RAQUEL COZERCOLUNISTA DA FOLHA

A escritora britânica P.D. James, que se consagrou por retratar as transformações da sociedade inglesa em romances policiais, morreu nesta quinta (27), aos 94 anos.
A editora inglesa Faber & Faber informou em nota que a "baronesa James de Holland Park" --título recebido em 1991--, "mãe, avó e bisavó muito amada", morreu "pacificamente" em sua casa em Oxford, na Inglaterra. A causa não foi divulgada.
Considerada um dos maiores nomes do gênero policial, P.D. James escreveu 19 romances, 14 dos quais protagonizados pelo detetive Adam Dalgliesh, e três livros de não ficção, inclusive o ensaio "Segredos do Romance Policial", publicado em 2012 pelo selo editorial Três Estrelas, do Grupo Folha.
O mais recente romance, "Morte em Pemberlay", espécie de sequência policial de "Orgulho e Preconceito", de Jane Austen, saiu em 2011 e foi editado em 2013 pela Companhia das Letras, que detém 16 de seus livros no catálogo.
Phyllis Dorothy James nasceu em 3 de agosto de 1920 e deixou a escola aos 16 anos, para seguir carreira no serviço público, como o pai. Aos 21, casou com Ernest White, com quem teve duas filhas.
White lutou na Segunda Guerra e saiu dela com problemas mentais, incapacitado para trabalhar, o que levou James a sustentar a família desde cedo, atuando nas áreas de saúde e polícia.
Nos intervalos entre o trabalho e os cuidados com a família, começou a escrever.
"Eu planejava a trama no caminho para o trabalho e escrevia durante os finais de semana e nos feriados. Foi por isso que demorou tanto. Comecei o livro com 35 anos e tinha 42 quando ele foi publicado", disse a escritora à Folha, em 2006, em referência a "Cover her Face", de 1962.
O romance de estreia, editado em 1984 pela Francisco Alves como "A Chantagista" e hoje no catálogo da Companhia das Letras como "O Enigma de Sally", foi contratado pelo primeiro editor que leu o manuscrito.
Como explicou, em 1994, à revista "Paris Review", James sempre teve a intenção de se tornar escritora e começou com policiais como aprendizado para depois se dedicar a romances "sérios".
O sucesso internacional veio em 1980, com "Innocent Blood", em que uma jovem descobre um segredo criminoso envolvendo sua adoção.
James vendeu os direitos do livro por 380 mil libras (equivalente hoje a quase R$ 1,5 milhão) e para o cinema por outros 145 mil libras (cerca de R$ 570 mil hoje) --mais do que ela ganhara nos dez anos anteriores no serviço público. E então se aposentou. "Comecei a semana relativamente pobre e, ao final dela, não era mais", ela lembrou.
Seu romance distópico "The Children of Men" foi adaptado por Alfonso Cuarón no filme "Filhos da Esperança" (2006), com Clive Owen e Julianne Moore nos papéis principais, e concorreu a três Oscar, incluindo o de roteiro adaptado.
Ao longo da carreira, ela venceu alguns dos principais prêmios para romances policiais, como o Crime Writers' Association's Diamond Dagger, em 1987, e o Grand Master Award from Mystery Writers of America, em 1999.
Também ganhou honrarias públicas, chegando à Câmara dos Lordes em 1991, onde se juntou aos conservadores.
Numa de suas últimas entrevistas, à BBC, no ano passado, ela falou dos planos de escrever um último romance policial. Sua agente literária, no entanto, diz não acreditar que ele tenha sido escrito.


Reprodução da Folha de São Paulo

Joana fez um aborto

Sou a favor da descriminalização do aborto. Assino listas, divulgo campanhas em redes sociais e só não vou a passeatas porque tenho prolapso da válvula mitral (você também tem, segundo meu cardiologista). Sou a favor por três motivos: liberdade em relação ao corpo, liberdade em relação ao futuro e necessidade emergencial de diminuir o número de mortes por aborto clandestino.
Mas, enquanto escrevo estas linhas profundamente honestas, algo dentro da minha cabeça (minha analista diria: "não chame de algo', assuma que é você") apita como uma chaleira de desenho animado (ou um trem de desenho animado, sei lá) e diz: "então por que você ficou três meses sem olhar na cara da Joana?"
Precisamos falar sobre aborto. Mas, se falar sobre aborto dói, precisamos também falar sobre essa dor. Quando minha amiga interrompeu sua gravidez, eu tive raiva. Ela tinha, na época, 35 anos, dinheiro pra pagar do berçário à faculdade para uns 20 humanos e um namorado gente finíssima. A bomba final: Joana adora crianças.
Então, por quê? E a resposta dela era: vou fazer um curso de fotografia em Nova Iorque e AGORA não tô a fim. Eu apoio Joana. Eu respeito, eu assino embaixo. Eu quero um mundo em que a adolescente pobre tenha esse direito (e os motivos são óbvios até pra sua avó), mas que mulheres como a Joana também tenham (e os motivos são óbvios, sobretudo, pra Joana, e é isso o que importa).
Apesar disso, o bode foi tão grande que em seu aniversário mandei apenas uma carinha feliz. Não consegui sequer digitar "oi". Não consegui ligar, mandar um e-mail. A carinha feliz, por dentro, chorava: como é que uma mulher com essa idade, que gosta de criança, que ama o marido, que tem condições, como? Fui extremamente egoísta ao pensar que minha amiga estava sendo egoísta.
Não é uma questão de ser "reaça" (leitores malas adoram esse termo! É preciso coragem pra admitir que somos bem mais complexos que nossa máscara cool). Eu quero que os gays casem. Eu sou a favor da ciclofaixa. Eu sou a favor da tatuagem de índia no muque bombado (credo), do piercing de mamilo (aff), do cabelo laranja (ui), da liberação da maconha, do tênis com terno, de morar junto sem casar e (pra quem mente que aguenta) do relacionamento aberto. Eu quero gays sem camisa andando de bicicleta na Paulista enquanto fumam maconha. Eu curto as peladonas de Porto Alegre e os meninos de saia. Eu tenho pena das pessoas nas passeatas pela volta da ditadura: onde elas estavam que não leram e não viram e não entenderam?
Eu quero um mundo em que a Joana possa fazer um aborto apenas porque está a fim. Mesmo que durante semanas eu tenha sentido vontade de deletá-la do meu Facebook e de bloqueá-la do grupo "sóasmina" do meu WhatsApp. É preciso mais do que sair com um cartaz na rua. É preciso sair com um cartaz na rua e admitir que dói ao mesmo tempo.
É preciso ser a favor, mesmo que uma porcentagenzinha, lá no fundo do nosso coração, pergunte, em alguns casos: "por quê?" É preciso amar e respeitar a Joana, mesmo que um tantinho do nosso peito esteja contorcido de angústia: eu querendo tanto e ela vai lá e tira? É uma fraqueza e estou assumindo publicamente. Não me apedrejem, por favor. Falar sobre aborto é mais do que ser contra ou a favor.
Eu não consegui sentir nada por Joana a não ser uma interrogação gélida. Eu torcia, envergonhada pela minha ignorância e preconceito, que ela mudasse de ideia. Fiquei um bom tempo gostando menos dela por isso. E, até hoje, gostando menos de mim, por ter gostado menos dela por isso.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Morte sob suspeita

MINHA HISTÓRIA LEANDRO FARIAS

Morte sob suspeita

A espera de 28 horas levou Ana a uma infecção generalizada. Ela percebeu o que estava acontecendo. O seu pai havia morrido da mesma maneira
CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULO

RESUMO Em agosto, Leandro Farias, 25, viu a mulher, a também farmacêutica Ana Carolina Cassino, 23, morrer de sepse (infecção generalizada), após esperar 28 horas por uma cirurgia de apendicite. A demora teria levado à infecção. Para a família, houve negligência. Farias criou o movimento Chega de Descaso, que recebe denúncias pelo país. Nesta sexta, ele coordena um protesto no Cremerj. A Polícia Civil também investiga o caso.

-

No dia 15 de agosto, a Ana Carolina acordou se sentindo mal, com forte dor no abdome, náuseas e vômito. Fomos para a unidade de pronto-atendimento da Unimed, na Barra da Tijuca [Rio].
Entramos às 13h30. O ambiente estava lotado, caótico. Logo demos de cara com um computador em que você pega uma senha, como em um banco. Passamos por triagem que foi feita por enfermeira.
Mesmo relatando fortes dores a ponto de não conseguir andar e nem ficar de pé, minha mulher ganhou o adesivo de cor amarela, sugerindo que o caso não era grave.
Após uma hora, fomos atendidos por uma médica, que suspeitou de apendicite. Pediu exames de sangue e uma tomografia. Após quatro horas, às 17h30, a apendicite aguda foi confirmada.
A taxa de leucócitos estava acima de 20 mil [o valor de referência era até 11 mil]. A tomografia mostrou o apêndice distendido e presença de líquido no abdome.
Novamente tivemos que esperar o trâmite burocrático para encontrar um leito em um dos hospitais da rede Unimed, agendar a cirurgia e aguardar uma ambulância.
Apenas às 23h Ana foi transferida para o hospital onde ocorreria a cirurgia. Ao ser internada no Hospital Unimed Barra, ficamos sabendo que a cirurgia tinha sido agendada para às 15h do dia seguinte. Não havia médico para operar antes.
Quando faltava uma hora para a cirurgia, no dia 16, Ana piorou. Teve uma queda brusca da pressão e desmaiou.
Realizaram manobras de reanimação e ela voltou lúcida, porém muito inchada por causa dos litros de soro fisiológico que recebeu. Foi uma imagem chocante, quase não reconheci a minha mulher.
Ela foi ao centro cirúrgico às 17h30; 28 horas após sua entrada e 24 horas após o diagnóstico. [O protocolo médico contra a sepse determina que se deve fazer a operação em até 12 horas.]
Ana já sabia que estava com sepse. O próprio médico havia contado. Ela me disse que havia pedido ao médico para evitar falar a palavra sepse para a mãe. O pai dela havia morrido quatro anos antes pela mesma causa.
Ainda me disse: "Vai dar tudo certo, amor". Foi a última frase que ouvi dela. Já saiu da cirurgia, uma simples cirurgia de apendicite, entubada e foi encaminhada direto para o CTI [centro de terapia intensiva]. Às 5h do dia 17 recebemos a notícia da sua morte. Choque séptico.
Enfrentamos resistência do hospital para entregar o prontuário. Alegaram que, em caso de óbito, se a paciente não deixou por escrito autorização, só com mandado judicial. Qual jovem de 23 anos irá imaginar que morrerá de apendicite? Após o caso ir para a mídia, o hospital liberou.
Ao analisarmos o prontuário, vimos que a Ana Carolina vinha piorando desde a sua internação. Apresentou sucessivas quedas de pressão, o que já indicava processo de infecção generalizada.
Ana foi mais uma vítima de descaso. Sua história reflete a face mais cruel dessa comercialização da saúde. Nada justifica essa demora absurda. Um médico ainda disse que, pela idade e pelos exames, ela poderia ter esperado até 48 horas pela cirurgia!
A questão é que está disseminado nos hospitais o plantão de sobreaviso [o médico fica fora do hospital, à disposição]. Em hospitais privados, cirurgias de emergência vêm sendo agendadas porque não há médico para atender de imediato.
Fizemos denúncia e o Cremerj (Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro) abriu uma sindicância. Mas descobrimos que muitos conselheiros do Cremerj são também diretores da Unimed. Como pode um órgão fiscalizador ser composto por membros do fiscalizado?
Criamos pela internet o Movimento Chega de Descaso e estamos reunindo denúncias. Queremos evitar que outros casos assim voltem a acontecer. É também uma forma de dar algum sentido a essa morte estúpida.


Reprodução da Folha de São Paulo

Indianas enforcadas se mataram, diz polícia

Indianas enforcadas se mataram, diz polícia

Autoridades dizem que não foram estupradas
DAS AGÊNCIAS DE NOTÍCIAS

As duas adolescentes encontradas enforcadas em maio na Índia não foram estupradas, informou o Escritório Central de Investigação (ECI), a polícia federal indiana. As mortes tiveram repercussão internacional.
As primeiras investigações sugeriam que elas haviam sido estupradas antes de serem enforcadas em uma árvore em Uttar Pradesh, Estado mais populoso da Índia.
"Chegamos à conclusão de que as acusações de agressão sexual e assassinato eram falsas. Foi um caso de suicídio", disse Kanchan Prasad, porta-voz do ECI.
"Não havia sinais de violência nos corpos das meninas, com exceção das marcas em seus pescoços. Além disso, ninguém ouviu gritos de socorro próximo ao local do enforcamento", disse Prasad.
Segundo as investigações, a mais velha das meninas tinha um relacionamento com um morador do distrito. Após ter sido descoberta por sua família, a relação teria motivado o suicídio.
O partido indiano Aam Admi rejeitou a teoria de suicídio e exigiu que o relatório seja reconsiderado.
"Parece humanamente impossível que as duas meninas tenham se enforcado, ou a ECI não está compartilhando os fatos", disse o partido em comunicado. As conclusões serão analisadas pela Justiça.


Reprodução da Folha de São Paulo

Os ingênuos e os cínicos


De fato, há ingenuidade na revolta de pessoas da esquerda com os convites a Kátia Abreu e Joaquim Levy para o novo ministério. Mas há cinismo naqueles que as condenam.
Os eleitores de Marina Silva que acreditam que ela, com alianças e nervos frágeis, conseguiria criar uma "nova política" e "governar com os melhores" são ingênuos. Os que tripudiam de quem pede que Dilma Rousseff se afaste da velha política e escolha nomes menos conservadores são cínicos.
Os eleitores de Aécio Neves que asseguram que ele faria uma faxina ética e montaria um ministério técnico são ingênuos. Os que torcem para que a situação econômica do país piore são cínicos.
Não se governa sem doses de cinismo --ou pragmatismo, se soar mais elegante. Quem não percebe isso é ingênuo. Mas mudanças sociais significativas não ocorrem sem cargas de ingenuidade --ou esperança. Quem ri disso é cínico.
Há governantes que melhoram a vida das pessoas sem perder a ingenuidade (José Mujica). Há outros que levam milhares à morte com seu cinismo (George W. Bush). Crer que em política existam nítidos o bom e o mau é ingenuidade. Apregoar que todos moram na mesma lama é cinismo.
Parte da população pode ter votado em Dilma para defender as conquistas dos últimos anos, não por achá-la brilhante ou seu governo incorruptível. Ingenuidade? Talvez. Mas há muito de cinismo na rejeição aos programas voltados para os mais pobres e no mal disfarçado racismo dos que são contra o acesso mais democrático às universidades.
Em contraponto aos cínicos que se fingem de ingênuos e ocultam preconceitos sob a justa bandeira do basta à corrupção, merecem respeito os ingênuos que expressam em público seu horror ao cinismo das tenebrosas transações.

Texto de Luiz Fernando Vianna, na Folha de São Paulo

O filme Gomorra ou a máfia camorra, qual a maldição de Nápoles?

A cidade da Itália que tem pior reputação é Nápoles. O bairro da cidade com um estigma mais profundo se chama Scampia. Os conjuntos habitacionais mais temidos de Scampia são Las Velas. Ao chegar aqui, o zoom da má fama continua penetrando por vidros quebrados, montanhas de detritos, elevadores que não funcionam há anos, escadas pichadas com palavras de amor ou de vingança e restos das fortalezas de ferro construídas pelas ferozes famílias da Camorra, até se deter em sombras que se movem pelo porão com uma seringa cravada no braço.
Isto, e mais dezenas de tiroteios e de mortos, é o que todo mundo conheceu por meio de "Gomorra", primeiro o livro, depois o filme e agora a série de televisão inspirada na investigação do jornalista Roberto Saviano sobre a Máfia napolitana.
Mas quando, no meio dessa paisagem de desespero, tudo parece predestinado à derrota contínua, ouvem-se passos subindo e alguém que cantarola em napolitano, essa bela versão do italiano que traz em seu interior, como uma caixa-preta da história, a recordação dos gregos, normandos, espanhóis e até dos ianques que desembarcaram na Segunda Guerra Mundial e ainda não se foram.
É Vincenzo, um jovem ex-presidiário que como todos os dias vem vender pão a Carmela Imparato, mãe de duas filhas pequenas, separada do marido que não lhe paga pensão e faxineira ocasional de casas alheias. O único trabalho fixo que alguns de seus vizinhos oferecem a Carmela é o de caixa dos lucros da droga. "Eles me dariam 50 euros por dia se eu guardasse o dinheiro em minha casa, e muito mais se escondesse alguma droga de vez em quando."
Mas Carmela, apesar de com frequência ter de mandar suas filhas dormir sem jantar, sempre diz que não. E de sua negativa, de sua decisão e de suas razões tão simples como água limpa, parte um novo zoom que, deixando as sombras do subsolo e atravessando a memória atroz de várias décadas de guerras da Máfia, tenta superar com dificuldade a maldição da má fama.
Não é fácil. O bairro de Scampia está ligado ao destino de Nápoles, e essa cidade - a mais populosa do sul da Itália, a que registra as maiores taxas de desemprego de todo o país - também é a "capital mundial do estereótipo, a ponto de que quando o time de futebol vai jogar em qualquer outra cidade italiana a torcida rival não provoca os jogadores, e sim os napolitanos".
A reflexão, pronunciada a modo de irônicas boas-vindas, pertence ao professor de filosofia moral Giuseppe Ferraro. Ninguém como ele, cuja vocação é acender o pavio da curiosidade tanto nas classes como nas prisões, para explicar por que o bairro de Scampia, além de sofrer os efeitos das guerras da Máfia e as consequências midiáticas da obra de Saviano, se transformou com o passar dos anos no protótipo da degradação. A conversa se desenrola durante um passeio pelas ruelas do Bairro Espanhol, lugar onde o perigo e a beleza estão felizmente casados há séculos.
"A primeira coisa que se deve levar em conta", explica Ferraro, "é que os edifícios chamados Las Velas - por sua semelhança com o perfil de um veleiro - foram construídos no início da década de 1970 para descongestionar outros bairros da cidade. Pretendia-se que o interior dos blocos fosse uma reprodução moderna do centro histórico, com seus becos e pracinhas, mas desde o início se transformou em um bairro de deportação. Os moradores que foram enviados para lá ou que ocuparam as casas devido ao terremoto de 1980 sofreram depois o desterro, a perda de identidade. E isso foi especialmente grave em uma cidade onde, por exemplo, em cada bairro se fala o napolitano com um sotaque diferente. A diversidade de sotaques ajuda a situar as pessoas dentro de uma cidade que é o reino da estratificação. Se entrarmos nessa igreja, você verá que por baixo existe uma cidade idêntica, com as mesmas ruelas que na superfície, herança viva dos gregos, dos espanhóis... A mesma mistura e a mesma confusão de cima sobrevivem também embaixo. Para ser sincero, quando me afasto da cidade, do que mais sinto falta é o mar... e a confusão."
As ruas do Bairro Espanhol vão marcando o compasso para as palavras do professor Ferraro. Palácios magníficos do século 17 divididos em apartamentos de aluguel antigo ou inexistente, habitados por pessoas que nunca sentiram necessidade de sair do bairro e que passeiam pela rua de pijama, entre o estrondo das motocicletas sem escapamento nem placa, montadas por rapazes sem capacete que se persignam diante de um nicho com a estátua da Virgem enfeitada de flores de plástico.
"Esta cidade", diz o professor para explicar a rebeldia que se torna patente em cada esquina, "nunca se governou a si própria. Desde sua história grega, romana, espanhola, ou mesmo nos tempos modernos, jamais teve um governo presidido por alguém daqui. E isso se revelou cômodo, porque assim cada napolitano interiorizou que as instituições estão sempre contra, que são o adversário, que é preciso combatê-las."
Giuseppe Ferraro recorda que o escritor americano Herman Melville, ao passar pela cidade, maravilhou-se de que os canhões de Fernando 2º das Duas Sicílias, o Rei Bomba, não estivessem apontados para o mar, e sim para a cidade: "Era a prova de que o inimigo estava dentro". A cultura da Camorra vem de uma estrutura muito antiga de clãs já existentes no tempo dos Bourbon, onde cada zona tinha um "capo" e onde existiam a alta e a baixa Camorra, a aristocrática e a popular, com a mesma mentalidade embora com interesses diferentes.
É algo que, como muitas outras coisas em Nápoles, não mudou através dos séculos. Seja pelo lado de fora da lei ou pelo de dentro, o napolitano sempre vê na autoridade um sinônimo de opressão, daí sua inclinação - que acompanha de um certo prazer - a circular na contramão dos semáforos e das regras.
"Ah, e outras duas coisas antes que você vá a Scampia."
"Diga-me, professor."
"A primeira é que deve levar em conta que nesta cidade só existe o presente. O passado é presente, e até mesmo a morte está incluída no presente. Quando o Nápoles venceu o segundo 'scudetto' [o campeonato nacional de 1989-1990, com Maradona como capitão], os rapazes foram ao cemitério e penduraram um cartaz: 'Queridos avós, vocês não sabem o que perderam'. No dia seguinte, apareceu outro cartaz no mesmo lugar, que respondia: 'Quem disse?' Não esqueça, esta cidade está sempre no limite de sua própria loucura."
"E a segunda coisa que não devo esquecer?"
"O fato terrível de que Nápoles é uma cidade bela. Bela demais. E já disse Rilke em uma de suas elegias que 'a beleza não é senão o princípio do terrível'. A beleza gera violência."
No caminho de Scampia, Nápoles vai se despojando da beleza e também da picardia cotidiana - o taxista combina um preço para desligar o taxímetro e não ter de pagar ao patrão, um rapaz pede na saída do metrô os bilhetes usados para revendê-los a outros viajantes - para misturar-se na feiura dos bairros transbordados e dos delitos com maiúscula.
Michele Spina diz que Scampia não é mais o que era quando ele chegou, em 2007, para chefiar a delegacia de polícia e que, já então, havia deixado de ser o maior supermercado europeu da droga. A terrível "faida" - guerra interna - que enfrentou em 2004 e 2005 o poderoso clã de Paolo Di Lauro com um grupo de dissidentes dirigidos por Raffaele Amato e chamados de "scissionisti" ou "os espanhóis" - porque Amato havia passado um tempo refugiado na Espanha - deixaram mais de uma centena de mortos nas ruas de Scampia e do bairro vizinho de Secondigliano.
"É preciso lembrar", disse o comissário Spina a bordo de um carro de patrulha a caminho de Scampia, "que por culpa do terremoto de 1980 um bairro que havia sido projetado para 80 mil habitantes foi invadido de repente por mais de 100 mil pessoas, muitas delas sem trabalho e bastantes com antecedentes policiais. No entanto, até 1997 não se criou a delegacia do bairro. O resultado era previsível: Scampia, e em especial Las Velas, se transformaram em um gueto desde o primeiro momento. Durante aqueles 17 anos sem lei, a Camorra assumiu o controle absoluto diante da impotência das pessoas de bem, muito mais numerosas, mas incapazes de reagir diante da força intimidatória do grupo organizado e das armas. O rígido sistema de controle do território ainda continuava intacto quando eu entrei em Las Velas pela primeira vez. Agora vou lhe explicar em campo."
A fisionomia de Las Velas é inconfundível. Uma parte se deve ao projeto do arquiteto Franz Di Salvo: sete edifícios gigantescos - dos quais três já foram demolidos - pintados cada um de uma cor, de forma triangular, de tal maneira que por fora se assemelhassem ao velame de uma embarcação e por dentro recriassem os becos de Nápoles, onde as vozes dos moradores e os odores da comida recém-feita se confundem a ponto de que bairros inteiros se fecham sobre si mesmos até se transformar em um só pátio de convivência.
Mas a razão de sua incorporação ao imaginário coletivo - sua aterrissagem definitiva na má fama - se deve à televisão e ao cinema. Las Velas serviram de cenário para o filme "Gomorra", dirigido em 2008 por Matteo Garrone, e para a atual série de televisão produzida na Itália e já vendida a mais de 50 países.
"Minha mensagem ao chefe foi clara: se quiser vender droga, esconda-se. Não pode fazer isso como um negócio normal." Michele Spina, comissário de polícia de Nápoles.
"Os grupos mafiosos", explica o delegado Spina já nos corredores míticos de Gomorra, "ocupavam as casas de forma militar, expulsavam seus inquilinos e as invadiam. Depois trocavam a porta original e a substituíam por uma blindada. Então faziam um pequeno buraco, uma espécie de guichê, de tal modo que do exterior não se pudesse identificar quem vendia lá de dentro os envelopes de entorpecentes à fila de viciados que esperavam no corredor. Dentro e fora do edifício, nos sótãos, nos balcões, nas entradas, os sentinelas permaneciam alertas diante da eventual aparição da polícia ou dos 'carabinieri'. Diante de qualquer suspeita, davam o sinal de alarme com uma palavra que nos últimos tempos era 'vattene', um grito breve, sonoro, imediato: 'vattene, vattene, vattene!'" A voz do comissário de multiplica pelos edifícios que, mesmo devorados pela sujeira e o abandono, continuam alojando cerca de 400 famílias, os últimos náufragos - e algum pirata - de naves que nunca chegaram a flutuar.
"Ao ouvir o alarme", continua o delegado Spina, "o que estava vendendo a droga escapava e fazia desaparecer a mercadoria, às vezes pelos sistemas - assim continuam a chamá-los, "sistemas" - mais sofisticados ou mais grosseiros, desde um falso degrau na escada que era ativado por um comando à distância a um ralo postiço colocado em uma casa livre de suspeita. O problema era que, quando davam o alarme e fechavam os portões de ferro com que haviam blindado o edifício, nós ficávamos fora, mas também os outros moradores", diz.
"Só eles tinham a chave. Por isso eram os donos. Não me esqueço de uma vez em que, durante a operação, com eles trancados dentro e nós a esperá-los fora, chegou uma senhora idosa, com sacolas de compras na mão. Fazia frio. O interfone não funcionava porque eles o haviam queimado, assim como danificaram os elevadores para que não pudéssemos subir. Seu marido, idoso, não a escutava e não podia descer para ajudá-la." A situação estava travada como em uma partida de xadrez na qual qualquer movimento implicaria a perda de uma peça, mas a senhora continuava lá, de pé, passando frio. O delegado Spina - um desses italianos capazes de transformar o relato da guerra em algo mais interessante que a própria guerra - decidiu suspender a operação para que a senhora pudesse subir, mas jurou voltar. Tinha de fazer o que fosse preciso para quebrar aquela cena grotesca, o Estado e a cidadania impotentes, pasmos, diante do poder da Camorra.

"Vamos, 'ragazzi' (garotos)..."

O comissário Spina, um verdadeiro personagem de Nápoles, é agora o inventor e responsável por um projeto chamado Aracne - "do mito grego de Aracne, a corajosa garota que a deusa Minerva transformou em aranha por tecer melhor que ela" - para combater, e sobretudo prevenir, a criminalidade em toda a cidade de Nápoles. Spina comanda as "gazelas" - os carros-patrulha - e os "falcões" - as duplas de policiais à paisana, sem capacete, sobre motos potentes - que conseguiram reduzir as estatísticas de furtos, assaltos, roubos a bancos e joalherias.
Da chefatura, as patrulhas recebem o apoio de um sistema de câmeras que inclui o subsolo da cidade. Mas nesta manhã de sábado o doutor Spina - como é chamado por todos, de um lado e de outro da lei - voltou à delegacia de Scampia para acompanhar seus velhos companheiros em uma inspeção dos pontos de venda de drogas. Um helicóptero sobrevoa a área. A situação parece tranquila.
"Quando cheguei aqui, as filas de dependentes de droga rodeavam o edifício", lembra o delegado. "As pessoas que levavam os filhos ao colégio tinham de passar sobre elas porque muitas se injetavam aqui mesmo. Não é que o problema tenha desaparecido [as seringas usadas que vamos pisando são testemunhas], mas a situação melhorou radicalmente."
Depois daquela tarde em que a senhora e o comissário ficaram plantados na porta de uma das Velas, a forma de combater os grupos da Camorra que controlavam a área - e que na época eram dirigidos pelo clã Abbinante - sofreu uma virada, digamos, pouco ortodoxa.
"Eu percebi que por mais operações que fizéssemos nada punha em risco os locais de venda", recorda o chefe policial. "O exemplo é a Operação Morena, uma grande operação. Fizemos uma irrupção ruidosa em um dos edifícios, praticamos revistas sem resultado e depois fomos embora fazendo mais ruído do que ao entrar. Quando eles voltaram a se sentir seguros, gritaram a palavra habitual, 'taposto!', que queria dizer 'tudo em ordem', mas tínhamos deixado alguns dos nossos lá dentro - no teto dos elevadores - e várias câmeras colocadas. Vimos ao vivo como vendiam droga e a quantidade de dinheiro - 80 mil euros por dia em um só ponto de venda - que conseguiam manipular. O caso é que conseguimos filmá-los e gravar seus telefonemas. Certa manhã, antes do amanhecer, caímos sobre eles e detivemos 33."
Antes de deixar o bairro, um agente da brigada de Spina escreveu em uma parede uma mensagem de desafio aos clãs: "-33". No outro dia a pichação continuava lá, mas alguém a havia retocado até transformá-la em uma mensagem de resposta: "+88". O jogo continua.
"Por isso fiz o que fiz", conclui o delegado Michele Spina. "Não era uma coisa muito ortodoxa, não se tratava sequer de uma ação própria da polícia. Dediquei-me a quebrar os pontos de venda. Enquanto meus homens continuavam fazendo investigações e as operações de rigor, eu me apresentava com os bombeiros nos edifícios que lhes serviam de pontos de venda e destruía as barricadas de aço que os clãs tinham levantado. Tiramos as portas blindadas, serramos as grades, sequestramos os cães de vigilância que tinham soltado pelos pátios... A mensagem era clara: se quiser vender droga, esconda-se. Não pode fazer isso de modo aberto, como se fosse um negócio normal e aquele fosse seu edifício. Minha mensagem ao chefe do clã ficava clara; não estou disposto a tolerar que aquela senhora, ou outras como ela, tenham de esperar com as sacolas no frio que você resolva abrir a porta."
O aspecto de Las Velas continua sendo um mostruário do inferno. Os quatro edifícios que seguem de pé e que serviram de estúdio para "Gomorra" continuam acumulando lixo, canos arrebentados pelos quais cai água constantemente, passarelas podres que ameaçam despencar. Os apartamento mais altos - vazios porque não há quem suba ali sem elevador e com as escadas cada vez mais sujas - são um triste monumento ao que poderia ter sido e não foi. Os apartamentos de mais de 100 metros quadrados, com lareira na sala e grandes terraços voltados para o Vesúvio, só servem como depósito de colchões velhos, roupa imprestável e escombros.
Nos andares mais baixos continuam vivendo os moradores que não conseguiram levantar voo. Rosaria e sua filha Annalisa, que tem 27 anos, nasceu e cresceu aqui, namorou aqui e, depois de um longo noivado como os de antigamente, dentro de dois meses dará à luz seu primeiro filho. Elas não apareceram no filme, nem na série.
"Somos pessoas comuns", quase se desculpa Rosaria em seu apartamento limpo e organizado, "como a maioria de nossos vizinhos. Moramos aqui porque não podemos ir para outro lugar. Não pagamos luz nem água, porque não temos com quê. Quando minha mãe, que descanse em paz, podia pagar, pagava. Durante anos, durante toda a minha vida, ouvimos os tiros, as batidas da polícia, as brigas dos 'junkies' na escada."
Rosaria e Annalisa oferecem um café, um copo de água, e contam que juntas no sofá viram o filme e a série surpresas, quase como o delegado Spina viu pela primeira vez ao vivo a venda de droga, por meio de suas microcâmeras. A violenta, luxuosa, trepidante vida dos outros à qual eles nem foram convidados nem quiseram aderir, extras honrados sem qualquer pagamento. "O que o filme conta é verdade", atreve-se a dizer Rosaria, "mas não toda."
A outra verdade é menos fotogênica, mas não menos importante. De um tempo para cá, personagens tão díspares quanto o professor Ferraro, o delegado Spina, Ivo Poggiani, o líder de um coletivo anti-Camorra chamado (R)esistenza, que trabalha nos terrenos confiscados à Máfia, ou Vittorio Passeggio, o porta-voz do Comitê de Las Velas de Scampia - cujo local tem um desenho de Hugo Chávez na porta -, estão empenhados em que Vincenzo, o padeiro, não volte a cair nos crimes que o levaram à prisão, e que os rapazes que toda tarde jogam futebol ao pé dos blocos - Luigi, Massimo, Salvatore e Angelo - não caiam nas redes dos clãs, ou que Rosaria e Annalisa possam seguir o exemplo de Carmela Imparato, a mãe de duas meninas que de vez em quando tem de fechar a porta aos donos da droga.
"Nós lhe damos 50 euros por dia para guardar o dinheiro. Muito mais pela droga." Carmela quase não fala italiano, mas o napolitano lhe sobra para explicar suas razões: "É uma questão de princípios. Eu nasci aqui e daqui não consegui sair, mas me educaram na dignidade, e isso é o que eu quero para minhas filhas. Oferecem-me dinheiro por minha boa fama, porque sabem que a polícia - que também sabe que sou uma pessoa honesta - nunca buscaria dinheiro nem droga em minha casa."
A importância está na fama, boa ou má. E por isso todos os entrevistados têm uma espinha encravada com "Gomorra", o livro, depois o filme, depois a série... Luigi de Magistris, um ex-juiz que desde 2011 é o prefeito de Nápoles, lhes dá razão: "Todo mundo reconhece o mérito de Roberto Saviano ao denunciar a Camorra. Inclusive eu, quando alguns se opuseram a que desse autorização para rodar o filme, me neguei a qualquer tipo de censura. Mas é verdade que há um certo pecado de omissão quando se conta o que fazem os mafiosos e nunca a rebelião constante, cada vez mais poderosa, das pessoas comuns para seguir em frente. A verdade é que não conseguimos nos livrar do peso da má fama."
O delegado Spina, de volta no carro-patrulha, com o charuto apagado na boca, fica olhando para as silhuetas imponentes de Las Velas: "Lembram-me o conto de Monterroso: 'Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá'." O peso da má reputação. A maldição de Nápoles.

Reportagem de Pablo Ordaz para o El País, reproduzido no UOL. Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Roubar ou não roubar?

O cronista Carlos Heitor Cony escreveu que a corrupção faz parte do nosso DNA. Citou o prefeito do Rio, Mendes Âncora, e o Maracanã, JK e a construção de Brasília, Maria Andreazza e a ponte Rio-Niterói e Itaipu binacional como exemplos tratados pela mídia como de corrupção sem precedentes. O empresário Ricardo Semler, 55 anos, sócio da Semco, disse em artigo na Folha de S. Paulo que “nunca se roubou tão pouco”. Segundo ele, hoje a corrupção engole 0.8% do PIB brasileiro contra 3.1% e até 5% no passado. Semler é tucano de carteirinha. Fez campanha para Aécio. Mas denunciou a hipocrisia dos que criticam a impunidade e vão gastar em Miami o muito que ganham irregularmente.
Semler lembrou também que quase todo mundo pratica diariamente pequenos atos de corrupção no Brasil como “aceitar um pagamento sem recibo para o médico” ou dar uma cervejinha para o guarda aliviar isto ou aquilo. A direita ironizava o PT por se colocar como o criador de tudo, até da roda, no Brasil com o famoso “nunca na história deste país”. De repente, passou a dizer que “nunca história deste país se roubou tanto”, atribuindo ao petismo praticamente a invenção da corrupção em grande escala. Há, ao menos, cinco problemas nessa abordagem.
O PT, que pregava contra a corrupção, atolou-se nela. Nunca pagará suficientemente por suas contradições e por sua arrogância moralista, o que é uma forma de seus adversários dizerem que o odiavam mais quando estava certo.. Mas fez a melhor política social do país desde Getúlio Vargas, a melhor na vigência da nossa tão esquálida democracia. O bolsa-família, mesmo como ampliação de mecanismos anteriores, e o ProUni são revoluções na paisagem excludente brasileira. Isso absolve o PT? Não. A corrupção, porém, também não anula esse feito. O roubas, mas faz não vale. O que foi feito tampouco deixa de valer. Então? O simplório fica complicado. O simples vira complexo. O PT costuma ter o PMDB, o PP e outros na sua companhia nos grandes escândalos que marcam a sua biografia. O PSDB, principal crítico da roubalheira petista, tem o privilégio da precedência no mensalão e o ônus da semelhança com o Petrolão no propinoduto de São Paulo.
Falar dessas equivalências provoca uma reação ensaiada: defesa dos ladrões petistas? Chantagem barata. Atribuir ao petismo a invenção da corrupção ou o seu recorde tem a ver com uma estratégia ideológica destinada, antes de tudo, a invalidar suas políticas sociais. É isso que incomoda realmente. Por causa disso se deve perdoar ou tolerar o PT que manda no país? Não. O petismo não perdoa. Se o petrolão fosse tucano, o PT estaria exigindo pena de morte para todos os envolvidos. Aqui se faz, aqui se paga. É o lema da corrupção que faz a festa das empreiteiras e o caixa de campanha dos partidos. Sempre se roubou. Sempre se roubará? Somos um país de ladrões?
Não há lugar para a dúvida shakespeariana entre nós: roubar ou não roubar? Roubar.
Nossa dúvida existencial é outra: como preservar e ampliar as políticas sociais do petismo acabando, ao mesmo tempo, com o triste hábito nacional da corrupção? Certamente isso não aconteceria pela simples entrega do poder aos tucanos. Só quem acredita em Papai Noel se convenceu de que nada havia de irregular nos aeroportos nas terras da família de Aécio Neves. Nosso único consolo é que nunca se investigou e puniu tanto a corrupção no Brasil. A impunidade começará a chegar ao fim quando deixarmos de falar ao celular enquanto dirigimos.
É isso.
Talvez.

CIDH pede fim das leis da anistia na América Latina

CIDH pede fim das leis da anistia na América Latina

Comissão faz pressão para esclarecer violações de direitos humanos durante as guerras civis e ditaduras na região
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pediu nesta quinta-feira aos países da América Latina que derroguem suas leis de anistia e que abram seus arquivos, fazendo pressão para que se esclareçam as violações de direitos humanos durante as guerras civis e ditaduras nos países da região."O direito à verdade não pode ser cerceado, entre outras formas, por medidas legislativas como as leis de anistia", afirmou a CIDH em um relatório.

 Brasil, Chile e Uruguai, ditaduras até meados ou final da década de oitenta, assim como Guatemala e El Salvador, cenários de violentas guerras civis durante essa década, mantêm vigentes esse tipo de lei, implementadas com o objetivo de impedir que fossem julgadas as violações aos direitos humanos perpetradas por esses regimes autoritários.  "Essas leis de anistia são de grande preocupação para a Comissão na medida em que foram aplicadas para encerrar as investigações", disse à AFP Erick Acuña, especialista em direitos humanos do órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA).

O relatório de centenas de páginas, intitulado "Direito à Verdade nas Américas", analisa as medidas tomadas e as obrigações dos países da região a fim de encerrar esse período violento da história.  Com a assinatura de acordos de paz e com a redemocratização, foram formadas comissões da verdade em 16 países para esclarecer os casos de violações de direitos humanos. A primeira dessas comissões foi criada na Argentina com o retorno à democracia, em 1983, e a última é a brasileira, criada em 2012.

"Foi positivo", disse Acuña, ressaltando que a maioria das comissões conseguiu a abertura de arquivos oficiais, incluindo os militares, confidenciais. "Não só as vítimas e seus familiares têm o direito à verdade, mas também a sociedade como um todo", disse a presidente da CIDH, Tracy Robinson, em comunicado.

Desafios pendentes  
As informações reveladas permitiram novas investigações em casos de torturas, execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados, e servem de matéria-prima para os trabalhos do CIDH e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. "No entanto, ainda é preciso caminhar decididamente no sentido de resolver essas situações", concluiu a Comissão em seu relatório. 

Além de abolir as leis de anistia, a CIDH pediu que os países eliminem a jurisdição penal militar nos casos de violação aos direitos humanos, em que com frequência os militares vão para o banco dos réus.  "Dificulta-se a imparcialidade", avalia o relatório, afirmando que as investigações em mãos militares "costumam servir para encobrir os fatos em vez de esclarecê-los". 

Segundo a Comissão, os países também devem aprofundar a liberação dos documentos. "A informação reunida nesses arquivos possui um valor inestimável e indispensável não só para impulsionar as investigações mas para se evitar que esses crimes se repitam". A CIDH sugere ainda a criação de novos museus ou espaços de memória sobre os crimes cometidos há mais de vinte e cinco anos.

Décadas após as redemocratizações, a América Latina continua sendo palco de inúmeras violações aos direitos humanos, como o recente desaparecimento de 43 estudantes mexicanos depois de mortos por policiais e narcotraficantes no país.  "O relatório não é apenas sobre o passado, mas uma contribuição ao presente e a um futuro livre desse tipo de abuso", disse o secretário-executivo da CIDH, Emilio Álvarez Icaza.

Reprodução do Correio do Povo

Vilarejo do Nepal inicia sacrifício de animais apesar de protestos

Vilarejo do Nepal inicia sacrifício de animais apesar de protestos

Quase 300 mil foram decapitados ou degolados em festival em 2009
Hinduístas do Nepal iniciaram o sacrifício de centenas de animais nesta sexta-feira em um vilarejo remoto do país em homenagem à deusa Gadhimai, apesar dos protestos de uma ONG. O vilarejo de Bariyapur, perto da fronteira com a Índia, será o maior matadouro do mundo durante os dois dias do ritual, com o sacrifício de vários animais, de búfalos a ratos. "É (um evento) festivo, todos estão entusiasmados", afirmou o sacerdote Mangal Chaudhary no templo dedicado à deusa Gadhimai, onde acontecem os sacrifícios.

Após três horas de viagem para chegar ao local, o camponês Sita Ram Yadav afirmou que o ambiente era parecido ao de um carnaval, com a presença de milhares de fiéis. "Eu ofereço uma cabra a Gadhimai para que proteja a minha família. Se você acredita nela, atende os seus desejos". A festa começou à meia-noite e conta com um grande dispositivo policial: 1,2 mil agentes para vigiar a multidão. 

Os defensores dos animais acusam as autoridades do templo de "aproveitar-se da crença das pessoas" para levar o dinheiro dos fiéis, com o alto preço de entrada ou de estacionamento.

A denúncia foi feita por Manoj Gautan, presidente da Rede de Proteção do Bem-Estar Animal do Nepal, que está em Bariyapur para protestar contra o ritual. Quase 300 mil animais foram decapitados ou degolados na edição anterior do festival, em 2009.

Para exigir a proibição da festa, a ONG iniciou uma campanha que conta com o apoio da atriz britânica Joanna Lumley e da francesa Brigitte Bardot, que escreveu a Gautan para pedir o fim do que chamou de uma "tradição cruel".

Reprodução do Correio do Povo

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Quando éramos todos solteiros


Amanhã o Pedrinho se casa. Na semana passada, foi a Fabi quem assinou a papelada pra formalizar o que já era fato. Vanessa teve a Olivia. Marina está grávida. A filha do Kiyo completou quatro anos. Gigi agora é sócia de um clube, onde passa os finais de semana com os dois. Monica coloca Marcelo Jeneci para o Guilherme dormir.
Somos de uma geração que saiu de casa cedo e gostou da liberdade de ir e vir, fazer e acontecer, sem dar satisfação a ninguém. Não tenho quase nenhum amigo que tenha se casado antes dos 30 anos ou tido filhos antes dos 35. A gente gostava da vida de solteiro, por uma simples razão: ser solteiro é bom demais. É uma vida boa pra quem não tem pressa de achar a outra metade. Até porque a gente queria era alguém inteiro mesmo. E essa pessoa pode demorar a dar as caras.
Tchau baladas, noites viradas, viagens repentinas, jantarzinhos no meio da semana, happy hours todos os dias, geladeira cheia de cerveja. Muito miojo e cardápios de delivery. Tchau azaração, pegação, paixões, amores que vinham e logo iam embora. Os amigos estavam sempre ali. A gente sabia que tinha para onde voltar. Para o ombro, para o abraço, para a mesa de bar, para o cineminha depois do jantar, para o miss Brasil na TV.
A gente não fazia muitos planos, só vivia. Ninguém olhava para o futuro porque tinha demais pra viver ainda no presente. Tudo estava tão certo, apesar de ser tudo incerto. A gente podia tudo, estava sempre disposto e com energia. Era dormir meia hora depois do trabalho, tomar um banho e partir para onde quer que fosse. Sabia o nome dos bares, conhecia as hostess, tinha nomes nas listas.
A mesa começava com quatro, chegavam mais dois, de repente o bar parecia nosso. O que era para ser uma cervejinha, virava a madrugada. Não tinha namorado, mulher, mãe, filho, ninguém em casa esperando. Meu apartamento por muito tempo parecia um hotel, eu só aparecia para tomar banho e dormir. A rua era a minha casa. A rua é a casa de gente solteira.
A vida veio mudando aos poucos. Felipe casou com a Paulinha. Ale e Rafa tiveram bebê. Me estrepei meia dúzia de vezes até chegar a minha vez. Troco uma noite sem dormir com a banda mais famosa do momento por meu sofá e o pé quente do momô.
É, eu chamo de momô. O Pedrinho chama a Monica de mozão. O Kiyo chama a Ana de patroa. Apelido brota do nada. Você está ali, lixando o pé no banheiro, ele aparece na porta e pergunta o que o momô quer fazer. E momô, mozão, patroa, não tem volta.
A gente começa a fazer tudo que acreditava ser cafona quando era solteiro e os outros casados. Solteiro acha gente casada cafona. Ponto. É muito tchururu, muita complicação, muito 'vou-perguntar-pro-fulano-se-ele-quer-ir'. E quando você acha que alcançou o limite da cafonice da vida de casado, coloca a foto do casal no perfil das redes sociais. Tem coisa mais cafona? Não, mas nos faz feliz mesmo sabendo que é o fim da goiabada.
E começa um sentimento de pertencimento. Estou muito mais compreensiva com as amigas que estão em dúvida se colocam porcelanato ou cimento queimado no chão. E de repente fiquei completamente interessada em quanto custou os enxoval que a Lari fez para o Pedro. Mas dá para passar dois meses na Europa! Prioridades. Momentos de vida.
Eu adorava ser solteira. Tenho certeza que meus amigos também. A gente não tinha pressa de nada, a não ser aproveitar a vida. E vivemos tudo com tanta intensidade que, quando o Micael, a Monica, o Fernando, o Tim, a Ana, o Ricardo, o Pepê, e mais tantos outros apareceram em nossas vidas, a gente estava pronto para eles. Daquele tempo, ficou uma saudade bem boa. É isso que importa. 


Texto de Mariliz Pereira Jorge, na Folha de São Paulo

Brancos têm mais acesso a penas alternativas; negros vão mais para prisão


Pesquisa "A aplicação de penas e medidas alternativas no Brasil", divulgada nesta quinta-feira (27) pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Apliada), aponta que o rigor da Justiça Criminal com os negros é maior que com os brancos, que têm mais direito a penas alternativas.
Segundo o levantamento, a diferença pode ser vista na definição do trâmite dos processos. Enquanto 41,9% dos acusados em varas criminais eram brancos, 57,6% eram negros. Já nos juizados especiais --que analisam casos de menor potencial ofensivo--, a ordem é inversa, com 52,6% dos réus eram brancos e 46,2%, negros.
A escolha da vara onde o processo irá tramitar depende da pena pedida e é uma decisão do promotor de Justiça, acolhida ou não pelo juiz responsável. 
Para os pesquisadores, isso quer dizer que os negros podem ser condenados com mais frequência a penas de restrição de liberdade. "Existe um maior número de réus negros nas varas criminais, onde a prisão é a regra, e maior quantidade de acusados brancos nos juizados, nos quais prevalece a aplicação de alternativas penais", informou o estudo.
Para o Ipea, os dados chamam a atenção para "os processos de construção de desigualdades e de reprodução de opressões nas instituições brasileiras, que conferem a cor negra aos nossos cárceres".
Outro ponto citado também mostra que as pessoas pobres acabam sendo, também, mais vítimas das prisões provisórias.
O estudo apontou que, em alguns casos, as prisões cautelares são "terapêuticas", ou seja, "uma oportunidade de desintoxicação do réu, caso se perceba seu envolvimento com drogas".  
"Manter a prisão também é uma 'estratégia' adotada quando se trata de pessoas em situação de rua, sem endereço fixo", informou.

Cultura

Segundo o pós-doutor em Justiça Penal Internacional da Universidade de Pavia, na Itália, e professor de direito processual penal da Universidade Federal de Alagoas, Welton Roberto, a pesquisa apenas ratifica um pensamento quase unânime no meio jurídico.
"Isso demostra um claro rigor maior com os negros no direito penal. É como se fosse esteriotipado: o réu pobre é preso. Você vai em presídios brasileiros e vê isso. Essas pessoas não tem cidadania plena, não tem bons advogados. Defendo as cotas, porque não adianta ficar com discurso que todos iguais. Nós, da raça branca, não ficamos vivendo décadas de humilhação, como os negros."
Para o jurista, parte do problema está na formação dos profissionais do Direito.
"Existe ainda na formação do magistrado, do defensor, do promotor brasileiro agregado a um elitismo muito forte. Muitos deles não têm a mínima noção de como funciona a realidade das ruas. Eles passam por uma faculdade boa, o pai banca ele estudar num cursinho para ser juiz e ali é o primeiro emprego dele", disse.

Texto de Carlos Madeiro, no UOL Notícias

Sugestões para o Ministério de Dilma

Cara Presidenta,
Nós dos movimentos sociais nos sentimos amplamente contemplados com os primeiros nomes para seu ministério. Governo novo, ideias novas. Os gestos não poderiam ter sido melhores.
Joaquim Levy na Fazenda foi uma sacada de gênio, com grande sensibilidade social. Pena que o Trabuco não quis, mas confio que seu subordinado no Bradesco dará conta do recado. A Marina queria indicar gente do Itaú. O Aécio tinha obsessão pelo Dr. Armínio. Mas esses, como a senhora disse na campanha, tomariam medidas impopulares. A solução certamente está com o Bradesco. Itaú de fato não pode, mas Bradesco... vá lá!
Kátia Abreu na Agricultura achei um pouco ousado demais. Cuidado pra não ser chamada de bolivariana! Os índios e os sem-terra estão em festa pelo país. Não temos dúvidas de que o ministério terá um compromisso profundo com a demarcação das terras indígenas, o combate ao latifúndio e com a Reforma Agrária.
Armando Monteiro no Desenvolvimento deixa seus detratores sem argumentos, muito bem! Dizem que a senhora não dialoga com a sociedade civil. Ora, como não? A Confederação Nacional da Agricultura em um ministério e a Confederação Nacional da Indústria em outro. Aí está a gema da sociedade civil, as entidades patronais.
Tem gente sendo injusta com a senhora, dizendo que essas indicações sinalizam que seu governo irá aplicar o projeto derrotado nas urnas. Não se deixe levar por isso. Estão fazendo o jogo da direita, no fundo querem mesmo é desestabilizá-la.
A senhora está no caminho certo. Para onde? Bom, esta é outra questão. Mas o que eu gostaria mesmo é de humildemente lhe apresentar algumas sugestões para a composição dos ministérios.
Para a pasta das Cidades o nome é o Kassab. Homem experiente, foi prefeito de São Paulo e terá a oportunidade de aplicar nacionalmente o que fez por aqui. Imagine incêndios em favelas no Brasil todo! Vamos acabar de vez com esta herança arcaica que são as favelas, Kassab já mostrou que sabe fazer. Tem também a política de despejo expresso, sem necessidade daquela burocracia toda de uma ordem judicial. E é claro, leva com ele uma equipe íntegra e competente. Talvez o Aref como secretário-executivo, que tal?
Nos direitos humanos não há muito o que discutir. É Bolsonaro na certa. Um homem que pauta com coragem grandes temas tabus como a tortura, o direito ao aborto, a maioridade penal e o papel dos militares na sociedade. Cabeça arejada e capacidade de dialogar com todos os setores sociais. Ele e a Kátia poderiam ser os novos interlocutores do movimento popular no governo.
Nas Comunicações sugiro o Fabio Barbosa, da "Veja". Já mostrou ser um tipo criativo. Sua capacidade de criar fatos e transformá-los em manchetes está mais do que demonstrada.
Imagine isso tudo a serviço de seu governo! Os blogueiros radicais, que defendem democratização da mídia, podem não gostar. Mas paciência, nem Jesus agradou a todos. Afinal, a senhora poderá argumentar que a alternância no poder é necessária. A "Globo" já teve três ministros, agora é a vez da "Veja".
Para a Cultura eu tenho dúvidas. A Marta saiu com aquela cartinha mal-educada, querendo fazer média com o mercado. Convenhamos, a senhora foi muito mais esperta. Ao invés de fazer média com o mercado, trouxe ele para dentro do governo. Deixou a Marta falando sozinha.
É preciso resgatar a credibilidade do ministério. Pensei primeiro no Lobão, porque ele pararia com essa história de impeachment e ainda traria o apoio da turminha dos Jardins. Se bem que esta turminha tem cada vez menos razões para lhe fazer oposição. Mas acho que ele prefere construir a carreira junto com o Aécio, não toparia.
Talvez então o Reinaldo, homem culto e com ampla visão. Reinaldo Azevedo, sabe? Ele vive falando mal da senhora, mas acho que no fundo é tudo ressentimento. Uma ligação e ele se abre que nem uma flor. Vai por mim, até um rottweiler precisa de carinho. É isso que ele deve estar esperando há anos.
Há quem possa achar minhas sugestões muito conservadoras. Mas estou preocupado com a governabilidade. Governabilidade é tudo, presidenta! É um fim em si, como demonstram suas escolhas e as decisões de governo nos últimos 12 anos.
Se seguir minhas sugestões ao menos não poderão acusá-la de incoerente. Quem já convidou Levy, Kátia e Armando pode, pela mesma lógica irrefutável, convidar Bolsonaro, Fábio Barbosa e Reinaldo. Quanto ao Kassab, admito que a senhora teve a ideia antes e já anda sondando com ele.
Cordialmente, despeço-me certo de que teremos a opinião considerada. 


Texto de Guilherme Boulos, na Folha de São Paulo

Desejos dominantes

É a ÉPOCA do ano em que se espera que muitos adolescentes saibam e digam, enfim, o que querem fazer (e ser) na vida. A nossa cultura acredita que exista uma receita para a felicidade e para o sucesso: a coincidência do nosso desejo com a profissão à qual nos dedicamos.
Se conseguirmos conhecer nosso desejo, escolheremos uma profissão cujo exercício será uma gratificação permanente. Já pensou? Teremos a obrigação de fazer o que a gente quer. Não é maravilhoso?
Pois é, não funciona assim: 1) seguir o desejo da gente não é garantia de felicidade alguma, 2) para a grande maioria, o desejo não está escrito e escondido em algum recanto da mente: ele é incerto.
Rebecca (extraordinária Juliette Binoche), a protagonista do filme "Mil Vezes Boa Noite", de Erik Poppe, é fotógrafa de guerra, umas das melhores. O marido e as filhas não aguentam mais os riscos que ela corre. Ela promete deixar a profissão, mas não é fácil"¦ (Tente ver o filme antes que saia de cartaz.)
Todos temos desejos, pequenos e grandes. Por exemplo, quero escrever um livro sobre minha infância e estou muito a fim de "duroni", que são as cerejas do junho europeu, vermelhas e crocantes. Mas, além desses desejos plurais, que todos têm, alguns (poucos) parecem ter um desejo dominante, que os orienta na vida: eles sabem para o quê apareceram neste mundo.
Rebecca quer fotografar zonas de guerra. Ela mesma pode discordar de seu próprio desejo (e preferir cuidar das filhas e do marido), mas essa é sua razão de ser, é o que confere alguma significação a sua vida.
Mesmo os desejos dominantes, quando eles existem, não são destinos escritos nas páginas do livro dos livros. Como todos os desejos, eles se constituem aos poucos, desde a infância, à força de fantasias, pensamentos, identificações com os sonhos, as frustrações dos adultos etc.
Rebecca explica que ela se tornou fotógrafa de guerra na esperança de fazer as pessoas se engasgarem no café ao abrir o jornal da manhã e descobrir o horror.
Claro, essa é a ponta do iceberg, é o que Rebecca pode explicar à filha: de fato, qualquer desejo resulta de um tortuoso processo de acidentes, encontros, experiências. E, como disse, nem todos os processos acabam com a definição de um desejo dominante –longe disso.
Detalhes: 1) ter um desejo dominante não garante nem o talento nem o sucesso (ainda menos a felicidade), 2) o desejo dominante pode pedir um custo alto e, mesmo pagando o preço, o resultado, além de triste, pode ser medíocre. Rebecca explica por que ela é fotógrafa de guerra, mas seu desejo não explica nem implica o "olhar" que a torna boa fotógrafa. Ou seja, alguém pode fracassar no seu desejo dominante.
Idealizamos as pessoas que parecem ter um desejo dominante porque, por esse desejo, suas vidas têm uma orientação, um sentido. Não as idealizamos porque imaginamos seu sucesso ou sua felicidade.
De fato, ter um desejo dominante é quase uma praga, que limita a liberdade (pergunte a Rebecca se é fácil deixar seu ofício) e exige uma espécie de fidelidade, pela qual alguém incapaz de seguir seu desejo dominante seria um traidor de si mesmo.
Frequentemente, há pessoas que entram numa análise para saber qual é seu desejo e, eventualmente, agir para segui-lo: quem não encontra um desejo dominante pelo qual se definir, em geral, suspeita que seja porque não soube reconhecê-lo.
Ora, na grande maioria das vidas, o desejo se constitui por circunstâncias incertas, oportunidades inesperadas, modelos e referências contraditórios. Essa incerteza é provavelmente mais interessante do que o rigor de um desejo dominante, mas ela nos ameaça com o espantalho de passarmos a vida sem conseguir encontrar a "nós mesmos".
Em suma, o desejo dominante é um engodo. Para os jovens, que sentem o dever de "encontrar seu desejo". E para os pais que, ao mesmo tempo, esperam que os filhos desejem clara e ardentemente, mas, quando isso acontece, amarelam diante do destino que um desejo dominante pode reservar aos filhos.
Não seria melhor se eles fossem capazes de mais compromissos? Sei lá, fotografar casamentos e batizados, em vez de guerras?
p.s. Um outro filme sobre a força do desejo dominante me comoveu: "Saint Laurent", de Bertrand Bonello –só para confirmar que, para quem tem um desejo dominante, segui-lo é irresistível, cansativo e, às vezes, doloroso. 


Texto de Contardo Calligaris na Folha de São Paulo.