Tyne Cot é o maior cemitério de guerra britânico e da Comunidade Britânica, com 11.956 sepulturas, 8.369 delas com combatentes não identificados. Muitos dos homens aqui enterrados foram mortos na batalha de Passchendaele que ocorreu sob chuva, em 1917, quando a área em torno de Ypres tornou-se um lamaçal fedorento, e os homens feridos escorregavam das estruturas de madeira e desapareciam na lama.
Os soldados enterrados em Tyne Cot não descansaram em paz neste ano. Trabalhadores equipados com geradores rugindo e ferramentas pneumáticas de gravação remarcaram e substituíram milhares de lápides aqui e em cemitérios britânicos na Bélgica e na França, em preparação para o esperado aumento no número de visitantes por ocasião do centenário do início da Primeira Guerra Mundial no ano que vem.
"Nossos cemitérios e memoriais são lugares muito fortes, especialmente para os jovens", disse Peter Francis, porta-voz da Comissão de Sepulturas de Guerra da Comunidade Britânica. "Com a chegada do centenário, queremos garantir que nossos locais de visitação estejam prontos para todo esse período de quatro anos".
O mundo está se preparando para comemorar o início da guerra que moldou o século passado, matou 16 milhões de pessoas e tornou-se sinônimo de perda inútil de vida e o início da guerra industrial, onde o indivíduo não era nada diante da artilharia, metralhadoras, gás venenoso, lança-chamas, tanques e lama.
Mas as esperanças de que o centenário vai resultar em uma memória verdadeiramente conjunta da guerra podem ser frustradas. Cada nação está preocupada com suas próprias cerimônias, e a Alemanha atualmente não tem nenhum plano firmado.
O Reino Unido anunciou um programa de 50 milhões de libras (em torno de R$ 170 milhões) em eventos para marcar o centenário de momentos históricos, incluindo a Batalha do Somme em 1916, a Batalha naval de Jutland em 1916 e o armistício de 1918. A Austrália está gastando uma quantia similar. A França, cortada pela maior parte dos 700 km da Frente Ocidental, está realizando uma série de projetos e exposições e, em 2011, abriu o Museu da Grande Guerra, em Meaux, perto de Paris, com um investimento de $ 28 milhões de euros.
Poucos preparativos na Alemanha
Na Alemanha, os preparativos estão muito mais discretos. O governo ainda tem que firmar seus planos. "Estamos em contato com nossos parceiros para coordenar as atividades de comemoração", disse uma autoridade do governo alemão ao "Spiegel Online".
"Dada a natureza global e a natureza complexa do evento que ocorreu há um século, há em cada país uma diversidade de experiências e sentimentos", acrescentou a autoridade. "Cada nação tem o direito a sua própria abordagem. No entanto, percebemos uma grande vontade e empenho de fortalecer as pontes entre os nossos povos, por ocasião do centenário".
A Universidade Livre de Berlim e a Biblioteca Estadual da Baviera lançaram o maior projeto de pesquisa internacional sobre a guerra, e o Museu Histórico Alemão em Berlim está planejando uma grande exposição no próximo ano. Mas o país não está se preparando para grandes cerimônias públicas de memória nacional.
"Para nós, tudo é secundário à Segunda Guerra Mundial e o regime nazista, que domina as memórias das pessoas", disse Fritz Kirchmeier, porta-voz da comissão alemã de sepulturas de guerra.
Kirchmeier disse que o centenário é uma oportunidade para a Europa encontrar uma forma unificada de relembrar a guerra. "A guerra não nos divide tanto quanto a Segunda Guerra Mundial e a tirania nazista; ela não polariza tanto. Não foi marcada por crimes de guerra como a Segunda Guerra Mundial", disse ele. "Pode-se superar as perspectivas nacionais e olhar para as perdas sofridas pelo outro lado. Por exemplo, se você vai ler os nomes dos mortos, por que não ler os nomes de alemães, britânicos, italianos ou russos todos juntos?"
É uma sugestão louvável. Mas há um risco de que a Europa, em meio a todas as promessas de cerimônias comuns, perca essa oportunidade. Há pouco sentido no momento para um objetivo compartilhado por trás dos preparativos.
Qual poderia ser esse objetivo? Reconciliação? Isso já foi alcançado.
Qual seria a ideia? Transmitir uma mensagem de que a Europa, unida pela memória das guerras que a devastaram, compartilha um destino comum e deve continuar a unida? O momento não é para isso. A crise do euro colocou a solidariedade entre os países europeus sob forte tensão. Além disso, a nova geração de líderes que não têm experiência de guerra já não encarna um elo entre o passado sangrento e necessidade de união de hoje.
O ex-chanceler Helmut Kohl, que ajudou a tirar as pessoas mortas dos escombros de bombardeios aliados quando era menino em Ludwigshafen, na Segunda Guerra Mundial, muitas vezes citou a integração europeia como a chave para a paz duradoura. Seu lema era que os litígios antes resolvidos nos campos de batalha agora são resolvidos nas salas de conferência em Bruxelas.
Ele e o presidente francês François Mitterrand fizeram um poderoso gesto de reconciliação e união em 1984, quando deram as mãos durante uma cerimônia em um cemitério de guerra em Verdun, o local de uma das batalhas mais sangrentas da Primeira Guerra Mundial.
O governo alemão gostaria que as cerimônias do ano que vem transmitissem uma mensagem similar.
"Não devemos esquecer o incrível sofrimento que este cataclismo significou para toda uma geração", disse a autoridade. "Queremos salientar a grande conquista da reconciliação na Europa. A maior cooperação e integração na Europa provou ser o caminho certo para sair das sombras escuras da primeira metade do século 20".
No entanto, muitos europeus hoje assumem a paz como um dado garantido. E provavelmente as cerimônias não influenciarão os críticos de uma maior integração.
"Algumas pessoas, especialmente na Europa, vão tentar usar o centenário como uma ocasião para transmitir uma mensagem política moderna", disse o historiador britânico Max Hastings ao "Spiegel Online".
"Mas, pessoalmente, eu pensaria que a mensagem óbvia é que as guerras da Europa foram uma catástrofe para a Europa e não devemos jamais permitir que voltem a acontecer", Hastings continuou. "Eu acho que a maioria dos britânicos iria resistir fortemente a qualquer ideia de ir mais longe e dizer que isso significa maior integração europeia. Politicamente, seria uma batata muito quente no Reino Unido".
Na verdade, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, está sob pressão para lidar com o crescente ceticismo britânico em relação à UE e arrancar algumas concessões de líderes do continente antes do referendo sobre a adesão do Reino Unido à UE em 2017.
Hastings disse que as memórias nacionais obrigatoriamente são muito diferentes. "Na França, essa foi a experiência mais traumática do século 20; algumas partes do país foram devastadas, e 1,5 milhão de pessoas morreram, muito mais do que os britânicos. Nosso país escapou mais ou menos incólume, embora, evidentemente, os britânicos também tenham sofrido muitas baixas".
"Quanto à Alemanha, duvido muito que seja possível chegar a uma visão compartilhada", disse Hastings. "Enquanto a maioria dos alemães aceita a responsabilidade alemã pela Segunda Guerra Mundial, a maior parte hoje acredita que a Primeira Guerra Mundial não foi culpa sua. Alguns de nós historiadores acreditamos que, embora nenhuma nação tenha toda a responsabilidade, a Alemanha era a única nação que em julho de 1914 tinha o poder de evitar uma guerra e optou por não exercê-lo".
Historiadores têm visão compartilhada
Entre os historiadores, pelo menos, a visão de que a Alemanha tem uma responsabilidade considerável há muito foi estabelecida e é improvável que seja seriamente questionada por ocasião do centenário.
"As lideranças alemães e austríacas não queriam a guerra, mas arriscaram, jogaram um jogo perigoso", diz o professor Oliver Janz, historiador alemão na Universidade Livre de Berlim, que está a cargo do "1914-1918 On-line", o maior projeto de pesquisa internacional da Primeira Guerra Mundial, que é a compilação de uma enciclopédia em inglês online que deve entrar em operação em outubro de 2014.
Janz, autor do livro recém-publicado "14", disse que, embora a memória pública provavelmente continue segregada por país, as pesquisas já estão chegando a uma visão transnacional.
"Tentamos ver a coisa de uma perspectiva verdadeiramente global, do ponto de vista japonês, sul-africano, latino-americano; temos seções separadas para cada uma dessas regiões e também para países neutros. Estamos tentando reunir as várias perspectivas de cada nação e também chegar a uma imagem comum."
Uma rede de 800 historiadores estará envolvida, e a enciclopédia terá 15 mil páginas de texto, bem como fotos e imagens de vídeo.
"Minha impressão é que temos uma chance de chegar a uma visão transnacional da guerra porque hoje há uma distância suficiente para isso. Nenhum dos combatentes está vivo", diz Janz. "Mas é preciso esforço para se atingir uma perspectiva europeia comum. As pessoas estão acostumadas com a suas respectivas perspectivas nacionais".
Não há nenhum sinal até agora de que o centenário terá qualquer tom de vitória das nações que ganharam a guerra. E ninguém deve discutir o fato que o centenário oferece uma oportunidade para explicar como a guerra aconteceu e seu enorme impacto sobre o século passado.
"A nossa ambição é que muito mais gente passe a ver que não se pode entender o mundo de hoje a menos que se entenda as causas, o curso e as consequências da Primeira Guerra Mundial", disse Diane Lees, Diretora do Museu Imperial da Guerra do Reino Unido.
Do ponto de vista de hoje, é um desafio entender como os países se permitiram ser manobrados de forma que gerações inteiras de homens fossem abatidos em batalhas por alguns quilômetros, às vezes até alguns metros, de território, por quatro anos sem fim.
Esta talvez seja a melhor oportunidade de alcançar uma forma comum de recordação europeia: o sofrimento do soldado comum, um tema primordial da guerra e que foi o mesmo em todos os lados.
Neste sentido, a localização de um dos eventos de abertura do centenário parece particularmente adequada: será realizada no dia 4 de agosto no Cemitério Militar Britânico de St. Symphorien em Mons, na Bélgica, onde um número igual de soldados britânicos e alemães descansa lado a lado.
Texto de David Crossland para a Der Spiegel, reproduzido no UOL. Tradução: Deborah Weinberg