Em sua última coluna ("Dilemas e cartilhas", "Ilustrada", 7/3), Contardo
Calligaris levantou uma série de objeções interessantes a respeito dos
problemas indicados por mim e por Marcelo Coelho sobre sua maneira de
insistir em certos paradoxos morais. Talvez esta seja a ocasião de
levantar dois pontos que reflexões sobre filosofia moral não podem
negligenciar.
Primeiro, a discussão sobre a eficácia de determinadas ações não pode
sustentar-se na limitação artificial de suas consequências. Nesse
sentido, falar em eficácia da tortura é tão racional quanto perguntar-se
sobre a eficácia de um remédio contra dor de dentes, mas que
infelizmente provoca ataque cardíaco.
Tomemos o exemplo das torturas (de eficácia duvidosa, diga-se de
passagem) feitas para encontrar e matar Bin Laden. O que elas
produziram? Notem que o verdadeiro objetivo nunca foi matar Bin Laden,
mas transformar os EUA em um "lugar mais seguro". Nesse sentido, tais
torturas apenas deixaram o verdadeiro objetivo ainda mais longe.
Antes, os cidadãos norte-americanos viviam em um país cujos governantes
não temiam recorrer a torturas, execuções extrajudiciais, quebras de
liberdades individuais e vazios jurídicos, quando entendiam que o país
corria perigo, mas precisavam fazer isso em silêncio. Hoje, eles vivem
em um país que não vê problema em declarar abertamente que faz tudo
isso, como se esse fosse um mal menor diante do verdadeiro problema.
Assim, além da insegurança provocada pela Al Qaeda, agora os
norte-americanos devem levar em conta a insegurança provocada pelo seu
próprio governo, envolto em um estado de exceção permanente.
Segundo ponto: a enunciação de um "paradoxo moral" não pode negligenciar a experiência histórica a ele normalmente associado.
Durante décadas, "paradoxos" do tipo "você torturaria alguém com
informações que poderão salvar a vida de seu filho" foram usados como a
premissa maior de argumentos do gênero: "Da mesma forma que um pai deve
proteger seu filho, governantes devem proteger seu povo; logo...".
Ignorar que a enunciação desse paradoxo porta uma experiência histórica
dessa natureza não é moral. Esse é o problema de pensar questões morais
de maneira abstrata, negligenciando a maneira com que certos enunciados
circulam na história.
Diga-se de passagem, nunca entendi porque os interessados em paradoxos
morais no Brasil raramente colocam problemas do tipo: "Alguém que
certamente será torturado, provavelmente até a morte, bate à porta de
sua casa pedindo ajuda. Caso aceite, você colocará em risco a
tranquilidade de sua família.
O que fazer?".
Texto de Vladimir Safatle, publicado na Folha de São Paulo.
VLADIMIR SAFATLE es
Nenhum comentário:
Postar um comentário