Guerras culturais são sempre um bom negócio. Amadores discordam. São questões de vida ou morte, dizem eles, defendendo ou atacando pronomes neutros.
Os profissionais riem. Um deles, meu colega, explicou-me anos atrás que deixara temas clássicos —Espinosa e Leibniz— para se dedicar a temas de "interseccionalidade". No ranking das publicações, subiu ao pódio. Caso contrário, ainda estaria comendo pó.
É o mercado, estúpido! E o que é válido para a academia é válido para qualquer ramo de atividade. Se você pensa que a multinacional "X" ou "Y" tem convicções profundas quando abraça os temas "woke", você precisa fazer um exame neurológico. Sério.
É por isso que "American Fiction", o filme indicado ao Oscar, vem na altura certa. Suspeito que várias cabeças vão explodir quando assistirem à obra. Muitas explodiram quando leram o livro.
Mas, antes, uma confissão: sempre que alguém filma um romance de que gosto muito, eu tremo um bocadinho. Raramente me engano. Basta pensar no vandalismo a que foram submetidos todos os livros de Philip Roth pelo cinema.
Felizmente, isso não acontece com "American Fiction". O livro que inspirou o filme —"Erasure", de Percival Everett— está no top dez dos melhores romances americanos do século 21. O filme, pelo menos, não estraga. Para mim, basta.
No centro da história —atenção, spoilers— está Thelonious Ellison, que todos tratam por Monk, em homenagem ao grande pianista de jazz. Thelonious é um professor universitário e escritor. Também é negro, mas isso é secundário, pensa ele.
Pensa mal. Nas livrarias, os seus livros estão sempre na seção de estudos afro-americanos. Furioso, ele faz questão de os remover dessas estantes para os devolver, sem rótulos, à de ficção americana. Chega de segregação.
Além disso, o seu agente não consegue vender para nenhuma editora o mais recente romance de Ellison. Demasiado erudito. Escrito em inglês perfeito. Quem ele julga que é?
Um escritor branco?
As editoras, devidamente chefiadas por brancos, não admitem que um negro escreva livros sem os clichês do gueto. Querem linguagem chula, querem crack, querem rappers. Querem pobreza, querem polícia, querem mortes. Como diz o agente porto-riquenho, "querem se sentir absolvidos".
Ellison despreza esse fascínio mórbido dos brancos. É uma nova forma de exploração que persiste em reduzir os negros a uma caricatura tão insultuosa como as caricaturas dos tempos das leis de Jim Crow.
"Eu nem acredito em raça", diz ele. "O problema é que todos acreditam", responde o agente.
Thelonious medita nessas últimas palavras. E, só por piada, escreve o tipo de livro que faz sucesso entre os "racistas do bem". Sob pseudônimo, claro, porque o homem tem uma reputação a preservar.
Bingo! Uma grande editora faz uma proposta milionária para comprar os direitos. A piada virou coisa séria. O que fazer?
O agente, numa das melhores sequências do filme, põe três garrafas de uísque Johnnie Walker sobre a mesa. E explica: existe Johnnie Walker Red, Johnnie Walker Black e Johnnie Walker Blue.
Ele, Thelonious, será sempre um Johnnie Walker Blue, o melhor, o mais caro.
Mas as massas, para matarem a sede, compram Johnnie Walker Red, mais barato. Que mal tem ser um Johnnie Walker Red de vez em quando?
O livro é publicado com o belíssimo título de "Fuck". Bestseller imediato. Hollywood vem a seguir.
"American Fiction", tal como o romance de Percival Everett, é uma sátira primorosa ao paternalismo dos brancos. Conheço casos: hipócritas gentis que infantilizam as minorias porque são um bom negócio.
Que as supostas minorias tenham vidas normais, com alegrias normais, angústias normais ou amores normais, eis um pormenor demasiado burguês para quem prefere ver o mundo transformado em jardim zoológico. Cada um na sua jaula. Que pensarão as minorias disso?
Não posso falar por elas. Mas posso falar por Thelonious "Monk" Ellison, que supera a sua justa indignação e decide lucrar com a estupidez dos brancos. O cliente tem sempre razão, no fim das contas.
E, mesmo quando não tem, é ele quem paga as contas.
Texto de João Pereira Coutinho na Folha de São Paulo.
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