Lata d'água na cabeça, lá vai Léa Garcia. É no alto de uma favela carioca que ela desabrocha em "Orfeu Negro". No papel da serelepe Serafina, equilibra a lata na cabeça, requebra e leva água a barracos esquálidos no topo do morro. Atabaques rufam e cuícas choram.
O filme não se enoja com a miséria. Ao contrário. Celebra a fibra, a alegria, a arte, os mitos e ritos do Brasil negro e pobre. Tudo isso está sintetizado na magnética atuação de Léa Garcia. Ela dá vida a uma
diva livre, a uma libertária e libertina que faz o que quer.
A atriz morreu na terça (15), horas antes de receber um prêmio especial no Festival de Gramado. Não pôde curtir a salva de palmas pelo seu aniversário de 90 anos, a festa por estar num batente iniciado em 1952, no Teatro Experimental do Negro.
Um justo tributo seria passar no cinema uma cópia restaurada de "Orfeu", como a que vi no Grand Action, em Paris. Não só para você se deleitar com Serafina —a moça da pá virada que atiça a mocinha Eurídice e afronta a megera Mira.
Seria bom vê-lo porque "Orfeu" reatualiza problemas nacionais irresolvidos. Como a formação inacabada e deformada; as contradições entre povo preto e elite branca; os mal-entendidos de centro e periferia; o lugar de cada um de nós, nativos, no mundo.
Orfeu vive há mais de 2.000 anos nas "Geórgicas", de Virgílio. Inventor da lira, o músico se apaixona por Eurídice, que morre, e ele vai buscá-la no inferno. Consegue soltá-la, mas não pode olhar para ela até que emerjam das trevas. Orfeu arrisca e, ó fado funesto, Eurídice morre.
Nos anos 1940, Vinicius de Moraes ciceroneou o escritor americano Waldo Frank numa viagem de 40 dias pelo Brasil. Foi com ele a terreiros, bordéis, rodas de samba, palafitas e mocambos. "Saí do Rio um homem de direita e voltei de esquerda", contou o poeta.
A frase de Waldo Frank numa favela ficou-lhe na mente: os negros parecem gregos. Foi ela que o levou a escrever "Orfeu da Conceição". Pediu que João Cabral de Melo Neto a lesse e o pernambucano lhe disse: "Os dois primeiro atos estão ótimos; o terceiro, péssimo".
"Orfeu da Conceição" é, de fato, desigual. Mas retém a guinada que deu gume à adaga de Vinicius: o apreço pela ralé, na forma da música popular e das crenças afro-brasileiras.
Por isso pediu a Tom Jobim que a musicasse. Realista, o garoto de Ipanema perguntou: "Tem um dinheirinho aí?". Léa Garcia integrou o elenco totalmente negro da primeira encenação, de 1956.
Os cenários eram de Niemeyer.
Na época, Marcel Camus se encantara com o Rio. Fora preso pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial e dirigira havia pouco um filme que, por flagrar a ocupação na Indochina, foi proibido no além-mar. Vagamente, "Orfeu Negro" propugna harmonia antitética à guerra colonial que a França travava na Argélia.
Camus açucarou a brasilidade de Vinicius e rebatizou o filme para "Orfeu Negro", título de um ensaio no qual Sartre dizia: "A descida incansável do negro para dentro de si mesmo me faz pensar em Orfeu indo recuperar Eurídice".
Disse mais, Sartre: "Um judeu, um branco entre brancos, pode negar que é judeu e declarar-se um homem entre os homens. O negro não pode negar que é negro nem reivindicar para si a humanidade
abstrata e incolor: ele é negro".
Mesmo feito antes da bossa nova, do cinema novo e de Brasília, o filme mostra um Rio moderno. O Ministério da Educação, de Le Corbusier, aparece de lado, lindo; o Monumento aos Pracinhas está nos andaimes; um bondinho que é um arabesco percorre os Arcos da Lapa.
Musicados por Jobim, os versos de Vinicius exaltam a cidade "a sorrir, a cantar, a pedir a beleza de amar". O povo retinto e reto samba na favela cheia de flores, aves, cabras, até cavalo. De cima, o mar enche os olhos, beija areias do Flamengo, Botafogo e Copacabana.
"Orfeu Negro" ganhou a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de filme estrangeiro. Já a repulsa dos brasileiros a ele começou pelo próprio Vinicius. O poeta o viu no Palácio do Catete, junto com JK, o presidente. Ficou tão nauseado com a falsidade que saiu no meio.
Nem todos no exterior caíram na macumba para turista de Camus. Godard, ainda só um crítico da Cahiers du Cinéma, escreveu: "'Orfeu Negro' é de uma inautenticidade total".
Mas, com olhar agudo, Godard sublinhou a cena em que a Serafina-Léa Garcia leva para a cama um marinheiro chegado à malvada pinga —a câmera mostra os pés deles entrelaçados, e em seguida a mão marota da moça apaga o abajur.
No New York Times, no ano 2000, Caetano Veloso escreveu que "o contraste entre o fascínio que 'Orfeu Negro' gerou no exterior e o desprezo com que foi tratado pelos brasileiros, que se viram retratados como exóticos, é um convite a reflexões sobre a solidão do Brasil".
Reflexões que poderiam passar por Paulo Emílio Salles Gomes: "Não somos europeus nem americanos do norte, mas, destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro".
Ou por Sérgio Buarque de Holanda: "Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra".
O Brasil de "Orfeu Negro" projeta luzes e sombras no presente. Como aquele país fantasmagórico ainda pulsa, se bem que tenha mudado muito, o filho de Sérgio Buarque de Holanda, Chico, publicou em 2021 "Copacabana".
No conto, Ava Gardner faz questão "de subir ao morro onde rodaram 'Orfeu Negro', musical a que assistira inúmeras vezes". Lá, a molecada trepa no capô do conversível rabo de peixe e malandros apalpam a bunda da atriz —até que um chefão do tráfico a leva embora numa Harley-Davidson.
"Copacabana" é um retalho da nação na qual evangélicos acossam o candomblé; o samba deu lugar ao rap, ao sertanejo, à sofrência; a luta de classes murchou; traficantes e milícias enquadram favelados; a Parada Gay abraça a Marcha para Jesus; o imperialismo nos vela; Janja ri e Michelle chora.
Senta que o Brasil é manso. Valei-nos Léa Garcia.
Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo.