sábado, 5 de agosto de 2023

Rio de Janeiro, o túmulo do silêncio


Esta cidade é o inferno dos introvertidos.

No Rio, uma corrida de Uber não raro termina com o motorista dando conselhos sentimentais para o passageiro (ou vice-versa). Se ficarem presos no engarrafamento, há o risco de um ser chamado para ser padrinho de batismo do filho do outro.

Aqui, já fui chamado para arbitrar um entrevero entre a moça do caixa e a senhora que estava à minha frente na fila do mercado, uma divergência quanto ao valor do troco.

Balancei a cabeça em silêncio e mergulhei de volta na tela do celular, o bastante para ambas praguejarem contra a minha pessoa.

O Rio explode em luz e cores, mas também em sons. Som do samba, som do funk, som do carro de ovo, do carro de ferro-velho, do alto-falante da loja popular, som de gente falando.

Cariocas e residentes do Rio falam pelos cotovelos. As pessoas falam a rodo com desconhecidos, algo estranho para um paulistano com tendência à misantropia.

Não posso reclamar muito, porém. Já namorei uma moça que me interpelou com uma pergunta tonta, do nada, durante uma apresentação de chorinho na Gávea.

Aí, num bar de Santa Teresa, nós dois desandamos a falar com um grupo de estranhos. Fomos todos juntos beber mais um pouco no largo da Prainha.

Introvertido até o segundo gole de cerveja, eu me sinto um pouco menos estrangeiro quando estou num botequim. Por sorte, o Rio os tem aos milhares.

O boteco carioca é o inferno de quem quer beber em silêncio, absorto nos próprios pensamentos. O bebedor silencioso é alvo de irresistível curiosidade.

Todos no bar querem saber quem é, o que faz, de onde vem. O que há de errado com aquela pessoa que não fala?

Eu não ligo, até gosto. Se quisesse beber sozinho, ficava em casa.

Mas tem dias que você só quer almoçar. Foi o caso, nesta semana, em um bar de esquina no Grajaú, bairro da desinibida rodriguiana.

Peguei uma mesa sob o toldo e atrás da televisão. Pedi uma cerveja e o cardápio. E comecei a observar as pessoas.

Ao meu lado, também sozinho, outro homem de meia-idade infernizava a vida de um garçom.

Em tom condescendente, discorria sobre como o limiar do congelamento é a temperatura ideal de serviço de uma cerveja.

"Aqui no Rio a gente chama de canela de pedreiro", dizia. O marrom da garrafa é a perna do trabalhador. A superfície branca de cristais de gelo representa a cal.

Finda a sabatina, o garçom se foi. Pressenti que sobraria para mim.

Na TV, o noticiário mudou para algo sobre Robinho, ex-jogador que está no Brasil para fugir da cadeia por estupro na Itália. O homem ao lado se virou para assistir. Seu o olhar encontrou o meu.

"Não dá mais para fazer mais nada... lei Maria da Penha... não pode mais assoviar para as mulheres..." Eu só queria sumir. Não queria falar com ninguém, muito menos me meter numa briga de bar.

Então o milagre carioca aconteceu: no zap, um amigo me chamou para almoçar em outro lugar. Paguei e deixei o infeliz a falar sozinho.

Nada contra bater papo com desconhecidos, mas é sempre bom ter gente conhecida para te salvar deles.


Texto de Marcos Nogueira, em seu blogue Cozinha Bruta, na Folha de São Paulo

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