domingo, 6 de novembro de 2022

70% das urnas apuradas


Domingo passado, dia em que este país elegeu, com a graça de Deus, Lula para presidente, acordei como se alguém tivesse injetado anfetamina no meu joelho e cocaína no meu cóccix. Uma sensação leve de que eu poderia vomitar oito jatos de bile sabor halls preto. E também uma fome voraz e descontrolada, que me fez abrir umas oito embalagens de besteiras aleatórias para devorar.

Domingo passado, dia em que pensei que poderia morrer de tanta ansiedade e nervoso, dia em que temi acabar desmaiada, taquicárdica e cagada no chão de casa, dia em que tive vontade de dançar besuntada de saliva com pó de ouro pela Paulista abraçando toda sorte de progressistas, dia em que não fiz nada disso porque de tanto querer tanta coisa eu já estava inteira panicada e fóbica e exausta e tirando a pressão e medindo a febre e tomando ondansetrona com clonazepam... Domingo passado foi só mais um dia normal na minha vida.

Aquilo que você sentiu quando o Bonner avisou que 70% das urnas estavam apuradas. E você pensou: "Foi? Já é? Hein? Hein? Acaba logo essa porraaaaaa porque eu não tenho saúde pra tanta emoção!!!". Aquilo que você sentiu quando o Datafolha projetou "Lula presidente", mas seu primo de exatas falou: "Calma, ainda não vai gritar na janela, ainda não é certeza".

A vontade de se rasgar inteiro e ir ser selvagem por entre árvores e esquecimentos. Esse bicho desaforado roendo por dentro as suas batatas da perna. Esse acúmulo de 1 milhão de janelas que se abriram no seu horizonte e você, impossibilitado de fechar uma por uma, pensou estar ficando louco. Bem, essa sou eu há 43 anos. Há 43 anos eu vivo cada minuto como se fosse aquele minuto do domingo passado, com 70% das urnas apuradas.

Se você sofre do que eu sofro, vai me entender. Se o avião começa a chacoalhar muito e as pessoas começam a ficar desesperadas, eu quase entro em êxtase: "Oba, agora sim estão todos no mesmo clima em que eu já estava antes mesmo de sair de casa pra entrar nessa merda de avião". Eu já estou dentro de um avião em queda muito antes de comprar a passagem. Eu já estou em um avião em queda e nem tenho nenhuma viagem para fazer.

Foi engraçado ver meus amigos reclamando de uma coisa no intestino, na goela, na nuca, no meio do peito. "Vai logo ou eu vou morrer!". Isso aí, rapaz, é meu estado normal. Eu estava assim no cinema, na missa, na pracinha, na reunião, na padoca moderninha, no meio do sexo, na acupuntura e até mesmo dormindo.

Precisou uma passagem de ônibus ficar uns centavos mais cara, precisou um bando de arrombados (eu inclusa) sair para as ruas em 2013, precisou ter um golpe contra a Dilma, precisou o país eleger um fascista negacionista, precisou o Lula voltar, precisou uma projeção nos prédios de NY implorando para os brasileiros votarem certo e não foderem com o planeta, precisou o Caco Ciocler explicar para as tias do zap o que é nazismo, precisou chegar em 70% das urnas apuradas no último domingo para meus amigos entenderem o que eu sinto quando uma esfirra de queijo demora para sair.

Já fui diagnosticada com ansiedade generalizada, mas antidepressivos me causam virada maníaca. Seria então bipolaridade do tipo 2? Se fosse eu teria episódios significativos de depressão. Transtorno de deficit de atenção? Eu costumo ser bem focada nos meus múltiplos empregos. Hiperatividade? Se a aula for boa eu posso passar 15 horas sentadinha sem me mover. TOC? Quando estou sexualmente ativa os livros da minha estante podem estar todos bagunçados e empoeirados que eu não acho que o teto vai me engolir. Hipomania? A única atividade arriscada de que eu gosto é dormir até tarde quando estou com a conta negativa no banco.

Eu não sei o que eu tenho, mas eu sei que todo mundo que eu conheço parecia mais vivo e mais humano no último domingo. Eu não devo ser tão ruim assim.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário