sábado, 26 de novembro de 2022

Isabel Salgado era uma divindade olímpica com sotaque carioca


Concordo com o deposto, o ano deveria ter acabado em 31 de outubro, após o fim das eleições. Só que não. Dois meses ainda nos separam do ano que vem, sendo que novembro resolveu pesar.

Escrevo na pasmaceira de mais uma infecção de Covid, minha terceira na pandemia. Gabaritei todas as ondas. O efeito das quatro doses de vacina é notável, caí com coriza, dor de cabeça e garganta, antes de positivar. Estranhíssimo. Achei que fosse psicológico, mas parece que já era o corpo agindo por antecipação. Quando amanheci bem, acusou no teste. Desde então, estou curada e contagiosa.

Na manhã do famigerado teste, a casa acordara cedo com o telefonema do fotógrafo Fernando Young, amigo e parceiro casado com Carol Solberg, filha de Isabel Salgado. A sogra adorada acabara de ser intubada na emergência do hospital Sírio Libanês, em São Paulo.

Minha família já enfrentou um transplante de medula e tem experiência com moléstias graves. Fernando pedia ajuda. Isabel havia dirigido a Dutra e chegado à cidade no dia anterior. Teve febre à tarde, foi atendida em outro hospital, voltou para casa e piorou à noite. Ajudamos no que foi possível, até receber a inadmissível notícia, na madrugada seguinte. Isabel tinha cinco anos a mais do que eu.

Havíamos nos encontrado um mês antes, na casa de Carol e Fernando. Estar com Isabel nunca foi corriqueiro. Era como se aproximar de uma divindade olímpica com sotaque carioca. As mãos imensas, que sempre me chamaram a atenção; a pele morena, boa; o cabelão crespo repuxado no rabo de cavalo, os ossos largos e o sorriso dentuço. Isabel parecia um garoto grande, embora fosse muito feminina. Era praiana, direta, humorada, inteligente e atraente como um ímã.

Ela foi um acontecimento quando surgiu. Traumatizados pela derrota da seleção para os Azzurri, na segunda fase do Mundial de 1982, atravessávamos o meio da longa seca de 24 anos que separou o tri do tetra.

Só podia ser mau olhado. A superinflação somada ao estertor da ditadura, um sentimento de fracasso coletivo, contaminando até as chuteiras. Para a molecada, o basquete, mas principalmente o vôlei, vieram resgatar o amor-próprio da nação esportista, e com uma novidade e tanto, a presença das mulheres.

O governo militar surfou nas glórias da Copa de 1970. O futebol virou símbolo do "país que vai para a frente" e adotou a hierarquia dos quartéis na concentração e nos treinos. Passada uma década de continência, com o advento da abertura, o livre pensar aflorou entre atletas como Sócrates e Casagrande. Junto com Wladimir, Biro-Biro, Zé Maria e Zenon, eles moveram a Democracia Corinthiana, gestão igualitária do clube, que vestia com a camisa das Diretas Já.

Filhas da mesma democracia emergente, as garotas do vôlei já vieram ao mundo sem papas na língua, Isabel mais do que todas. Criada no Arpoador do Circo Voador, amiga do pessoal do cinema e mãe de cinco filhos, três dos quais de Rui Solberg, lenda viva do Rio de Janeiro mítico dos anos 1970, ela era o elo entre esporte e cultura, política e liberdade, raça e graça, a bossa nova e o BRock. Isabel foi a nossa Leila Diniz.

E, como se não bastasse, esse novembro chuvoso ainda nos roubou a Gal. A Gal. Não escrevi sobre a partida dela nem sobre a do , em agosto. De vez em quando, o que resta é o silêncio. Mas faço aqui, nessa página sobre a Isabel, minha despedida do Oscar dos dois. Que dezembro não me invente moda.

Conheci o Jô com sete anos de idade, no Teatro da Praia. Empoleirada no balcão vazio —o monólogo era impróprio para menores, mas meus pais me davam a liberdade—, eu o vi em cena, vestido de coração. Era um enorme coração pulsante, que ia do pescoço aos pés e de uma mãozinha à outra; a barriga protuberante no meio. É a memória mais antiga que guardo dele, resumo mais do que perfeito do que era o Jô. Depois, com os livros, desenvolvemos uma amizade a distância, comigo fingindo que era normal conversar com ele no telefone.

A Gal me flechou no "Fa-Tal", LP fetiche de infância, entre os discos dos meus pais. Quando acordei para a vida, o píer e as dunas já não estavam mais lá e só fui vê-la ao vivo no "Balancê". E amava tanto "Vapor Barato" que a cantarolei num filme.

Por causa de "Terra Estrangeira", Gal voltou a incluir a música no repertório. Nunca me esqueci do delírio que me acometeu ao ouvi-la puxar o "Vapor" em cena, delírio de que a musa cantava para mim. Entre as tantas belezas dessa voz, "Vapor Barato" está no topo da minha parada, junto com "Mãe", do Caetano, canção que abria o show dirigido por ele para a parceira da vida inteira.

Foi entregar a crônica para saber de Erasmo. Sinceramente... Ou Deus anda caolho ou é muito ruim de pontaria.


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Obrigada, Bituca!


13 de novembro de 2022, passa um pouco das 19h.

Depois de quase seis meses de espera, cerca de sessenta mil fãs recebem, no Mineirão lotado, Milton Nascimento, a voz de Deus. Como diria meu amigo Eudes Jr., uma Entidade.

Nada é exagero para você, Bituca.

É a última sessão de música.

Ponta de areia, ponto final.

Logo no início, Bituca, muito emocionado, dedica seu último show à amiga Gal Costa, que morreu há quatro dias.

"Imagina o tamanho do presente que é o show anunciado como o último da carreira de ninguém menos que Milton Nascimento ser dedicado a você", eu me pego pensando.

Milton agradece ao público por fazer sua vida tão linda. É toda a beleza que você espalha neste mundo voltando para você, Bituca. Obrigada por fazer as nossas vidas tão lindas. Tão melhores.

Não sei exatamente em qual momento ele diz que Elis é o amor da sua vida. Talvez tenha sido antes de Canção do Sal.

Quem assistiu ao musical Os sonhos não envelhecem certamente ouve, ao longe, a maravilhosa Elá Marinho próxima a um piano imaginário.

Trabalhando o saaaaaal

É amor, o suor que me sai

Vou viver cantando o dia tão quente que faz

Um dia muito quente mesmo. Um tempo tão bonito que se vê ao céu do Mineirão, distante das chuvas que inundaram a cidade nos últimos dias.

Deixo tudo, deixo nada/ Só do tempo eu não posso me livrar/ E ele corre para ter meu dia de morrer/ Mas se eu tiro do lamento um novo canto/ Outro dia vai nascer

Tão impossível imaginar um mundo em que não existisse a música de Milton, a voz de Milton. Mas em algum momento, escuto, ao menos acho que escuto, ele dizer que nunca se despedirá da música.

"Parece que é o Toninho Horta entrando ali". É. E Wagner Tiso, Beto Guedes, Lô Borges. É o Clube da Esquina reunido na nossa frente. Que dia lindo para estar viva.

Há um grito diferente nas vozes que entoam Não precisam mais temer/ Não precisam da solidão/ Todo dia é dia de viver

Sabemos o que está sendo cantado hoje, 13 dias depois das eleições presidenciais.

Atrás de mim, de tempos em tempos, dois homens levantam uma faixa com os dizeres "Ditadura nunca mais". Mostram para as pessoas a sua frente, são aplaudidos. Mostram para as pessoas atrás, são aplaudidos. A cada vez, a iniciativa é acompanhada de pessoas exaltando o presidente eleito, Lula. Alguém visivelmente irritado se levanta e sai.

"Vai tocar Paula e Bebeto e eu queria perguntar para esse moço o que é que ele entende da música", penso.

E toca. O gênio da voz Zé Ibarra nos lembra Gal.

Qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor valerá.

Existe uma beleza peculiar em todas as coisas que se vivem pela última vez. Milton foi tão generoso ao nos informar sua intenção de se despedir dos palcos. Em avisar que podia ser a última chance de participar de algo tão importante para tantos de nós, mas que podia não parecer urgente.

Viver é urgente.

Estive no show do Milton no mesmo Mineirão em 2019. Meu último show pré-pandemia, pré-maternidade. Uma outra pessoa, em um outro mundo.

Naquele dia Milton não tocou Travessia, sua parte mais importante dentro de mim.

Hoje ele vai tocar, tem que tocar.

Chegamos a Maria, Maria. Fogos, despedida. Uma pessoa atrás de mim se desespera também. Volta aqui pelo amor de Deus, Milton. E toca Travessia.

Vem um bis com Coração de Estudante. E um "viva a democracia!" que sabemos muito bem o que quer dizer.

Tem que ser agora. Só pode ser.

Quando você foi embora, fez-se noite em meu viver…

Sim, Milton. É difícil acreditar na sua despedida. Mas ela não faz noite em nossas vidas. Vamos chorar, mas temos muito que viver, embalados pelo seu legado.

E de todo modo, você não termina com Travessia. Termina cantando que gosta de poder partir sem ter planos e que melhor ainda é poder voltar quando quiser.

Estaremos aqui. Para encontros e despedidas.

Obrigada, Bituca! Obrigada por existir, por dividir a sua existência. Obrigada por não desistir, como disse Samuel Rosa. Obrigada pelo seu viva à democracia em um dos momentos mais necessários da nossa história. Por não se omitir, por seguir cantando a resistência. Suas músicas nos pegam pelas mãos e fazem com que a gente não desista também. Mesmo quando a gente custa a acreditar nessa estranha mania de ter fé na vida.


Reprodução do blogue Morte sem Tabu, na Folha de São Paulo

Milton homenageia Gal e reúne o Clube da Esquina em show de despedida em BH


O cantor e compositor Milton Nascimento abriu seu show de despedida dos palcos na noite deste domingo em Belo Horizonte homenageando a cantora Gal Costamorta no último dia 9.

Saudado por Caetano Veloso por seus "tons geniais", chamado de "único" por Cat Stevens e de "grande irmão" por Paul Simon, Milton encerrou sua turnê "A Última Sessão de Música" aclamado por uma multidão de fãs, nem tão famosos, mas não menos entusiasmados.

"Esse show é dedicado à minha querida Gal Costa", disse Milton, ao final da primeira música, "Ponta de Areia". Antes do início da apresentação, uma foto de Gal abraçada a Milton havia sido exibida nos telões do palco, assim como um vídeo dos dois cantando "Paula e Bebeto".

O show no Mineirão marca o fim da turnê "A Última Sessão de Música", que passou por outras seis capitais brasileiras e países como Estados Unidos, Portugal e Itália.

A escolha de Minas Gerais para a última apresentação também é uma homenagem de Milton ao estado que o inspirou. Não há que se falar de Minas sem Milton e vice-versa. Carioca de nascimento, o cantor foi criado no estado, onde conquistou a eternidade. O show no estádio teve lotação máxima, total de 57 mil ingressos vendidos.

Depois do anúncio de surpresas para o show, surgiram no palco Wagner Tiso, Toninho Horta, Beto Guedes e Lô Borges, relembrando o Clube da Esquina, álbum antológico do qual participaram, entoando "Para Lennon e McCartney" e "Um Girassol da Cor de Seu Cabelo".

Samuel Rosa também apareceu para cantar "Trem Azul". "Baita privilégio estar aqui. Sua música transforma as pessoas e o país", disse o fundador do Skank.

O repertório da noite, em sua maior parte, reuniu músicas compostas dos anos 1960 aos 1980. A abertura foi com "Ponta de Areia", inspirada em reportagem sobre a desativação de uma ferrovia que ligava Minas ao litoral sul da Bahia. A plateia cantou alto.

Cartazes com a frase "obrigado, Bituca" foram distribuídos aos espectadores na entrada do estádio e mostrados ao longo da apresentação. O público era uma mistura equilibrada de fãs mais jovens e mais velhos, que se embalaram quando Milton tocou "Amor de Índio", de Beto Guedes, e depois "Cais" e "Tudo o que Você Podia Ser".

"San Vicente" foi entoada por Zé Ibarra, músico também encarregado da abertura do show. E o coro do Mineirão voltou em seguida, com Milton cantando "Clube da Esquina 2" e "Nada Será Como Antes".

A instrumental "A Última Sessão de Música", que dá nome ao show, veio em seguida. Um breve momento de calmaria que antecedeu outro clássico, "Fé Cega, Faca Amolada" emendada com "Paula e Bebeto".

Milton e banda seguiram o show com "Calix Bento" e a cantiga popular "Quem me Ensinou a Nadar", depois "Cio da Terra", parceria com Chico Buarque.

"A próxima música dedico a todos vocês", disse Milton ao público antes de começar a cantar "Canção da América", com o verso "amigo é coisa para se guardar do lado esquerdo do peito". A sequência foi com "Caçador de Mim" e "Nos Bailes da Vida".

"Bola de Meia, Bola de Gude" veio já com quase duas horas de show. Milton se emocionou depois de anunciar a banda. A plateia gritava "Bituca, Bituca" quando o cantor iniciou "Maria, Maria". Uma sequência de fogos de artifício coloriu o Mineirão enquanto a música era encerrada.

As cortinas foram fechadas, mas reabertas para mais uma participação de Wagner Tiso ao piano, para tocar "Coração de Estudante". "Viva a democracia", disse Milton ao final da música, ovacionado pela plateia.

E o show continuou, agora com Toninho Horta novamente no palco para "Travessia". "Encontros e Despedidas", encerrou a noite.

Antes de deixar o palco, Milton foi levantado pelo filho Augusto Nascimento e colegas de equipe para uma saudação ao público. O cantor voltou a se emocionar muito. Noite mágica no Mineirão.


Reprodução da Folha de São Paulo

domingo, 6 de novembro de 2022

Lula destronou Bolsonaro, mas tem tarefas hercúleas adiante e pode acabar mal


Lula é o grande vulto da história republicana. Goste-se ou não dele, sua saga é heroica. A comparação com a figura que lhe vem em seguida, Getúlio Vargas, mostra que sua trajetória é excepcional e exponencial.

Estancieiro nos pampas, Vargas era um quadro da elite desde 1909, quando virou deputado. Depois governador e ministro, deu o golpe de 1930. Foi um caudilho de republiqueta por 15 anos: demagogo, oportunista, sanguinário.

Lula comeu pão pela primeira vez com sete anos, ao chegar a São Paulo de pau-de-arara. O pão que o diabo amassou; engraxate, fumava guimbas catadas na rua e usava o banheiro da freguesia de uma birosca. Não tinha onde cair morto.

A mística do Vargas Pai dos Pobres vem de seus três anos como presidente eleito. Os trabalhadores melhoraram de vida no período, mas as dádivas lhe foram concedidas por uma casta de pelegos e políticos venais que o chefe populista cevava e cooptava.

Já Lula tece sua trama com o povo pobre desde a ditadura. Liderou greves, foi preso e perdeu eleições, mas pelejou sempre pela organização autônoma dos espoliados. Relembre-se: o PT foi criado para enfrentar o patronato e os burocratas dos partidos comunistas, a começar pelo brasileiro.

Militares abutres e corvos civis avançaram na jugular de Vargas em 1954. Ele se suicidou e o golpe gorou. Dez anos depois veio a quartelada que arrochou os trabalhadores por décadas.

Açulados por Judas-Temer, burgueses, juízes, parlamentares, jornalistas e prelados cravaram os dentes na carótida de Lula em 2017. Provas forjadas, chicanas, mentiras, não faltaram caninos à matilha. Aí Lula teve sua hora alta.

Ele não fugiu. Podia ter se refugiado no exterior porque era claro como mil sóis que seria trucidado. Preferiu, disse, ser "enterrado vivo" a permitir que lhe imputassem crimes que não cometera. Teve a fibra de Mandela.

Não se cogitava que um dia lhe fizessem justiça. Porque, com covardia infame, Barroso, Carmen, Fachin, Fux, Moraes e Weber aceitaram o cabresto que lhes foi posto pelo comandante do Exército, e cassaram o direito de Lula disputar a eleição de 2018.

A cúpula da Justiça reafirmou seu caráter de classe ao decretar que lugar de líder trabalhador é na cadeia. Mais que depressa, a direita dita civilizada aceitou, como uma mula manca, que a extrema direita a cavalgasse. Sem o petista na liça, Bolsonaro venceu.

Acharam que Lula purgaria 12 anos de pena e sairia destroçado do cárcere. Ou se desmoralizaria num acordo para ser solto. Mas deu-se o inconcebível, o Supremo liberou Lula. Até para uma Justiça pangaré como a nossa, foi do jamais visto.

A justificativa das iminências teve um toque grotesco: levaram três anos para descobrir que Atibaia e o Guarujá —onde estavam o sítio e o tríplex dos quais não havia prova que fosse dono— não ficavam em Curitiba, onde corria a Lava Jato, mas em São Paulo.

Lula não deixou a solitária por obra de uma irrefreável campanha de massas. Só meia dúzia de gatos pingados lhe gritava bom dia e boa noite. Contudo, o Supremo abriu sua cela com uma canetada. A boa pergunta é: por quê?

Porque Bolsonaro escoiceava a república, trotava sobre os cadáveres da peste e zurrava que, dane-se a democracia, seria ditador. O Supremo, que come e dorme com os maiorais, imaginou a saída para a crise inexorável; deixar Lula livre para promover a boa e velha conciliação.

O herói avisou que, mesmo na idade de fazer bilu-bilu nos netos, inflamaria seu povo. Descascaria o abacaxi da campanha e enfrentaria o pepino do governo. Agora os iluminados dizem que ele ganhou graças ao centro, ao TSE e à valorosa elite. Então tá.

Essa cantilena é de quem quer tutelá-lo. Foi Lula quem reergueu o centro defunto. Foi ele que afrontou o Estado aparelhado pela gangue bolsonarista. Ao votar maciçamente nele, como disse o sociólogo Celso Rocha de Barros na sua última coluna, "os pobres salvaram a democracia".

A história não chegou ao fim. É o que diz o coro em "Édipo Rei", a tragédia de Sófocles, ao ver o herói que salvou Tebas ser moído pelo destino: "Não se diga que um homem é feliz até ele estar morto".

Lula também falou de morte no discurso depois de eleito. De improviso, disse: "O povo é a minha causa, e combater a miséria é a razão pela qual vou viver até o fim da minha vida".

Como as tarefas à frente são hercúleas, Lula pode ter um fim trágico. Mas não se pode esquecer que, aconteça o que acontecer, o herói da causa popular livrou Tebas da tirania.


Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo

70% das urnas apuradas


Domingo passado, dia em que este país elegeu, com a graça de Deus, Lula para presidente, acordei como se alguém tivesse injetado anfetamina no meu joelho e cocaína no meu cóccix. Uma sensação leve de que eu poderia vomitar oito jatos de bile sabor halls preto. E também uma fome voraz e descontrolada, que me fez abrir umas oito embalagens de besteiras aleatórias para devorar.

Domingo passado, dia em que pensei que poderia morrer de tanta ansiedade e nervoso, dia em que temi acabar desmaiada, taquicárdica e cagada no chão de casa, dia em que tive vontade de dançar besuntada de saliva com pó de ouro pela Paulista abraçando toda sorte de progressistas, dia em que não fiz nada disso porque de tanto querer tanta coisa eu já estava inteira panicada e fóbica e exausta e tirando a pressão e medindo a febre e tomando ondansetrona com clonazepam... Domingo passado foi só mais um dia normal na minha vida.

Aquilo que você sentiu quando o Bonner avisou que 70% das urnas estavam apuradas. E você pensou: "Foi? Já é? Hein? Hein? Acaba logo essa porraaaaaa porque eu não tenho saúde pra tanta emoção!!!". Aquilo que você sentiu quando o Datafolha projetou "Lula presidente", mas seu primo de exatas falou: "Calma, ainda não vai gritar na janela, ainda não é certeza".

A vontade de se rasgar inteiro e ir ser selvagem por entre árvores e esquecimentos. Esse bicho desaforado roendo por dentro as suas batatas da perna. Esse acúmulo de 1 milhão de janelas que se abriram no seu horizonte e você, impossibilitado de fechar uma por uma, pensou estar ficando louco. Bem, essa sou eu há 43 anos. Há 43 anos eu vivo cada minuto como se fosse aquele minuto do domingo passado, com 70% das urnas apuradas.

Se você sofre do que eu sofro, vai me entender. Se o avião começa a chacoalhar muito e as pessoas começam a ficar desesperadas, eu quase entro em êxtase: "Oba, agora sim estão todos no mesmo clima em que eu já estava antes mesmo de sair de casa pra entrar nessa merda de avião". Eu já estou dentro de um avião em queda muito antes de comprar a passagem. Eu já estou em um avião em queda e nem tenho nenhuma viagem para fazer.

Foi engraçado ver meus amigos reclamando de uma coisa no intestino, na goela, na nuca, no meio do peito. "Vai logo ou eu vou morrer!". Isso aí, rapaz, é meu estado normal. Eu estava assim no cinema, na missa, na pracinha, na reunião, na padoca moderninha, no meio do sexo, na acupuntura e até mesmo dormindo.

Precisou uma passagem de ônibus ficar uns centavos mais cara, precisou um bando de arrombados (eu inclusa) sair para as ruas em 2013, precisou ter um golpe contra a Dilma, precisou o país eleger um fascista negacionista, precisou o Lula voltar, precisou uma projeção nos prédios de NY implorando para os brasileiros votarem certo e não foderem com o planeta, precisou o Caco Ciocler explicar para as tias do zap o que é nazismo, precisou chegar em 70% das urnas apuradas no último domingo para meus amigos entenderem o que eu sinto quando uma esfirra de queijo demora para sair.

Já fui diagnosticada com ansiedade generalizada, mas antidepressivos me causam virada maníaca. Seria então bipolaridade do tipo 2? Se fosse eu teria episódios significativos de depressão. Transtorno de deficit de atenção? Eu costumo ser bem focada nos meus múltiplos empregos. Hiperatividade? Se a aula for boa eu posso passar 15 horas sentadinha sem me mover. TOC? Quando estou sexualmente ativa os livros da minha estante podem estar todos bagunçados e empoeirados que eu não acho que o teto vai me engolir. Hipomania? A única atividade arriscada de que eu gosto é dormir até tarde quando estou com a conta negativa no banco.

Eu não sei o que eu tenho, mas eu sei que todo mundo que eu conheço parecia mais vivo e mais humano no último domingo. Eu não devo ser tão ruim assim.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo