terça-feira, 26 de novembro de 2019

Quanto pior, melhor

Uma releitura da bandeira do Brasil, estampada com um olho humano, que deixa escapar uma lágrima. A obra de autor desconhecido começou a ser difundida nas redes sociais em 2013, muitas vezes acompanhada pelo ambíguo subtítulo “luto pelo Brasil”. 
Qualquer brasileiro com acesso à internet teve a sua retina levemente arranhada pelo “olho patriota”. A ilustração foi o prenúncio de uma crise estética que hoje afeta inúmeras formas de expressão artística.
No campo das artes plásticas, destacam-se instalações infláveis como o icônico pato da Fiesp, o Pixuleco e o Super Moro. 
Entre as performances, a coreografia encenada em um flash mob pró-Bolsonaro em Fortaleza, no período das eleições, deixou seu legado de eterno constrangimento. 
Falando em legado, o autor do funk “Proibidão do Bolsonaro”, MC Reaça, pode não estar mais entre nós, mas sua música segue perpetuando a misoginia que ele praticou em vida.
Já o setor audiovisual sentiu o impacto da atuação do deputado do PSDB Alexandre Frota, que recentemente publicou uma série de vídeos vestido de palhaço e ameaçando opositores. Não é o Coringa que o Brasil precisa, mas o Coringa que o Brasil merece agora. 
Quando o assunto é design gráfico, impossível ignorar a substituição do Photoshop —um dos softwares mais utilizados para manipulação de imagens digitais— pelo Paint Brush do Windows 95 —uma ferramenta mais arcaica, perfeita para ilustrar o amadorismo e os retrocessos do atual governo. 
O boom das camisas da CBF e o figurino de Zé Carioca adotado por Luciano Hang não deixam dúvidas de que a indústria da moda também foi influenciada. Vi, com meus próprios olhos, um manequim em Copacabana usando um top com estampa militar e uma bandeira do Brasil enrolada em volta da cintura como se fosse uma minissaia. 
Mas nada simboliza essa crise estética com mais precisão do que o mural de projéteis do partido Aliança pelo Brasil. 
Os painéis feitos com cartuchos de munição de armas de alto calibre estão em alta.
O presidente da República, Jair Bolsonaro, e o governador do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, já foram retratados com essa técnica, que alude à necropolítica praticada por ambos. 
Um partido que escolheu o número 38, o mesmo de um revólver, não poderia ser melhor representado. Seu logo de projéteis é um ataque à democracia, à população brasileira e às nossas retinas, que nunca estiveram tão vulneráveis.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Uma consulta ginecológica

No já clássico “A Ordem Médica”, do psicanalista Jean Clavreul (Brasiliense, 1983), encontramos uma avaliação muito precisa das condições a que estão submetidos médicos e pacientes na atualidade.
Segundo o autor, não se trata de uma relação entre dois sujeitos nas posições cuidador/cuidado, respectivamente. Trata-se da pretensão de uma relação asséptica entre o saber da medicina e a doença.
Nem médico, nem paciente comparecem como sujeitos, pois a ciência almeja eliminar a subjetividade. É óbvio que toda essa assepsia não existe e resulta, de um lado, na baixa adesão aos tratamentos por parte dos pacientes e, de outro, no famoso “burnout” da classe médica, cuja taxa de suicídio e drogadição é assustadora.
Por quê? Porque “tumor” tem nome, sobrenome, sexualidade, história e o “saber médico”, por sua vez, é encarnado por um sujeito, que tem suas paixões, medos, fantasias. A busca por tamanha isenção é nociva e vem sendo denunciada pela psicanálise desde sua fundação.
E como isso aparece nos excruciantes exames ginecológicos?
Logo de cara a jovem descobre que os exames clínicos femininos requerem uma dose considerável de estoicismo. Deitada de pernas para o alto, passará por uma rotina de coleta de material e apalpação que é tão necessária, quanto desagradável. Calvário de toda mulher que tem o privilégio de receber assistência ginecológica precoce e periódica.
A vida segue e ela terá doenças mais ou menos sérias, filhos, abortos, mais exames, mais invasivos, mais precisos, mais excruciantes. Existe alternativa para o que é necessário? Alguns ginecologistas apostam que sim.
Nesse caso, o ginecologista convida a paciente a acompanhar ativamente o exame —o mesmo que algumas fazem resignadas há tantas décadas, que chegam a esquecer como é grotesco. Começa com a oferta de um espelhinho para que a paciente veja o que se passa com seu corpo durante o processo.
O espéculo, objeto que é desconfortavelmente introduzido para retirada de material do colo do útero, é entregue à paciente para que ela mesma o insira, respeitando sua propriocepção. A vagina, de difícil visualização no dia a dia, lhe é apresentada e todas as explicações lhe são dadas, não para sobrecarregá-la de informações científicas, mas para aproximá-la do próprio corpo. Todos os toques são acompanhados do incentivo para que ela participe ativamente em sua avaliação. Essa pequena revolução atende pelo nome de medicina entre seres humanos.
Essa “nova” forma de clinicar tem sido discutida por coletivos feministas e por profissionais antenados e sensíveis, que se preocupam com a relação da mulher com seu próprio corpo e em como interferir positivamente nessa relação. Não se trata de mais um protocolo a ser reproduzido mecanicamente.
Sabemos como a impessoalidade no método canguru, na assistência ao aleitamento e ao parto vem transformando boas iniciativas em novas imposições à mulher e ao profissional. A “revolução” se resume ao considerar que mulheres não são simples corpos a serem examinados e médicos não são máquinas de fazer exames e aplicar protocolos. Pode parecer pouco, mas tem um efeito surpreendente nas subjetividades.
Depois de décadas, em plena menopausa, com mais horas de consulta ginecológica do que urubu de voo, algumas mulheres se mostram claramente afetadas pelo respeito e consideração despendidos. A frase “nunca esperei me emocionar em uma consulta ginecológica” pode sair da boca de pacientes, mas não sem afetar seus médicos.

Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

Os danos que o sol causa

Eu francamente não entendo a lógica veranil do "está-ridiculamente-quente-então-vou-à-praia-me-expor-diretamente-ao-sol", embora carioca e criada à beira do mar. Sim, a brisa fresca do mar é uma delícia, e o contraste da água gelada sobre a pele quente é divino. Mas quanto mais meu trabalho me ensina sobre biologia, neurociência e envelhecimento, mais quero distância do sol.
O cerne do problema é a nova compreensão de que muito da decrepitude crescente que constitui o processo de envelhecimento do corpo é devido ao acúmulo de danos ao DNA, aquela molécula enorme que constitui os 30 bilhões de pares de unidades do nosso genoma: o repositório de códigos que são traduzidos em proteínas que constroem todas as células. 
Quanto mais tempo se vive, mais danos o DNA acumula. Minha própria pesquisa no momento envolve determinar se são esses danos acumulados pelos neurônios do cérebro que eventualmente encerram nossas carreiras individuais no planeta.
Donde meu novo amor por chapéus e pouca saudade do sol do verão brasileiro: radiação ultravioleta (UV) é sabidamente um grande destruidor de DNA. 
O vermelho do "queimadinho de sol" no rosto é a resposta inflamatória aguda das células da pele aos danos causados ao seu DNA pelo UV solar. O bronzeado? Desejada por muitos e evitada por mim, que aprendi a ficar feliz com o que meu pai denomina minha "brancura-laboratório", pele bronzeada é pele danificada. A melanina adicional até que ajuda a proteger de mais danos, mas também é evidência de que muito estrago já aconteceu.
A pesquisa do holandês Jan Hoeijmakers, na Universidade de Rotterdam, mostrou que camundongos mutantes tornados especialmente incapazes de reparar seu DNA envelhecem prematuramente, padecem de toda forma de decrepitude, e morrem cedo, cheios de danos no cérebro. Tudo vai razoavelmente bem até o fim da infância; depois disso, o fim chega rápido.
De alguma forma, criaturas novinhas são extremamente eficazes em reparar danos ao DNA. Mas quando nos tornamos adultos, mais danos ocorrem do que são reparados, com saldo negativo crescente contra nós. Torrar ao sol é acelerar os danos à pele, se não ao corpo todo.
Não sei se exposição direta à radiação UV (prefiro esse nome, que soa danoso; "raios UV" parecem coisa de herói da Marvel) também acelera o acúmulo de danos ao DNA de neurônios, mas em todo caso, prefiro distância. 
Sol indireto é bom, permite ao corpo produzir vitamina D. Sol direto é para as plantas. 

Texto de Suzana Herculano-Houzel, na Folha de São Paulo

A culpa é da minha deepfake

Há uma impostora, nas redes sociais, se fazendo passar por mim. É um golpe elaboradíssimo, executado por hackers mal-intencionados, que visam nada menos do que o meu cancelamento.
Para aqueles que orbitam fora da lacrosfera, o cancelamento é um linchamento virtual cujo objetivo é fazer justiça com as próprias mãos. As mãos que apedrejam, nesse caso, digitam comentários furiosos e clicam no botão “deixar de seguir”.
Aproveitando-se desse cenário acalorado, o golpe consiste em manipular a imagem da vítima até que ela seja considerada culpada pela mais alta instância do Poder Judiciário: a tribuna do Twitter.
Um dos primeiros a se tornar alvo desse tipo de ciberataque no Brasil foi o então candidato ao governo de São Paulo, João Doria. Envolvido em um escândalo por causa de um vídeo comprometedor —o Suruba Gate—, Doria prontamente se defendeu dizendo-se vítima da tecnologia deepfake, uma técnica de edição que conseguiu emular sua presença (um tanto inexpressiva) em uma orgia com cinco garotas de programa.
Pois minha impostora, criada com essa mesma tecnologia, tem publicado vídeos completamente desconectados da minha realidade. Não precisa ser nenhum Sherlock Holmes para constatar que aquela moça sorridente no Instagram não sou eu. Inclusive, posso comprovar que os meus níveis de serotonina não são compatíveis com aquela felicidade toda.
Postada há alguns dias, uma foto de biquíni que mais parece uma desculpa mal-ajambrada para exibir minha bunda veio de encontro à minha luta diária pelo fim da objetificação dos corpos femininos.
Aquela bunda, apesar de idêntica à minha bunda, não é a minha bunda. E quem me conhece sabe que eu seria incapaz de postar uma bunda em meio à crise política na América Latina.
O pior não é o que a impostora posta, e sim o que a impostora deixa de postar. Seu silêncio sobre o atual governo é ensurdecedor. Aliás, quem poderia discorrer sobre o assunto é a cantora Anitta, cancelada pelo mesmo motivo. Mas ela prefere não se posicionar.
Agora, estou perdendo seguidores que já não eram meus, pois foram usurpados por essa personagem que só existe em um mundo de faz de conta. Um mundo onde é possível ser indiferente.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

Os piratas da insurgência

O povo é explorado pelos ricos. Os Estados Unidos não são o policial do mundo. As grandes empresas tecnológicas têm demasiado poder sobre as nossas vidas. Quem disse isso? Bernie Sanders? Elizabeth Warren? Alexandria Ocasio-Cortez? 
Errado, errado, errado. O autor dessas frases é Stephen K. Bannon, o estratego que levou Donald Trump ao poder e que representa o novo movimento populista de direita. 
Eu já sabia que o populismo era uma espécie de novo marxismo —tosco, conspiratório, maniqueísta. Mas é preciso ver para crer.
Ou, melhor dizendo, ler para crer: sempre fui fã dos Munk Debates, que ocorrem no Canadá e que normalmente juntam duas figuras em confronto sobre um tema quente. Mas tinha perdido o “rendez-vous” entre Bannon e David Frum.
Não mais. Em livro que recomendo —“The Rise of Populism”— lá encontramos Bannon e as suas jeremíadas. E então pasmamos: um progressista de inclinação revolucionária poderia dizer as mesmas coisas que Bannon. Aliás, o próprio mediador do debate, Rudyard Griffiths, faz essa observação. 
A narrativa de Bannon começa com a crise financeira de 2008, causada pelo “partido de Davos” (referência ao Fórum Econômico Mundial que reúne anualmente empresários e políticos nessa localidade suíça). 
Depois, defende o fim do imperialismo americano e, sobretudo, recusa qualquer tentativa de democratizar o mundo pela força (a velha acusação da esquerda contra George W. Bush, por exemplo). 
Finalmente, dedica algumas palavras duras às grandes corporações —tecnológicas, mídia etc.— que não defendem os interesses dos cidadãos. Haverá coisa mais de esquerda? 
É também por isso que, no debate, estou com David Frum. Sobretudo com duas observações de Frum que ganham relevância máxima nos tempos de cólera que vivemos. Para começar, o que é um conservador? 
David Frum, que se apresenta como um, responde: um conservador, no século 21, defende a herança do liberalismo que recebeu do século 20. 
Que o mesmo é dizer: defende o império da lei, a separação dos poderes, a limitação do Poder Executivo, a liberdade de expressão e, já agora, a civilidade social. 
Por outro lado, e sobre a noção de “patriotismo”, concordo com a posição antiutópica de Frum: ser patriota é amar o país que temos, não um país imaginário e expurgado de certos grupos ou minorias. 
Existe um ponto, porém, em que é impossível não concordar com Bannon: se o populismo é uma força revolucionária —e o próprio diz que sim, o que só aprofunda o seu esquerdismo— são os jovens, os “millennials”, que serão o motor dessa revolução. 
Em metáfora feliz, esclarece Bannon: os “millennials” são como os servos na Rússia do século 18. Estão melhor alimentados, têm melhor educação, estão mais informados — mas não são donos de nada. 
Nem serão. Casa? Carreira? Independência econômica? Os pais tiveram isso. Eles, pelo contrário, não podem olhar para o futuro com a mesma confiança. O potencial de revolta que existe neles é gigantesco. 
É uma grande verdade. Que, instintivamente, me fez recordar as “Memórias do Conde de Rambuteau”. 
Conta o conde que, anos antes da Revolução de 1848, um prefeito de Paris teria dito ao rei de França: cuidado com os “déclassés”; eles são “os médicos sem pacientes, os arquitetos sem edifícios, os jornalistas sem jornais, os advogados sem clientes”. 
Por outras palavras: havia uma classe mais letrada, mais preparada, com grandes expectativas sociais e econômicas —mas o sentimento de bloqueio era asfixiante.
E o prefeito avisou ainda: esses jovens serão “os artífices das revoluções, os sacerdotes da anarquia, os piratas da insurgência”. 
Com a típica estupidez dos Bourbon, o rei Luís Felipe só percebeu o aviso quando Paris estava em chamas —e ele, a grande promessa dos reformistas liberais, a caminho do exílio inglês. 
Não sei se Stephen Bannon leu o conde de Rambuteau. Mas Bannon percebeu algo de essencial: os “piratas da insurgência” não acabaram em 1848. 
Sem perspectivas de uma vida decente, ou pelo menos tão decente como a dos seus pais, esses jovens letrados e depenados sempre foram o combustível do radicalismo. 
Só para termos uma dimensão do problema: 9 em cada 10 americanos nascidos em 1940, quando chegaram aos 30 anos, ganhavam mais do que os progenitores quando tinham a mesma idade.
Hoje, informa o cientista político Yascha Mounk, 1 em cada 2 americanos nascidos em 1980 pode dizer o mesmo. É um padrão que se estende às economias do Ocidente. 
A sério: alguém pensa que essa história vai ter um final feliz?

Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

O dia seguinte

Acordou com um feixe de luz lanhando o rosto, o quarto girando junto com o ventilador de teto. Custou a reagir, até que, num impulso, deu início a uma busca frenética pelo quarto, atrás de alguma pista do que tinha acontecido na noite anterior.
Pescou roupas vermelhas espalhadas pelo chão, encontrou uma passagem de ônibus para São Bernardo do Campo na cabeceira. No celular, uma notificação recebida por email confirmava sua filiação ao Partido dos Trabalhadores. Hesitou em abrir a porta do banheiro, com medo de encontrar o Zé Dirceu lá dentro.
Definitivamente, as coisas haviam saído do controle. E ela não tinha apenas convicção disso, tinha provas.
Pouco a pouco, fragmentos de memória foram se juntando como peças de um quebra-cabeça. O expediente estava perto do fim, os colegas de trabalho se apinhavam em volta do computador, assistindo a uma live transmitida de Curitiba. O que aconteceu, em seguida, o Brasil inteiro já sabe: sextou.
O verbo “sextar”, patrimônio imaterial do proletariado em contagem regressiva para o fim de semana, quando o trabalhador pode enfim relaxar e esquecer seus problemas, nunca fez tanto sentido quanto naquela noite.
A democracia respirava, ainda que por aparelhos. Para alguém que já não tinha motivos para comemorar desde 2014, aquela era uma oportunidade a ser agarrada com unhas e dentes.
A festa, no entanto, não fez jus a tanto alarde. O Brasil não virou o Chile, centenas de milhares de criminosos não foram soltos da noite para o dia. Ela decidiu, então, pela catarse coletiva dos que 
entoavam o jingle presidencial de 1989 em looping, na Lapa, às cinco da manhã, sem medo de ser feliz.
Logo ela, que problematizava a idolatria em torno de qualquer figura política, que nunca engoliu a aliança com o antigo PMDB e tantos outros erros que acabaram nos custando tão caro. Agora, revirava o lixo, em busca da autocrítica que havia descartado só por uma noite.
Uma ducha de água fria e alguns goles de Coca-Cola foram o suficiente para ela se dar conta de que, em um Brasil polarizado, é praticamente impossível beber com moderação.

Crônica de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Abusos e traumas

Se eu planejasse ser professor no ensino infantil em Araçatuba, São Paulo, estaria furioso. 
Três deputadas estaduais do PSL apresentaram (com pedido de urgência) um projeto de lei (PL 1.174/2019) pelo qual, no futuro, só profissionais mulheres seriam responsáveis pelos cuidados íntimos das crianças (acompanhá-las ao banheiro, trocar fraldas, dar banho).
Você pensará, imagino, que as legisladoras disponham de algumas novas pesquisas segundo as quais homens professores do município de Araçatuba abusariam de crianças muito além da média nacional. Pois bem, não é assim, como atesta a ótima reportagem de Luiza Souto no Universa do UOL de 29/10.
Araçatuba, aliás, talvez não seja o problema, e nossas legisladoras estejam apenas começando a promover um movimento nacional. Entendo: elas gostariam de proteger meninas (e meninos, espero) dos abusadores que, elas acham, seriam sobretudo homens.
Se essa última ideia fosse verdadeira, teríamos soluções simples para problemas deveras complexos. Por exemplo, em vez de ficar de olho nos padres que brincam com crianças, poderíamos pedir ao Vaticano para acabar com a maluquice de ordenar só homens e começar a ordenar mulheres, as quais, segundo as legisladoras paulistas, cuidariam de crianças sem que a gente tivesse que vigiar a cada instante. 
De novo, infelizmente não é assim. Como diz a professora Adla Betsaida Teixeira, da Faculdade de Educação da UFMG, entrevistada na reportagem, “é preciso ter cuidado com qualquer um: homem ou mulher, já que ambos podem cometer violência física, psicológica ou sexual”.
Por que, então, as legisladoras (e talvez muitos leitores) tenderiam a pensar que os abusadores de crianças são mais os homens, e as vítimas, mais as mulheres?
Comecemos por alguns fatos básicos.
Nós, humanos, aprendemos a falar porque encontramos indivíduos adultos que falam conosco —inicialmente, aliás, sem que a gente nem sequer entenda direito o que eles querem nos dizer.
Desenvolvemos nossa sexualidade de modo análogo —existe uma evolução “natural” (por exemplo, hormonal) da sexualidade de cada um, mas ela não é autógena, ou seja, não se produz sozinha; ela precisa da interação do indivíduo com outros mais velhos, que propõem ou impõem suas sexualidades.
Moral da história: todos nós, mulheres ou homens, construímos nossas orientações, fantasias e desejos sexuais a partir de pequenos ou grandes “abusos” sofridos ao longo da nossa infância.
Isso significa que o sexo, para todos nós, nasce de traumas? Não exatamente. Os abusos que acontecem na infância só se transformam em traumas quando eles são despertados na memória por novas experiências. Por exemplo, imaginemos que um professor, quando eu era menino, apalpava-me nas nádegas a cada vez que ele pudesse; e imaginemos que um dia, no escritório, meu chefe faça a mesma coisa, apostando que ficarei calado por vergonha ou (imagina ele) porque eu gosto. Esse segundo abuso transforma a lembrança do primeiro em trauma, ou seja, em algo que, de repente, torna-se muito difícil tragar. 
Posso conviver com a lembrança do cretino que abria seu impermeável na frente da escola para mostrar sua salsicha, até o dia em que um produtor de cinema se apresenta para mim de roupão aberto. Aí, a lembrança é reativada como trauma, intragável. Ou, então, posso conviver com a memória de uma tentativa de estupro na escola, até o dia em que vejo um deputado na televisão declarando que uma colega dele não “merece” ser estuprada, como se o estupro fosse uma forma de apreciação do charme feminino. Aí, a lembrança é reativada, intragável.
Esses exemplos explicam por que há mais mulheres do que homens para quem os abusos da infância se transformam em traumas e continuam como traumas: é por causa dos abusos do machismo, que as mulheres encontram quase inevitavelmente na vida adulta.
Em outras palavras, homens e mulheres são todos vítimas de abuso sexual na infância —é claro, alguns de abusos mais violentos, e outros, menos—, mas, na vida adulta, no caso das mulheres, a estupidez do machismo ambiente transforma os abusos da infância em traumas.
O problema que preocupa as legisladoras paulistas, em suma, não se resolverá afastando os professores (ou as professoras) dos cuidados íntimos das crianças, mas acabando com o machismo e a misoginia que esperam qualquer menina, uma vez adulta.

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo