“De repente compreendi que eu não tinha o direito de exigir dos leitores que conheçam o esoterismo búdico ou tibetano. E me dei conta de que ‘O Jogo da Amarelinha’, título modesto e que qualquer um entende, era a mesma coisa; porque amarelinha é uma mandala dessacralizada”, escreveu o autor em carta ao cineasta Manuel Antín.
Pois é exatamente isso que propõe Cortázar no livro famoso: tirar o caráter sagrado da literatura e propor um jogo ao leitor —mas se espera um leitor cúmplice e atento, que tope entrar de cabeça no labirinto. Quem não sabe brincar não desce para o play.
Em artigo que enriquece a edição da Companhia das Letras, Mario Vargas Llosa —que por questões políticas desfez os laços de amizade com Cortázar, mas nunca deixou de admirá-lo— comenta o conceito lúdico que é a matéria-prima de quase toda a obra.
“Para ele, escrever era jogar, divertir-se, organizar a vida —as palavras, as ideias— com a arbitrariedade, a liberdade, a fantasia e a irresponsabilidade das crianças ou dos loucos. Mas, jogando assim, a obra de Cortázar abriu portas inéditas, conseguiu mostrar certas camadas desconhecidas da condição humana e flertou com o transcendental, algo a que certamente nunca se propôs.”
Por isso espanta, mas não tanto, que “Rayuela”, no original, romance que pela estrutura complexa dá a impressão de ter sido longamente esquematizado, não tenha tido plano inicial algum de execução. Foi um quebra-cabeça até para o seu próprio autor.
Numa tarde de calor em Buenos Aires, Cortázar viu pessoas tentando passar, de uma janela a outra, um pacote de erva-mate e pregos por uma tábua. A partir daquela imagem, resolveu fazer um conto, no qual aparecem pela primeira vez Horacio, o protagonista, e o casal Talita e Traveler, também personagens do livro.
Ao finalizar as cerca de 40 páginas, percebeu que não era um conto, e sim um pedaço de alguma coisa muito maior. Descobriu que tinha de voltar atrás na história e situar o personagem em seus tempos de exilado, vagabundeando pelas ruas de Paris. Ele seria o fio condutor da ficção.
O escritor tinha montanhas de papeizinhos e cadernetas em que tinha anotado suas impressões sobre a cidade em que vivia desde 1951, os quais foram incorporados à narrativa. Retrabalhados, são os capítulos curtos que iniciam o livro, aquarelas parisienses.
Surge a Maga, mulher pela qual Horacio está obcecado, e a reboque entram em cena os integrantes do Clube da Serpente, todos malditos, sofisticados e em crise existencial, esgrimindo os intelectualismos da época em verdadeiras conversas-ensaios.
Quando interrompia a parte narrativa, Cortázar se dedicava às notas atribuídas ao personagem-escritor Morelli, que refletem problemas da criação literária. Para não incluí-las na ação e enfadar o leitor, deram origem aos chamados capítulos prescindíveis. Neles, entram textos de Witold Gombrowicz, poemas de Octavio Paz, páginas de jornal.
Sabendo disso, é mais fácil entender o “Tabuleiro de Leitura” proposto pelo autor, onde se afirma que o livro é “acima de tudo dois livros”. Pode-se ler na ordem direta até o capítulo 56 ou ir aos saltos, como pulando marcas de giz no chão, em avanços e recuos numa (des)ordem indicada.
Lançado o romance em junho de 1963 pela Editorial Sudamericana, com capa desenhada pelo próprio Cortázar, teve gente que gostou tanto da brincadeira que inventou sua própria maneira de montar e desmontar o quebra-cabeça.
Em entrevista a Ernesto González Bermejo, o escritor definiu “O Jogo da Amarelinha” como um ajuste de contas: “Um ajuste de contas do caralho! Em primeiro lugar, ponho todos os valores em dúvida. Freudianamente, mato a minha família, mato o meu país, mato os meus compatriotas, mato os meus amigos, mato todas as heranças. Mato-as no sentido de questioná-las”.
Esse ímpeto homicida fica explícito na seleção de cartas que a recente edição brasileira apresenta. São correspondências nas quais o autor desvenda os andaimes da obra e analisa sua recepção. Nelas, “Rayuela” (pronuncia-se “rajuêla”) é classificado como “antirromance”, “bomba atômica’, “o buraco negro de um enorme funil”, “crônica de uma loucura”, “almanaque”, “baú turco”, “livro infinito”.
Além das cartas e do artigo de Vargas Llosa, o volume traz um ensaio-balanço de Julio
Ortega e a resenha de Haroldo de Campos publicada no Correio da Manhã em 1967: “Estamos diante de um romancista realmente criador, o único da América Latina de hoje que se pode ombrear com o nosso Guimarães Rosa”.
Ortega e a resenha de Haroldo de Campos publicada no Correio da Manhã em 1967: “Estamos diante de um romancista realmente criador, o único da América Latina de hoje que se pode ombrear com o nosso Guimarães Rosa”.
O estilo espontâneo e fluente do argentino está preservado na tradução de Eric Nepomuceno. Uma curiosidade: escritor e tradutor foram amigos, e Cortázar havia pedido ao brasileiro que se encarregasse da versão do livro. “Minha maior dificuldade foi saber que chegaria ao fim e não poderia ligar e dizer: ‘Julio, fiz!’. Nenhuma dificuldade técnica supera a sentimental.”
Existe na Argentina uma percepção (ou acusação) segundo a qual Julio Cortázar só é lido hoje por adolescentes. Qual o problema? Adolescentes crescem e alguns até se tornam escritores chatíssimos.
O texto é de Álvaro Costa e Silva, na Folha de São Paulo.
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