Era noite, bem tarde da noite. E um breu. Pela janela aberta do carro entrava um suave frescor que amenizava o calor daqueles dias do mês de janeiro. O fusca costumava ter cheiro de cigarro e outras combustões habituais naqueles idos de 1975, mas, naquele momento, ninguém consumia nada: todos dormiam, exaustos, à exceção do motorista. Igualmente exausto. Mas acordado.
Ou tentando manter-se acordado. O dia havia sido intenso. Lembrei-me vivamente dele quando vi a notícia, meses atrás, de que o festival de documentários É Tudo Verdade seria aberto com o filme “O Barato de Iacanga” (de Thiago Mattar). Não estava em São Paulo, não pude ver. Mas sua mera existência serviu para refrescar minha memória.
Era de Iacanga, cidade no interior de São Paulo, que estávamos saindo naquela noite, rumo à vizinha Ibitinga, onde dormíamos na casa de um amigo. Estávamos participando do festival de Águas Claras, nome da fazenda que sediou aquele simulacro brasileiro de Woodstock —cuja edição comemorativa de 50 anos, anunciada e cancelada, leio agora que novamente deve se realizar nos Estados Unidos.
A volta de Woodstock é mais um motivo para me lembrar daqueles dias insanos, de sol e chuva, suor e lama, drogas (até mesmo lícitas...) e sonhos libertários em plena ditadura.
Tudo emoldurado pela música, que naquela primeira edição do festival (foram poucas) não teve a presença icônica de baianos como Gilberto Gil e... João Gilberto (num festival de rock!), como aconteceria anos depois. Mas tinha aqueles zumbidos e guinchos e gritos e acordes atordoados cuja vibração fazia-nos sentir parte de um magnetismo mundial da nossa geração.
E, de toda forma, se o festival não tinha os baianos famosos, se boa parte das bandas eram anônimas, algumas delas tinham desses músicos que conhecíamos pessoalmente do frenesi da noite paulistana, além de poucos artistas com mais prestígio, como Walter Franco e as bandas Mutantes, O Terço, Moto Perpétuo, Som Nosso de Cada Dia.
Elas eram capazes de trazer alguma excitação durante o dia e a madrugada. Mas nada podiam fazer para manter alerta o motorista durante a escuridão silenciosa e monótona daqueles quilômetros separando as duas pacatas cidades do centro do estado.
Já fiz agradáveis trajetos de carro em viagens turísticas. Na Califórnia, por exemplo, ao longo da Highway 1, dirigi de San Francisco a Los Angeles, flanqueando o oceano Pacífico.
No caminho passávamos, em perfeita sobriedade, por cidades como Carmel (que, na época, mais de duas décadas atrás, tinha como prefeito, veja só, o ator Clint Eastwood); e monumentos como o pavoroso Castelo Hearst (retratado por Orson Welles com o nome de Xanadu no filme “Cidadão Kane”, inspirado no magnata da mídia William Randolph Hearst).
Também já dirigi de Paris a Dijon, e daí a Lyon, percorrendo de carro a região mais gulosa da França, passando por cidadezinhas medievais, grandes vinícolas, pequenos produtores de queijo e embutidos, e mesas opulentas de restaurantes em charmosos hotéis da rede Relais & Châteaux.
Mas em nenhum dos casos o motorista estava num precário fusca apinhado de pseudo-hippies desmaiados nem nos últimos fiapos de suas forças como naquela noite quente do verão de Iacanga.
Lembro-me exatamente de como a morte tentou se infiltrar no carro, usando a fadiga como porta de entrada. Lutando contra o cansaço, eu me agarrava ao volante com o olho pregado na estrada.
E via a estrada aceitar fixamente meu olhar, passando disciplinadamente como um tapete para debaixo do carro, e seguindo sempre reta adiante. A estrada estava ali, sempre ereta e sombria. Bem ali na minha frente. Uma seta certeira.
Só que não.
Em algum momento indeterminado, a mente continuou passando exatamente aquele filme que eu vinha encarando segundos atrás. Mas já era só um filme. Um sonho. A ilusão do caminho. A estrada não estava mais ali se oferecendo reta às minhas quatro rodas, e aos meus dois olhos cerrados.
Bem, sem drama: o ruído do cascalho, o tremor do carro no chão esburacado, a turbulência das rodas fora da estrada em um segundo me acordaram. O que havia naquela curva não era um precipício ou uma árvore fatais. Apenas um terreno diferente, que me acordou. Intoxicados e felizes, os passageiros do carro nada perceberam. E nosso sonho hippie do festival de rock não terminou em pesadelo.
Texto de Josimar Melo, na Folha de São Paulo.
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