quinta-feira, 9 de maio de 2019

Para acabar com as ideologias de gênero

Caster Semenya, sul-africana, 28 anos, é uma estrela do atletismo e foi medalha de ouro nos 800 m nas duas últimas Olimpíadas.
Ela provavelmente não poderá mais competir nas sua especialidade. Tampouco poderão competir outras atletas que excelem nas corridas de meio-fundo, levantamento pesos etc. Por quê?
CAS (Corte Arbitral do Esporte) confirmou a posição da Iaaf(Associação Internacional das Federações de Atletismo): elas não podem competir porque têm níveis de testosterona acima de 5 nanomols por litro de sangue. Esse "excesso" de testosterona lhes daria uma vantagem excessiva sobre as outras mulheres.


Tudo isso está muito bem contado numa reportagem do jornal The New York Times, publicada pela Folha no sábado passado.
Agora, cuidado: Semenya e outras atletas que seriam proibidas de competir não são casos de doping: elas não tomaram suplementos de testosterona para melhorar sua performance. Elas são mulheres que têm, naturalmente, níveis de testosterona mais altos do que a média. Isso, por um metabolismo que lhes é próprio ou por distúrbios que afetam, pelo que me consta, até 10% das mulheres e que nem sempre pedem uma intervenção médica (desde ovário policístico até hiperplasia congênita da suprarrenal, passando por tumores benignos na hipófise etc.).
Essas mulheres (que apresentam os caracteres sexuais de seu gênero, internos e externos, primários e secundários), para poder competir como mulheres, deveriam tomar anti-andrógenos. Em suma, elas deveriam se dopar para serem reconhecidas como mulheres. Bizarro, não é?
Nos meus melhores momentos, mesmo se malhasse seis horas por dia e tomasse anabolizantes, eu nunca poderia competir com Arnold Schwarzenegger. Faltavam-me o que ele mesmo chama os "bons genes", que fazem, por exemplo, que ele tenha uma riqueza de feixes musculares maiores do que a média. Deveríamos ter inoculado em Schwarzenegger algum vírus que produzisse distrofia muscular?
A CAS e a Iaaf, em suma, diante do metabolismo de Semenya, tiveram que definir uma "normalidade feminina" abstrata.
Por que "abstrata"? Porque, simplesmente, existem variações de caracteres sexuais (cromossomos, gônadas, hormônios e órgãos genitais) que podem tornar difícil identificar alguém como homem ou mulher. Os estudos falam de alguma ambiguidade sexual em cada cem casos. É muito.
E não estou nem levando em conta os sujeitos que, sem ambiguidades físicas aparentes, sofrem de verdadeiras dismorfofobia, ou seja, "sentem" que receberam o corpo errado e sonham em mudar de gênero.
No passado (recente), a medicina, confrontada com a ambiguidade de caracteres sexuais aparentes, achava bom intervir precocemente, ou seja, transformar cirurgicamente o bebê "ambíguo" num bebê de um ou outro sexo "sem ambiguidade". Deu vários desastres (suicídios na puberdade ou mais tarde, por exemplo).
Hoje, a tendência (com a qual é difícil não concordar) é deixar o sujeito crescer e decidir mais tarde: quer seja por uma intervenção, quer seja fazendo as pazes com sua "ambiguidade" —ou seja, com seu hermafroditismo ou sua androginia, chame isso como quiser.
Paramos de separar o mundo em mulheres e homens à força de bisturi na primeira infância. Hoje, dizer que só há dois gêneros, um de rosa e outro de azul, é simplesmente uma estupidez ou uma cegueira ideológica (com ou sem justificativa religiosa, tanto faz). Essa é, aliás, a ideologia de gênero dominante.
Agora, aparentemente, há outra ideologia de gênero (ou assim me dizem, porque, de fato, eu não conheço ninguém que a defenda). Essa outra ideologia, que encontro sobretudo nas denúncias de seus críticos, diria que o gênero é uma construção apenas cultural, sem embasamento real na anatomia. Segundo essa ideologia, o que importa não seriam os cromossomos, os hormônios, os órgãos externos e internos nem as múltiplas e complexas determinações psíquicas que levam um jovem a odiar o corpo e o gênero que lhe tocaram.
Tudo dependeria só de como você foi criado e, portanto, você está livre: se você se vestir de rosa, vai ser menina; se de azul, será menino.
Bom, que esse discurso esteja apenas nas fantasias de seus opositores ou não, tanto faz: se existir, ele seria mais uma estupidez.
O gênero da gente é uma questão complexa e séria demais para deixar que seja tratada por ideólogos. Ou pela CAS e pela Iaaf.

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

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