Quando fiz o ensino médio, em Portugal ao final dos anos 1970, o currículo incluía duas disciplinas obrigatórias para todos: português e filosofia. Creio que ambas continuam obrigatórias por lá. Elas me abriram horizontes que talvez eu não tivesse alcançado de outra forma.
Uma dos meus temas favoritos era a filosofia da ciência. Foi assim que tomei conhecimento de Poincaré e suas ideias sobre a natureza do raciocínio matemático. A matemática é uma ciência notável porque ela é, ao mesmo tempo, dedutiva (rigorosa) e indutiva (criadora de conhecimento): todos os fatos são consequências lógicas de algumas afirmações fundamentais, chamadas axiomas, mas os teoremas, como o de Pitágoras, dizem coisas que vão muito além dos axiomas.
Como isso é possível, de onde surge esse conhecimento?
Foi na aula de filosofia, e não de matemática, que ouvi falar pela primeira vez nos objetos maravilhosos que depois seriam chamados “fractais”. A palavra ainda não era conhecida: o livro “Geometria Fractal da Natureza” de Benoît Mandelbrot, que a criou e a popularizou, só foi publicado (em inglês) uns anos depois. Mas os fractais já assombravam matemáticos e filósofos desde o século 19.
Como não ficar fascinado com floco de neve de Koch, em que todo (!) ponto é uma “esquina” onde não existe reta tangente? Dez anos depois eu me tornara pesquisador, e a matemática dos fractais já era um de meus maiores interesses de pesquisa e é até hoje.
Como adquirimos conhecimento e o que podemos conhecer: a realidade objetiva ou uma mera representação subjetiva? As questões da epistemologia me ajudaram, anos depois, a entender melhor o significado da mecânica quântica.
As aulas me instigaram a ler mais sobre temas filosóficos, e assim conheci a excelente “História da Filosofia Ocidental” de Bertrand Russel, um dos livros mencionados quando ele ganhou o prêmio Nobel da Literatura em 1950.
Por meio dele me interessei pelo pensamento cristão antigo e medieval. Os grandes pensadores da Igreja Católica e sua busca pela divindade por meio da razão aliada à fé. O modo como o humanismo emergiu dessa busca, ao final da Idade Média. A nova aliança entre a ciência e a filosofia que redesenhou o mundo no Renascimento. A gênese, mais tarde, da nação-estado e outras ideias fundamentais que moldaram a história das relações internacionais, magistralmente contada por Henry Kissinger em “Diplomacia”.
Para Russel, a filosofia é uma “terra sem dono” entre a ciência e a teologia: tal como esta, lida com questões inacessíveis ao método científico, mas usa a razão no lugar do dogma. “A ciência diz-nos o que sabemos, e é pouco [...] A teologia induz a crer dogmaticamente que temos conhecimento onde realmente só temos ignorância”, explica. “Ensinar a viver sem certeza e sem ser paralisado pela hesitação é talvez a dádiva mais importante da filosofia do nosso tempo a quem a estuda”.
Essas palavras de 1945 são mais relevantes do que nunca nos nossos dias.
Texto de Marcelo Viana, na Folha de São Paulo.
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