"Do Espírito Geométrico e da Arte de Persuadir e Outros Escritos de Ciência, Política e Fé" é uma coletânea de textos de Blaise Pascal enfim traduzidos e editados em português em edição cuidadosa de Flávio Fontenelle Loque (Autêntica, 192 págs.).
Juntamente com os "Pensamentos e as Cartas Provinciais", ele fornece os textos principais de um dos mais impressionantes pensadores do século 17 em sua articulação cruzada entre matemática, política radical e teologia.
Filósofo ligado ao jansenismo e sua articulação entre rigor moral, crítica de si e insubmissão política, Pascal fornece, nesses escritos, os eixos principais de sua experiência intelectual. É evidente aqui sua maneira de levar o que o que chamaríamos atualmente de "problemas epistemológicos" a se desdobrarem em afirmações de claras consequências metafísicas.
Tomemos, por exemplo, o manuscrito que abre a coletânea, a saber, "Do Espírito Geométrico". A princípio, pode parecer estarmos diante de um clássico texto no espírito protoiluminista daqueles que afirmarão serem as matemáticas e a geometria o modelo racional de apreensão de um modo desencantado.
No entanto, o verdadeiro objeto de tais elaborações paulatinamente vai se descortinando. Pascal luta contra aqueles que querem, por meio da razão, assegurar a inexistência do infinito, como aqueles que asseguravam que o espaço podia ser dividido em duas partes indivisíveis, em vez de assumir o princípio de uma divisão ao infinito, de uma aceleração ao infinito, de uma diminuição ao infinito. Não há geômetra, dirá Pascal, que não creia ser o espaço divisível ao infinito. Crer nisso seria como crer em um "homem sem alma".
A analogia é mais sugestiva do que parece. Através do infinito, a razão expressa a existência do que o entendimento não alcança. Ela ultrapassa o que o entendimento não concebe. A geometria permite, assim, "admirar a potência da natureza nessa dupla infinidade [do infinitamente grande e do infinitamente pequeno] que nos circunda por todos os lados".
Tal existência pode ser reconhecida não pela sua apreensão sensível, mas devido à compreensão da falsidade de seu contrário ("há o que é espacialmente indivisível").
Ou seja, a razão em Pascal tem por objeto o reconhecimento da desmesura. O infinito matemático é uma astuta porta de entrada ao reconhecimento de realidades infinitas que nos atravessam e nos circundam por todos os lados.
"O silêncio desses espaços infinitos me apavora", dizia Pascal em seus "Pensamentos". Inicialmente, parece que estamos diante da afirmação de que a passagem do mundo fechado da física aristotélica, com seus lugares naturais e qualitativamente distintos, ao universo infinito próprio dos espaços ilimitados e homogêneos da física galilaica teria silenciado todo finalismo e toda teologia.
Daí porque "esses espaços infinitos" pareceriam silenciar um mundo que então cantava a glória e o necessitarismo finalista da criação de Deus.
De fato, Pascal não cansará de afirmar, na aurora da modernidade, que entrávamos na era de um "Deus escondido" que não se faz ver como o Sol ao meio-dia.
Mas ele era escondido e silencioso não porque entrávamos em um mundo desencantado, no qual a natureza aparecia como uma máquina cujas relações de causalidade lhe seriam completamente imanentes.
Deus se silenciaria a partir de então porque, em espaços infinitos –e esta é uma das consequências principais do pensamento pascalino–, é impossível eliminar a realidade ontológica do acaso. Espaços infinitos têm relações e implicações possíveis infinitas, o que é outra forma de dizer que neles o acaso não pode ser eliminado. O que silencia Deus não é a força explanatória da ciência, mas o reconhecimento da irredutibilidade do acaso.
Mas o acaso silencia tanto Deus quanto os reis. O que faz de alguém um rei, dirá Pascal, não é lei natural alguma, mas uma sucessão inumerável de acasos que o poder procura esconder como o mais profundo de seus segredos.
Pois o acaso destitui a naturalidade da autoridade e coloca os reis em uma condição de "perfeita igualdade com todos os homens". Para alguns, isto é ainda mais apavorante do que o silêncio desses espaços infinitos.
Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo.