domingo, 2 de julho de 2017

O ato de escrever nos modifica, e é por essa razão que ele faz sentido

Há muitos anos, ouvi o escritor português Augusto Abelaira (1926-2003) classificar toda a literatura do mundo em apenas duas famílias: "Grandes Esperanças" e "Ilusões Perdidas". A brincadeira com as obras-primas de Dickens e Balzac poderia ser estendida ao temperamento dos escritores, os soturnos e os solares.
Como classificar e coçar é só começar, e a ficção -o nome já o diz- não é uma ciência, pensei em separar os escritores em função de como eles veem o mundo que pretendem "revelar". As aspas se explicam adiante.
A primeira vertente seria a conspiratória. Segundo ela, somos naturalmente seres negativos que se dirigem à morte. Infelizmente, não há nada que se possa fazer a respeito porque a natureza é soberana e a subjetividade, uma mentira. Pela escrita, fomos arrancados do aqui e agora do mundo natural, ao qual não podemos voltar.
Assim, escrever será sempre um processo insidioso de ocultação, e são impressionantes os meios de que dispõe a escrita para nos enganar, criando fantasmas paralelos e arbitrários que asfixiam o real tentando simular um impossível retorno à suposta paz primitiva.
É falsa portanto a distinção entre ficção e não ficção -tudo é ficção; ou, pior, tudo é uma mentira, e a penosa ética da escrita seria torná-la límpida, trazer a mentira à luz do sol, denunciando perpetuamente o fracasso, que, queiramos ou não, se volta sobre si mesmo. Não há escape ou segurança, exceto no próprio ato de escrever, que é, necessariamente, um ato de desespero.
A segunda vertente é a encantatória. Vivemos numa rede maravilhosa -não necessariamente otimista, alegre ou feliz, mas no sentido atávico das mil e uma noites, o maravilhoso como suspensão do tempo e das regras sensoriais.
Essa rede fantástica de sentidos, causas e efeitos existe segundo essências inatingíveis pela lógica humana, e revela sinais milagrosos em toda parte. O artista é a antena com poderes de captação de um saber que, apesar da intransponível opacidade da natureza, está sempre pulsando no entorno à espera de um intérprete. O escritor seria esse arauto das forças misteriosas do mundo.
Nessa visão, de um apelo instintivamente escapista, escrever também é tirar o manto que oculta a realidade e revelá-la tal qual ela é. Para o poeta Ezra Pound, havia mesmo uma raça pulsando em alguma parte, que o poeta, "antena da raça", deve farejar. A expressão é historicamente grotesca, mas o seu espírito tem uma atração perene, uma espécie de "alma do mundo", o comando romântico irresistível.
O fato é que tanto para os encantatórios como para os conspiratórios, a realidade é um dado prévio que se deixa ver apenas por enigmas e só pode ser pressentido; escrever é revelar, ou, mais precisamente, deixar o mundo revelar-se pelas mãos do escritor.
São visões com o charme do irracionalismo poético -e certamente obras-primas se escreveram e continuarão se escrevendo sob o sopro desta natureza regressiva.
Para colocar essa teoria capenga em minha própria medida, gosto de pensar em mim mesmo como escritor de uma realidade encantatória, mas o espírito da conspiração vive me puxando o tapete. A ideia de que os escritores "revelam" alguma coisa é enganosa -eu aqui, cristalino; e o mundo lá, turvo e misterioso.
Escrever é uma ação sobre o mundo, e sou parte dele. O ato de escrever nos modifica, e é por essa razão que ele faz sentido. É possível que o primeiro impulso seja o da "revelação" -o que é isso que estou vendo ou sentindo?-, mas já no instante seguinte a redução da vida real às letras, a reapresentação e o fechamento do mundo pela gramática, pelo funil das sentenças, cria uma terceira realidade, um desejo que se desenha, um objeto espelhado, uma hipótese, que, por sua própria natureza, surge não "revelando" o mundo, que nada diz por si mesmo, mas fazendo concorrência a ele, como queriam os verdadeiros realistas.
Levando-se adiante a conversa solta, pode-se extrair daí uma ética laica do ato de escrever ficção: o seu princípio inegociável, desde os diálogos socráticos e seu sabor romanesco, é o fato de que somos seres inacabados. Fico por aqui: para salvação deste escriba, e alegria do leitor, acabou o espaço.


Texto de Cristóvão Tezza, na Folha de São Paulo

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