sexta-feira, 24 de março de 2017

Temer é cafona em Lisboa: abismo na lusofonia é menor do que parece

Por ter lançado um livro chamado "Viva a Língua Brasileira!" (Companhia das Letras), às vezes sou confundido –tanto aqui quanto em Portugal– com um autonomista, alguém que prega a total independência linguística do "brasileiro". Será que já temos um idioma próprio?
Há linguistas que defendem tal ideia, mas não acredito nela. Como o título do livro foi calculado para provocar, uma medida de confusão e perplexidade faz parte do jogo, mas declaro com solenidade que a ideia de ver Fernando Pessoa transformado em poeta de uma língua estrangeira é repulsiva para mim.
Que nosso jeito de falar e escrever merece mais respeito, merece. Abraçar com orgulho a "língua brasileira", entendida como nossa variedade do português, tem imenso valor num cenário em que a gramática normativa ainda tende a condenar em nome de um lusitanismo espectral traços há muito consolidados por aqui, inclusive entre falantes cultos.
Um exemplo: no Brasil, todo mundo chega "em casa", quem chega "a casa" é tuga. Lutar contra esse fato é cuspir no espelho como um Narciso às avessas, para usar o chavão rodriguiano. Pena que todo um sistema de ensino faça exatamente isso. Até o melhor dicionário da língua, o Houaiss, faz isso (a regência "chegar em" é registrada como brasileirismo informal no pé do verbete).
Tudo indica que a fenda gramatical entre o português brasileiro e o europeu está se alargando. No entanto, não é menos curioso observar que certos traços defendidos por linguistas como típicos da nossa variedade se fazem presentes do outro lado do Atlântico também.
Há indícios de que grande parte dos usos engessados que os gramáticos conservadores prescrevem aqui, e que chamamos de "lusitanismos", não são menos engessados em Portugal. A mesóclise de Michel Temer é cafona ("possidônia", à moda lusa) em Lisboa também.
Quem aponta essa e outras semelhanças é o escritor e acadêmico português Fernando Venâncio, da Universidade de Amsterdã, em ensaio publicado no livro "Gramáticas Brasileiras - Com a palavra, os leitores" (Parábola), que reúne apreciações críticas sobre diversas gramáticas lançadas no Brasil nos últimos anos.
Venâncio se debruça sobre a "Gramática Pedagógica do Português Brasileiro", de Marcos Bagno. Defensor da ideia de que já falamos "uma língua plena, e não uma 'modalidade' ou 'variedade' de uma língua chamada genericamente português", Bagno é o mais destacado dos autonomistas. Alguns dos argumentos com que sustenta essa ideia são desmontados pelo colega.
Sim, o Brasil mistura tratamentos na segunda e na terceira pessoa do singular: "Você esqueceu o que eu te disse?". Portugal adora misturar as mesmas pessoas, só que no plural: "Estão todos vós no meu coração".
Sim, a fala brasileira corta caminho eliminando preposições e reconfigurando a sintaxe em "a comida que eu gosto" e "aquele tipo de pessoa que você tem até medo dela". A fala portuguesa, garante Venâncio, não fica atrás.
Há outros casos em que as semelhanças são maiores do que se pensa. Se nenhum deles obscurece o fato de que existem diferenças entre nós, todos ampliam nossa consciência sobre a evolução de um idioma complexo. "Aliados mais que potenciais", como diz o intelectual português, não devem ser desprezados, quaisquer que sejam seus passaportes.


Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo

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