segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Quando vemos uma virtude, devemos silenciar em reverência a ela

O que é uma virtude? Eis uma das perguntas mais difíceis de responder. Não há um consenso evidente. Em nossa época, nunca se falou tão facilmente de ética, como se esta fosse algum método que se consegue ensinar num workshop motivacional. Tampouco, a ética se deixa notar tão facilmente entre pessoas religiosas, ciosas de sua frequentação ao templo, aliás, como o próprio Cristo ensinou. Amontoam-se livros sobre justiça social, amor ao próximo, igualdade, Cristo, escritos por canalhas de todos os tipos. Que Deus nos proteja da bondade dos bons.
Não, virtudes estão entre as coisas mais raras do mundo. Quando vemos uma, devemos silenciar como forma de reverência. Toda virtude é silenciosa e discreta, se seguirmos o pensamento de autores cristãos católicos jansenistas, aqueles cristãos franceses do século 17, muito próximos dos calvinistas, que contavam entre os seus mais famosos gente como o filósofo Pascal e o dramaturgo Racine. Nunca somos capazes de atestar a presença de uma virtude em nós mesmos, apenas o outro pode fazê-lo, porque a vaidade, mãe de todos os pecados e vícios, está sempre atenta para confundir nosso próprio coração.
Entre os jansenistas que se dedicaram especificamente à falsidade das virtudes demonstradas, está o jurista Jacques Esprit (1611-1677). Para Esprit, a sociedade se sustenta na pretensão das virtudes em nós e nos outros. Romper com esse acordo tácito sobre a falsidade das virtudes é declarar guerra ao contrato social baseado na mentira moral, base da vida pública.
Para Aristóteles (385 a.C.-323 a.C.), a ética é uma ciência prática vivida na contingência, isto é, não há uma definição "matemática da virtude". Ela é uma espécie de gradiente que se move entre vícios opostos. Por exemplo, a generosidade é uma "média" entre você estourar tudo que tem dando aos outros, colocando sua vida e dos seus em risco, e ser simplesmente mesquinho.
Já Adam Smith (1723-1790), sociólogo e filósofo da moral britânico, mais conhecido pela sua reflexão sobre a riqueza e a sociedade comercial, se preocupava muito com os danos morais do enriquecimento. Mas, ainda assim, reconhecia como a melhoria material do mundo poderia, nalguma medida, ampliar a possibilidade da prática da generosidade, uma vez que as pessoas se sentiriam mais seguras para doar algo sem medo de elas mesmas virem a ficar pobres. O paradoxo do capitalismo, sistema movido a ganância, era esse mesmo: a ganância privada poderia gerar generosidade pública em alguma medida.
E aí chegamos a uma questão de fato séria e que sempre nos atormenta: pode-se comprar uma virtude? A riqueza garante a generosidade? As duas são a mesma coisa?
Não, não são a mesma coisa. A riqueza é um bem material, resultado de acúmulo e de, muitas vezes, disciplina (o que é, em si, uma virtude). A riqueza, como bem diz Adam Smith, pode tornar uma pessoa mais generosa devido à segurança material que sente em sua própria vida. Mas a generosidade não brota do simples acúmulo material. Como diria o próprio Pascal, o dinheiro, elemento do mundo material, jamais se tornaria uma virtude, elemento do mundo moral ou do espírito. Mas muitas vezes se misturam e se parecem. E para alguém necessitado, receber um bem material pode significar ter a vida salva.
A pergunta sobre a pureza da generosidade vai ao coração da intenção de quem é, "verdadeiramente", generoso. Uma coisa é pensar acerca da definição teórica da virtude, outra coisa é a prática dessa virtude. Só se é generoso e, portanto, se conhece a generosidade "por dentro", quando se pratica a generosidade. E para fazê-lo, muitas vezes, há que se correr risco. O próprio Cristo, sendo ele Deus, para os cristãos, só se revela em sua generosidade quando morre pela humanidade. Nesse sentido, não há generosidade "pura" sem algum risco de vida ou de perda.
Portanto, a força da generosidade é semelhante à da graça: ambas são imbatíveis, uma vez que não temem a destruição do próprio agente que as pratica. O nome da generosidade de Deus é graça. Como se vê a graça?


Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo

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