quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

O ignorante não sabe que o é

Lena Dunham é a autora e a protagonista de "Girls", o seriado da HBO que estreia sua última temporada nesta semana. "Girls" é "Sex in the City", mas para gente grande –o que é irônico, porque o pessoal de "Girls" é mais jovem do que o pessoal de "Sex in the City".
Enfim, Lena Dunham, pela boca de sua personagem Hannah, reconheceu: "Tenho forte opinião sobre tudo. Mesmo em tópicos sobre os quais sei pouco a respeito".
Talvez você não goste de Lena Dunham e pule de alegria porque ela finalmente admitiu o que você sempre pensou dela (ou seja, que ela é "metida" mesmo). Pois bem, não pule. O que Dunham disse é apenas uma regra universal e incontestável: ao tomar posição sobre qualquer tópico, quanto menos soubermos, tanto mais mostraremos e sentiremos uma certeza absoluta. E quanto maior nossa incompetência, tanto maior será nossa convicção na hora de agir.
Em 1995, o sr. McArthur Wheeler assaltou dois bancos depois de molhar o rosto com suco de limão, absolutamente convencido de que o suco funcionaria como tinta invisível e não deixaria seu rosto aparecer nas gravações das câmeras de segurança. Todos podemos ter ideias erradas, mas só os grandes incompetentes se avaliam como extremamente competentes.
O fenômeno foi comprovado em 1999 por David Dunning e Justin Kruger, psicólogos da universidade Cornell, numa série de experiências com a prática médica, o jogo de xadrez, a capacidade de dirigir um carro etc. Em cada caso, as pessoas incompetentes não reconheciam o tamanho de sua incompetência –só começavam a reconhecer sua incompetência efetiva se e quando elas treinassem e se instruíssem para tornar-se competentes.
Ou seja, quanto mais a gente é ignorante e incompetente, mais a gente tem certezas radicais e passionais. Inversamente, quem se afasta de sua incompetência (informando-se ou formando-se) torna-se mais humilde e mais disposto a duvidar de si.
Em suma, ignorância e incompetência produzem uma ilusão interna de saber e competência. Inversamente, saber e competência produzem uma certa auto-desvalorização do sujeito, que passa a duvidar de si.
É possível pensar que a certeza passional seja uma maneira de compensar (e esconder) nossa própria ignorância ou incompetência.
Mas, de qualquer forma, a explicação é intuitiva: quanto menos eu souber (do que for: de motor de carro, de política econômica, de teatro, de amor etc.), tanto menos saberei medir o que não sei. Inversamente, quem sabe mede facilmente que só sabe uma pequena parte do que gostaria de saber.
Sócrates dizia que ele só sabia que nada sabia. Por isso mesmo, o resultado da pesquisa pareceu tão esperado que Dunning e Kruger, em 2000, ganharam o prêmio Ig Nobel de irrelevância. Mas Dunning continuou e, em 2005, publicou um livro, "Self-Insight", cujas implicações são úteis.
Em época de grandes paixões e conflitos –ou, como se diz, de polarizações– mundo afora, vale a pena lembrar que a certeza (ainda mais quando for passional) é proporcional à ignorância e à incompetência.
Aplique isso ao campo da moral, da política e da religião: a ignorância é a grande mãe de quase qualquer extremismo.
O psicanalista Jacques Lacan disse um dia que só os teólogos conseguiam ser verdadeiros ateus: o saber e a competência nos afastam da certeza.
Enfim, alguém poderia se preocupar especificamente com uma consequência disso tudo: se a ignorância e a incompetência nos oferecem certezas (falsas, mas tanto faz), será que isso não significa que os ignorantes e os incompetentes são os mais aptos a agir?
Será que o excesso de competência e de saber nos levariam a dúvidas sofridas e, portanto, à incapacidade de agir? Por exemplo, deve ser fácil decidir a política dos EUA a partir do noticiário da televisão, mas se você lesse e estudasse todos os relatórios preparados pelas diferentes fontes que informam o presidente, então a tomada de decisão se tornaria complicada, hesitante.
Obviamente, essa não é uma razão para se render à facilidade da incompetência. Tampouco é uma razão para não agir. Para agir, é preciso aceitar que a qualidade de um ato apareça nas dúvidas e não na certeza de quem age, porque, como já dizia Touchstone, o bobo de "As You Like it" (mais de 400 anos antes de Dunning e Kruger), "o idiota pensa que é sábio, enquanto o sábio é aquele que sabe de ser idiota".


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.

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