O escritor e tradutor Boris Schnaiderman morreu, na noite desta quarta-feira (18), no Hospital Samaritano, aos 99 anos. Ele estava internado desde a semana passada e passou por uma operação no fêmur. O intelectual acabou desenvolvendo uma pneumonia e não resistiu.
A informação foi confirmada à Folha por sua mulher, Jerusa Pires Ferreira. O tradutor havia feito aniversário na terça (17).
O velório será nesta quinta (19) de 8h30 até 14h, na Centro Universitário Maria Antonia. A cremação acontecerá depois disso, no Crematório Vila Alpina.
Assim como Paulo Rónai, Anatol Rosenfeld e Otto Maria Carpeaux, estrangeiros que estenderam pontes entre a literatura europeia e a cultura brasileira, Schnaiderman é considerado por seus pares e por estudiosos o pai fundador da tradução de ficção russa no Brasil, responsável pela edição pioneira de autores clássicos e de vanguarda, de Dostoievski e Tolstói a Maiakóvski e Guenádi Aigui.
Certa vez, durante a campanha da Força Expedicionária Brasileira na Itália, na qual serviu como sargento, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45), um capitão o interpelou:
"Mas vem cá, você é russo e quer ir para uma guerra que é de brasileiros. Que estranho!"
Schnaiderman rebateu: "Não, a guerra não é só de brasileiros". E emendou: "Além disso, eu sou brasileiro".
Nascido em Úman, na Ucrânia, no mesmo ano de 1917 que viu surgir a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Boris Schnaiderman inscreveu seu nome na cultura brasileira como um dos maiores tradutores literários que o país já conheceu.
Os Schnaiderman deixaram Úman quando o pequeno Boris tinha apenas um ano, fugindo dos pogroms (massacres de judeus) que assolavam a região. Passariam oito anos em Odessa, vivendo em um meio cultural basicamente russo, até dezembro de 1925, quando embarcaram para o Rio. Ele só voltaria para a Rússia homem feito, quarenta anos depois, em 1965.
"Meu pai era comerciante, então é claro que para ele foi mais difícil a adaptação à vida nos níveis soviéticos", contaria Boris em uma entrevista. "No período da NEP, da Nova Política Econômica, ele pôde desenvolver lá certa atividade de comércio. Quando a NEP foi posta de lado, as coisas foram ficando mais difíceis, mas ele conseguiu sair com autorização, com passaporte."
Das poucas lembranças de infância está o curioso corre-corre a que certa vez assistiu numa enorme escadaria: futuramente ele saberia que eram as filmagens da cena da escadaria de Odessa, uma das mais marcantes de "O Encouraçado Potemkin", de Sergei Eisenstein.
Em dezembro de 1925, a família desembarcou no Rio e não demorou a rumar para São Paulo. "No Brasil, meu pai continuou a trabalhar como comerciante, mas com muitas dificuldades." A pressão econômica logo recaiu sobre o jovem Boris. "Faziam questão que eu tivesse um título, algum curso superior. Insistiam em agronomia e eu queria literatura."
Os pais venceram. Aos 17, em 1934, ele se mudou com os pais para o Rio, onde foi estudar e conheceu a xenofobia da era varguista. "Minhas lembranças são péssimas... Nessa época o Brasil vivia sob um regime autoritário que tinha muita desconfiança em relação ao estrangeiro", recordaria ele em um depoimento.
Por causa de um cunhado que estava sendo investigado, chegou a ser detido e teve até seus cadernos de estudos confiscados. "A polícia política invadiu minha casa", recordaria. "Eu estava voltando da aula e quando cheguei encontrei homens sem paletó... Naquele tempo ficar sem paletó era o cúmulo da intimidade!"
A condição de estrangeiro também dificultava a vida profissional de Boris. Sem a naturalização, não podia atuar como engenheiro agrônomo nem mesmo com o diploma que obteve em 1940, na Escola Nacional de Agronomia, no Rio. "A naturalização era difícil para quem era nascido na Ucrânia, União Soviética", recordaria em entrevista. Na mesma época, a escritora Clarice Lispector, também nascida na Ucrânia, enfrentou dificuldades semelhantes para obter a cidadania brasileira e só conseguiu após escrever uma corajosa carta ao presidente Getúlio Vargas.
GUERRA
Boris enfim naturalizou-se em 1941, mas só poderia exercer a profissão de agrônomo antes se fizesse o serviço militar, no qual só poderia ser admitido como praça: o CPOR, que formava os oficiais, era para os brasileiros natos.
A perspectiva de ir para o front o atraía: "Tinha vontade de ir para a guerra, mas ao mesmo tempo tinha muito medo da minha família...". Em vez de comunicar o seu desejo aos pais, fez um curso preparatório para sargento: "Era inevitável que iria ser convocado. Sabia que iria ser".
O
sargento Boris Schnaiderman foi convocado às vésperas do primeiro embarque das tropas brasileiras para a Europa, em julho de 1944. Participaria da guerra até a ofensiva final, em abril de 1945. "Quando nós entramos no Norte da Itália... aí foi uma glória! A população nos recebeu de braços abertos, jogavam flores, abraçando a gente", recordaria anos depois.
Ainda que enfrentasse chumbo grosso no front de Castelo ("ali passei algumas semanas diante de uma ponte que era constantemente bombardeada"), Boris encontrava tempo para a leitura nos tempos mortos das batalhas. "Ler, eu lia, pois era uma guerra em que não se ficava o tempo todo ocupado com a luta. Como era calculador de tiro, fazia os cálculos que me pediam e nos intervalos lia romances."
Em entrevista à revista Shalom, nos anos 1980, o ex-controlador de tiro Boris Schnaiderman recordaria o despreparo dos brasileiros no front:
"Tínhamos aprendido o que se chamava de artilharia de montanha, ou seja, o canhão era desmontado e colocado no lombo do burro. Era um canhão de 75 mm, da tradição francesa da Primeira Guerra Mundial. Só quando fui enviado à guerra, fomos trabalhar com canhões de 105 mm, modelo americano, que dispensava o lombo de burro - era puxado por um caminhão."
A experiência da guerra ficou registrada em "Guerra em Surdina", narrativa autobiográfica publicada em 1964 - e reeditada pela Cosac Naify em 2004 -, um dos principais testemunhos sobre a campanha da FEB na Itália.
TRADUÇÃO
Pouco antes da convocação, em 1943, Boris Schaniderman ofereceu a diversos editores uma tradução de "Os Irmãos Karamázov", de Fiódor Dostoiévski, que acabou sendo publicada pela Vecchi, sob o pseudônimo Boris Solomonov, derivado de Solomonovitch, seu patronímico - nome que indica o nome do pai dos cidadãos russos. Boris conta que trabalhava praticamente sozinho: "Eu queria me realizar intelectualmente, mas não tinha contatos nessa época".
O Dostoievski de Boris fundou uma nova era na tradução de literatura russa no Brasil. Bastante difundida nos meios cultos do país, a ficção russa ainda chegava a partir de traduções francesas ou inglesas que, por amadorismo ou desejo de embelezar as rudezas da prosa eslava, invariavelmente deturpavam os originais.
Boris acabaria renegando essa e outras traduções publicadas na juventude, ainda que, quase seis décadas depois, elas ainda recebessem elogios de tradutores tarimbados como Paulo Bezerra, que traduziu Karamázov em 2008. Os "Karamázov" de Solomonov ainda deram prova de resistência ao serem plagiados pela editora Martin Claret, num caso denunciado pela tradutora e pesquisadora Denise Bottman.
"Essas primeiras traduções eram ruins, ruins mesmo, não é modéstia, e foram assinadas com pseudônimo", diria Boris, décadas mais tarde. "Meu nome foi publicado pela primeira vez em uma antologia de contos de Tchekhov, em 1959."
Nos anos 1950, Boris teve seu primeiro encontro intelectual decisivo: formou um grupo de amigos que se reunia às segundas-feiras na casa do casal de editores Guita e Jacó Guinsburg, para discutir e estudar filosofia, estética, literatura e psicanálise.
Naqueles encontros, articulados em torno do crítico alemão Anatol Rosenfeld, ao longo de vinte anos formou-se uma importante geração de psicanalistas, filósofos e críticos de artes, como Isaías Melsohn, Regina Schnaiderman (com quem se casou em 1949, mãe de seus filhos Carlos e Miriam), Roberto Schwarz e Sábato Magaldi, entre outros.
USP
A essa altura, o autodidata Boris já escrevia artigos sobre literatura russa para o suplemento literário de O Estado de S. Paulo, então dirigido pelo crítico de teatro Decio de Almeida Prado. O convite para abrir um curso livre de russo na Universidade de São Paulo, em 1960, ajudou-o a pôr os dois pés na vida intelectual, abandonando o emprego na Escola Agrotécnica de Barbacena (MG), do Ministério da Agricultura, onde trabalhou de 1948 a 1953.
Não demorou para que o curso de literatura e língua russas fosse oficialmente incorporado pela USP, onde Boris daria aulas até 1979, quando se aposentou. Em 2001, tornou-se professor emérito. "Hoje, há uma onda antiuniversitária, mas a universidade é um lugar onde há pessoas interessantes fazendo coisas interessantes", diria ele em entrevista.
Nesse período de fértil atuação como tradutor e formador de estudiosos da cultura russa, Anatol Rosenfeld apresentou Boris a Haroldo e Augusto de Campos, poetas que se aventuravam na tradução de poemas da vanguarda russa ainda absolutamente desconhecidos no Brasil. Era o segundo dos três encontros intelectuais fundamentais em sua vida - o terceiro seria sua união com a professora de literatura e semiótica Jerusa Pires Ferreira.
Boris, que tinha guardado alguns recortes sobre um desses poetas, Vladimir Maiakóvski, passou a dar aulas para Haroldo e mais tarde para seu irmão Augusto de Campos. Os três logo iniciaram uma parceria que Augusto qualificaria como "trabalho laboratorial em torno da poesia russa": os dois irmãos levavam a Boris alguns poemas que traduziam com os recursos que tinham à mão; Boris esclarecia dúvidas, corrigia e às vezes produzia traduções literais, em prosa, para serem retrabalhadas pelos criadores da poesia concreta. Às vezes, gostava de assinalar, quase não mexia nas traduções.
As ousadias da poesia russa de vanguarda pareciam se encaixar à perfeição no projeto estético dos irmãos Campos, para os quais não haveria revolução sem formas revolucionárias, como rezava a lição de Maiakóvski. Já Boris pareceu encontrar no concretismo uma porta aberta para uma renovação em seu repertório estético: "De um modo geral, minha formação literária era muito tradicional", diria ele. "Foi justamente em fins da década de 1950 e início da década de 1960 que eu posso dizer que me modernizei literariamente, mesmo em termos de poesia brasileira."
Da parceria com os irmãos Campos surgiram livros que fizeram a cabeça de mais de uma geração de leitores: Poemas, de Maiakóvski (1967) e Poesia russa moderna (1968). Ambos tiveram sucessivas reedições, como novos poemas incorporados, e atualmente estão disponíveis pela editora Perspectiva.
Do laboratório dos Campos e Boris ainda saíram importantes estudos literários, como "A poética de Maikóvski através de sua prosa", que Boris lançou em 1971, ensaio que ele retrabalharia e relançaria no final da vida. Crítica, poesia e tradução eram uma coisa só, em permanente articulação e alimentando-se uma da outra. As mais de vinte traduções que publicaria, sempre produzindo ensaios críticos em paralelo, lhe renderiam em 2003 o Prêmio de Tradução da Academia Brasileira de Letras, concedido pela primeira vez naquele ano.
As viagens à União Soviética, a partir de 1965, permitiam-lhe fazer pesquisas e estabelecer vínculos com a intelectualidade moscovita. Sem nunca ter vivido na URSS –e tendo mantido, quase sempre, certa distância ideológica do modelo soviético–, Boris produziu um belo livro sobre a queda do regime comunista, nos anos 1990, em "Os escombros e o mito - A cultura e o fim da União Soviética."
Boris relata o assombro com que ele e seus companheiros de geração tomaram conhecimento de galpões repletos de obras censuradas nos tempos do stalinismo –chegavam-se a revelar a quase dez obras inéditos de alguns de seus autores prediletos, o que reconfigurou uma das principais constelações literárias do século 20. O livro funciona como uma espécie de guia de leitura da literatura russa e uma narrativa da impressionante vida intelectual sob o stalinismo.
O reconhecimento em solo russo veio em 2007, quando recebeu do governo a Medalha Púshkin.
Até o final da vida Boris Schnaiderman trouxe sua experiência pessoal para o centro de sua produção intelectual. "Tradução, ato desmedido", publicado em 2011, condensa setenta anos de produção em ensaios que constituem sua profissão de fé como tradutor e percorrem os principais autores que traduziu. Com o livro publicado, passou a trabalhar em uma autobiografia.
PAULO WERNERCK é curador da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty)