terça-feira, 31 de maio de 2016

Informação falsa circula mais

Um estudo feito por pesquisador da universidade de Columbia e publicado pelo American Press Institute demonstrou que informações falsas que "viralizam" tendem a circular três vezes mais que as informações verdadeiras que tentam corrigi-las. O estudo tomou por base o Twitter e analisou cerca de 100 mil publicações.
Um dos casos analisados foi o boato nos Estados Unidos de que o vírus Ebola teria sofrido uma mutação e se tornado transmissível a longas distâncias pelo ar. A cada 3 tuítes publicados repetindo o boato, apenas um o desmentia.
Outro caso diz respeito a tema político. Em 2014 circulou boato de que o plano de saúde pública implantado pelo presidente Barack Obama iria "destruir 2 milhões de empregos".
A fonte da informação era uma leitura falsa de um relatório do Congresso dos EUA. No contexto político acalorado do momento, o efeito "viral" foi ainda mais forte. Apenas 1 a cada 9 tuítes publicados com a informação falsa tentava desmentir o erro.
O estudo também demonstra que a ideia de que "mentira tem perna curta" é válida. Depois do pico inicial de desinformação, a circulação da informação correta começa a alcançar a informação falsa.
Nos casos estudados, em poucas semanas a informação falsa foi superada, até perder totalmente o fôlego e desaparecer das redes. Essa dinâmica é aguçada especialmente nas crises.
No Brasil, na semana anterior à votação do impeachment na Câmara, houve um surto de notícias falsas na rede. Ao menos três delas chegaram aos "trending topics". Na semana seguinte à votação essas mesmas três notícias falsas haviam praticamente desaparecido.
Boa parte das pessoas não só se informa por redes sociais, mas difunde informações. Especialmente nas crises, as pessoas se tornam "veículos" de disseminação de boatos.
Muitos deles são forjados por marqueteiros políticos e oportunistas que se aproveitam de momentos de convulsão social —pois neles as pessoas tendem a se conectar mais para espalhar conteúdos políticos falsos.
O grupo terrorista Daech (que se autodenomina "Estado Islâmico") é especialista nesse tipo de ação.
Importante assim o apoio à prática jornalística chamada de "checagem de fatos" (fact-checking). De 2008 a 2012 o número de matérias com fact-checking cresceu 300% nos EUA. Com a candidatura de Donald Trump, outro mestre em boatos, a prática vem crescendo ainda mais. No Brasil, além da imprensa tradicional, há iniciativas novas de fact-checking como o Truco da Agência Publica e o portal Aos Fatos.
Nesse contexto, é fundamental também investir em media literacy (educação para a mídia). Aprender a questionar fatos e fontes. E não repassar tudo que chega e parece "urgente".
Em outras palavras, o post que você acabou de compartilhar pode ser não apenas mentira, mas informação forjada por marqueteiros de toda sorte.


Texto de Ronaldo Lemos, na Folha de São Paulo

A vida secreta do desejo

Sempre que toco no tema do amor romântico, muitos leitores se manifestam. Ao contrário do que parece, muita gente se sente afetada por essa questão. A primeira pergunta que me fazem é: "Você crê no amor romântico?". A resposta é sim. Mas, como os medievais, não creio que seja uma experiência universal e acho que é uma doença encantadora e, por isso mesmo, perigosa.
Mas volto ao assunto hoje devido a uma questão específica que toquei na minha coluna de 16 de maio último ("A doença do amor"), em que discutia alguns especialistas no tema do amor cortês (ou romântico). E acho essa questão muito importante, porque ela incide sobre uma compreensão errônea comum em nossa época da relação entre desejo e maturidade.
A questão é a seguinte: as pessoas mais maduras tendem a descrer no amor romântico, enquanto as mais jovens estão mais propensas a viver essa forma de amor?
As explicações comuns para isso seriam a pouca idade e experiência de vida (como digo na coluna de 16 de maio), que levariam os mais jovens aos delírios amorosos. A favor dessa hipótese está a costumeira afirmação de que Romeu e Julieta teriam no máximo 15 anos de idade. Ou que, na Idade Média, berço da literatura romântica, os homens e mulheres morriam com 30 anos e, portanto, os personagens da literatura cortês não passavam dos 15 anos de idade de novo.
E aí voltamos ao argumento comum de que só jovem crê nessas coisas porque não entende a vida como ela é. Mas o erro está na ideia de que, na Idade Média, pessoas de 15 anos eram "jovens".
"Jovem" é um conceito criado para descrever alguém que não precisa obedecer aos pais como as crianças devem fazê-lo, mas que, ao mesmo tempo, são livres para fazer o que quiserem, sem o peso da responsabilidade dos adultos. "Jovem" é uma das primeiras invenções do enriquecimento do mundo devido a sociedade de mercado. Logo, na Idade Média, não existia "jovem".
Para entender a literatura de amor cortês, você deve pensar o seguinte: o amor romântico só podia acometer pessoas que carregavam responsabilidades e interdições.
Portanto, se transferirmos os pressupostos da dramaturgia medieval para hoje, época em que homens raramente morrem em batalhas e mulheres estão em conventos, o que se revela como o coração do drama são as interdições morais: as vítimas são casadas e carregam responsabilidades da vida adulta.
Qual é a conclusão então da relação entre idade e amor romântico? A conclusão é de que um jovem de hoje dificilmente viveria o amor romântico tal como foi descrito na Idade Média. Mas homens e mulheres adultos, casados, com filhos e responsabilidades profissionais e sociais, são os verdadeiros candidatos à doença do amor hoje.
Por isso, são os mais maduros que estão a mercê desse flagelo, e não os mais jovens, que, costumeiramente, não têm quase nenhuma responsabilidade determinante em suas vidas.
O "amor fora de lugar" ocorre como um desejo que não pode se realizar plenamente devido a uma estrutura moral que lhe precede. A condenação do desejo implica em sua piora como "pressão", que nunca cessa de se manifestar, corroendo o cotidiano dessa estrutura que lhe precede. O amor romântico só existe quando os amantes não podem vivê-lo porque para isso destruiriam a própria vida e de outras pessoas que não mereciam sofrer.
O erro da associação do amor romântico à idade "jovem" é a não percepção, típica de nossa época, da lógica do desejo em questão.
Perdemos a capacidade de desejar na medida em que declaramos que "é proibido proibir". Os jovens logo deixarão de desejar.
E, aqui, chegamos a outra incompreensão decorrente dessa: entendemos pouco do amor romântico porque esvaziamos nossa cultura da noção de conflito entre desejo e virtude como um dos motores essenciais do drama moral humano. O drama romântico pressupõe o desejo encantador acompanhado da terrível experiência da culpa. Só os olhos vidrados de culpa enxergam o combate entre desejo e virtude na alma.
A vida secreta do desejo é esse desespero que, na mesma medida em que encanta, destrói.


Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 26 de maio de 2016

S.O.S.

Um país com suas continhas orçamentárias bem ajustadas, dívida em extinção –e, pior do que estagnado, de volta aos níveis imorais de miséria, pobreza, desordem, ensino em retrocesso constante, saúde pública em coma terminal, indústria nacional desmantelada, desemprego e violência urbana. É o que se pode vislumbrar para os anos vindouros, se efetivadas as medidas que Henrique Meirelles e Michel Temer apresentaram –com o devido cuidado da imprensa para maquiar umas e encobrir outras– como pacote primordial da aventura que iniciam.
A medida central, que consiste em estabelecer um teto permanente para os gastos do governo, só aumentado na proporção da inflação anual anterior, traz para o país uma perspectiva fácil de se presumir.
Mesmo Dilma Rousseff reconhece, entrevistada para a revista "Carta Capital", o desastre econômico que foi 2015. Tudo no Brasil se deteriorou com intensidade assombrosa. A desgraceira que cresce, a ponto de atingir o olimpo das empresas financeiras, é apenas a continuidade de 2015 (por favor, nada de dizer "o ano que não acabou"). Os serviços públicos estão em pandarecos, os investimentos desabaram, as universidades desmilinguem, tudo é assim. Apesar disso, o gasto contabilizado do governo no ano passado foi de R$ 1,16 trilhão.
A esse montante, um exercício de Gustavo Patu, na Folha desta quarta-feira (25), aplicou as medidas propostas por Meirelles sob o olhar um tanto vago de Temer. Constatação: o 2015 de Meirelles teria os seus gastos limitados a R$ 600,7 bilhões. Metade, pode-se dizer, do gasto realizado. Por mais que tenha havido desperdício de dinheiro público naquele trilhão, não há como evitar a conclusão de que a brutalidade do corte proposto para a nova política econômica só pode trazer ao país a degradação da degradação. Se com um trilhão o país está em estado deplorável, com gastos pela metade pode-se imaginar como estará.
Ou melhor, nem estará. O crescimento econômico depende do investimento estatal que o inicie e o estimule. A iniciativa privada no Brasil (e não somente no Brasil) é privada mas não iniciativa. Meirelles não se ocupou dos investimentos, na apresentação inicial do plano, porque nem era necessário: o teto do Orçamento, corrigido só pela inflação, já indica a exiguidade de investimento em proporções mobilizadoras e de interesse por tê-lo.
Por falar em nisso, Michel Temer comparou-se de raspão a Juscelino. Mas quem Temer faz lembrar é Collor com a combinação de loucuras e violência que aplicou como plano econômico. Não é inovadora, portanto, a complacência quase envergonhada com que a imprensa se faz colaboradora de Temer, como preço –autêntica liquidação de outono –de não ter o PT no governo nem o risco de Lula em 2018. Depois, lava-se a história, com ou sem jato. Mas o malabarismo praticado por muitos comentaristas oferece um lado cômico nessa história de salvar o salvador perdido.
Do cômico ao trágico: o corte proposto contra a educação é também contra os jovens de hoje e as próximas gerações de estudantes; o corte proposto contra a saúde é também contra as gestantes, as crianças e todos os carentes. Ambos são agressões ao espírito da Constituição e suas intenções de reparação social da nossa história de injustiças e perversidades.
A educação tem hoje, por garantia constitucional, ao menos 18% do arrecadado com impostos. A saúde tem garantia semelhante, em menor percentual. O plano Meirelles retira da educação e da saúde essa garantia de um mínimo que leve a ampliar e estender a educação, como se deu nas últimas décadas, e atenuar os problemas persistentes na saúde pública. Os valores ficarão congelados, com futuros acréscimos correspondentes apenas à fictícia correção pela inflação. Note-se que o ponto de partida, nesse congelamento, é o percentual deste ano de baixa arrecadação. Logo, educação e saúde já começam com perda substanciosa.
Contas certinhas (no diminutivo, sim, porque serão cada vez menores), que beleza. Para um futuro condenado sobre um presente caótico. 


Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Querida, encolhi o Estado

O Plano Temer é uma mudança dramática na maneira de fazer acertos nas contas do governo. Muito mais que isso. Em vez de fazer ajustes de curto prazo e provisórios, promete uma redução imensa do tamanho do Estado. Tal coisa não será possível sem o cancelamento dos aumentos automáticos de despesa em saúde, educação, assistência social e trabalhista e Previdência.
No caso improvável de passar pelo Congresso e pelas "ruas", o plano seria a maior reviravolta fiscal desde a Constituição de 1988.
O ministro Henrique Meirelles (Fazenda) anunciou só o grosso da ideia: as despesas seriam congeladas nos valores deste ano. A alta de gastos acompanharia só a inflação do ano anterior. Em termos reais, pois, a despesa não cresce. Ponto.
Assim, caso a economia crescesse em média 2% ao ano na próxima década, a despesa do governo federal cairia de pouco mais de 19% do PIB para pouco menos de 16% do PIB. Mais ou menos ao que se gastava entre 2002 e 2005.
Ainda que aprove o plano, o Congresso aceitaria esse plano por uma década?
Tudo mais constante, a dívida pública continuaria a crescer até depois de findo este governo. A receita federal é por ora 10,5% menor que a despesa. Mesmo congelados os gastos, levaria anos de crescimento econômico para fechar o buraco. Logo, haveria anos de déficits, que se acumulam na dívida.
Mas o governo pretende abater dívida de outro modo.
Primeiro, Meirelles vai tentar conter o aumento da dívida com receitas extras. Ainda nesta terça (24), disse que pretende antecipar o pagamento de dívidas do BNDES com o governo, R$ 100 bilhões em até dois anos. Trata-se de empréstimos que os governos Lula 2 e Dilma 1 concederam ao banco estatal de desenvolvimento, cerca de meio trilhão de reais. O BNDES reemprestou essa dinheirama a empresas, a juros camaradas, a fim de incentivar o aumento do investimento, que não ocorreu.
Segundo, Temer pretende vender ativos do governo e conceder obras e serviços de infraestrutura à iniciativa privada.
Terceiro, depois de prometer essa redução histórica do tamanho do Estado e privatizações, provavelmente o governo vai propor um aumento de tributação. Parece que quer matar a cobra primeiro e aparecer com o pau dos impostos depois.
O teto para o gasto federal vai funcionar apenas se houver limites para o gasto social.
As despesas com saúde e educação crescem no mesmo passo da receita, por determinação legal. As despesas da Previdência crescem porque, claro, mais e mais gente se aposenta. O governo não pode controlar o aumento do número de beneficiários a não ser que altere os requisitos exigidos para aposentadoria, pensões etc.
A despesa da Previdência cresce ainda porque o piso dos benefícios sobe com o valor do salário mínimo. Até 2019, por aí, não haverá reajuste real obrigatório do mínimo, que acompanha o crescimento do PIB de referência, que até lá será zero ou quase. Caso a economia se recupere, a despesa da Previdência vai junto. A não ser que o piso do benefício previdenciário deixe de ser o salário mínimo.
Para bom entendedor, essas palavras bastam: propôs-se uma ampla reforma do gasto social, uma reviravolta nas leis e na Constituição e Estado minimizado.


Texto de Vinicius Torres Freire, na Folha de São Paulo.

terça-feira, 24 de maio de 2016

A solução mais fácil

Dois políticos em fuga discutem uma saída para escapar da polícia. "Tem que resolver essa porra. Tem que mudar o governo para poder estancar essa sangria", diz o mais afoito. "Tem que ser uma coisa política e rápida", emenda o colega.
A conversa avança em tom de urgência. "Tem que demorar três ou quatro meses no máximo", afirma o primeiro interlocutor. É a deixa para o outro fazer a proposta: "Rapaz, a solução mais fácil é botar o Michel". Assim foi feito. E foi fácil mesmo.
diálogo entre Romero Jucá e Sérgio Machado ajudará os historiadores do futuro a explicar o impeachment de 2016. O desastre na gestão da economia, as trapalhadas na articulação política e as prisões de dirigentes do PT ajudaram a empurrar Dilma para a beira do abismo.
Mas o medo do camburão, que deu o tom da conversa, foi o fator decisivo para estilhaçar a aliança parlamentar que sustentava o petismo. Esse medo alçou Michel Temer ao comando do que já se chamou, com elegância, de novo bloco de poder.
A gravação revelada pela Folha atesta como os investigados viram no impeachment a "solução mais fácil" para frear a Lava Jato, que ameaçava desmontar todo o sistema partidário.
"É um acordo. Botar o Michel num grande acordo nacional", diz Machado. "Com o Supremo, com tudo", responde Jucá. "Com tudo. Aí parava tudo", continua o ex-presidente da Transpetro. "É, delimitava onde está. Pronto", arremata o senador.
A queda de Jucá, que durou apenas 12 dias como ministro da junta de salvação nacional, é a consequência menos importante do episódio. Agora é preciso esclarecer as questões que o grampo deixou no ar.
As delações dos empreiteiros são mesmo "seletivas", como afirma Jucá? Ministros do Supremo teriam aceitado participar de um acordão, como sugere o senador? O que os comandantes militares prometeram "garantir"? E Temer, o que pretendia fazer com a Lava Jato em nome de um "grande acordo nacional"?


Texto de Bernardo Mello Franco, na Folha de São Paulo

Biblioteca Nacional argentina será presidida por discípulo de Borges

Biblioteca Nacional argentina será presidida por discípulo de Borges


SYLVIA COLOMBO
DE BUENOS AIRES

Quando era adolescente, Alberto Manguel, 68, trabalhou na livraria Pygmalion, na avenida Corrientes, em Buenos Aires, dedicada a títulos em idiomas estrangeiros.
Filho de pai diplomata, Manguel nascera na Argentina, mas passara a infância no exterior e, portanto, falava inglês fluentemente. Não demorou muito para ser descoberto pelo mais famoso frequentador do espaço, o escritor Jorge Luis Borges (1899-1986).
Naquela época, o autor de "O Aleph" já vinha perdendo a visão, e então convocou aquele livreiro jovem, culto e bilíngue para ler para ele, em voz alta, os clássicos em inglês que ele já não podia revisitar sozinho.
A experiência marcaria o rapaz para o resto da vida. Manguel se transformaria em autor, professor e bibliófilo.
Como num enredo literário, os destinos de Manguel e Borges voltam a se entrecruzar. Em julho, Manguel assumirá o posto que foi de seu mestre no passado: o comando da Biblioteca Nacional argentina. Borges foi diretor da instituição de 1955 até 1973.
O acaso poético traz alegrias e desafios ao autor de "A Biblioteca à Noite", "Uma História da Leitura" e coautor do "Dicionário de Lugares Imaginários" (todos lançados aqui pela Companhia das Letras).
Primeiro, será um retorno à Argentina desse intelectual que, pouco antes da ditadura, migrou para o exterior, naturalizou-se canadense, radicou-se na França e passou a dar aulas em universidades dos EUA.
"Voltar a Buenos Aires é estranho. Quando alguém deixa um lugar no qual aconteceram coisas importantes -no caso, minha adolescência-, esse lugar vira, na memória, um cenário que vai se modificando para acomodar as lembranças que vamos fabricando para nos consolarmos de estarmos longe.
Vamos mudando tanto essa geografia, do mesmo modo como mudamos a cara de uma pessoa que no passado amamos e já não vemos há tempos, que, quando voltamos a encontrá-la, já não a reconhecemos. Sinto que não volto para a minha Buenos Aires, mas, sim, a uma nova cidade, que devo descobrir e aprender a amar", disse Manguel à Folha.
Já o desafio fica por conta do clima político em que Manguel assume a principal biblioteca do país, maior órgão cultural da Argentina e que, durante o kirchnerismo, abrigou os intelectuais que apoiavam a presidente Cristina Kirchner, o chamado grupo Carta Abierta.
Ao assumir a governo, em dezembro de 2015, o novo mandatário, Mauricio Macri, com o objetivo de "desideologizar" o aparato cultural, promoveu uma série de demissões em instituições geridas pelo Estado. A Biblioteca foi um dos alvos mais atingidos, com mais de 200 demissões.
Foi por isso que, há três semanas, quando Manguel viajou a Buenos Aires para participar da Feria Internacional del Libro, espantou-se com os protestos dos ex-funcionários, orquestrados com as manifestações de outros demitidos pelo Estado, contra o presidente Macri.
"Sob minha direção, a Biblioteca não alojará nenhuma entidade política-cultural específica", afirmou. A resposta sobre como enfrentar o ambiente a princípio hostil à sua chegada, como um indicado de Macri, Manguel ainda não possui. "O futuro dirá."
Em meio a críticas e protestos, Manguel se refugiou na literatura, e em seu discurso na Feira do Livro falou do legado de Miguel de Cervantes, cujos 400 anos da morte são celebrados neste ano.
"Temos muito que aprender com Dom Quixote, que não era um leitor encerrado em seu quarto. Saiu ao mundo para colocar em ação o que os livros tinham lhe ensinado. Precisamos de mais intelectuais curiosos e ativos como ele."

BRASIL

Uma das boas notícias é que a mudança fará com que Manguel se aproxime mais do Brasil. Seu novo livro, "Una Historia Natural de la Curiosidad", será lançado pela Companhia das Letras em agosto, quando o autor virá ao país para participar do aniversário de 30 anos da editora.
Além disso, segundo ele, o fortalecimento da relação da Biblioteca Nacional argentina com as da América Latina será sua prioridade. "Queremos nos aproximar das estrangeiras. Com a do Rio [Biblioteca Nacional] já temos um acordo, mas quero aprofundá-lo, e também estabelecer um vínculo com o Instituto Moreira Salles", contou.
Apesar de ser um escritor muito ligado ao mercado editorial nos EUA e na América Latina, e um bibliófilo obsessivo -possui uma biblioteca particular de 40 mil títulos, na casa onde viveu muitos anos no vilarejo de Mondion, no interior da França-, Manguel crê que uma biblioteca tem de mostra que sua responsabilidade é bem distinta da lógica da indústria cultural.
"Uma biblioteca pública deve ser inclusiva e seguir o modelo da biblioteca de Alexandria. Uma editora é um comércio, uma biblioteca é um repositório da memória."
Questionado sobre a intensa relação da Argentina com a leitura, que na proporção de títulos lançados e livros lidos por habitante é maior do que a de países mais populosos da América Latina, como Brasil e México, Manguel aponta para a história do país para oferecer a resposta.
"A Argentina foi um local que atraiu intelectuais em vários tempos, fugidos de guerras ou crises econômicas e sociais de distintos países. Herdamos grandes leitores da França e da Itália no fim do século 19, judeus europeus durante o terror nazista da Segunda Guerra (1939-1945), refugiados espanhóis da Guerra Civil naquele país (1936-1939). E muitos desses imigrantes fundaram editoras ou abriram livrarias. Obviamente, durante a ditadura militar (1976-1983), muito desse trabalho foi destruído, mas, ainda assim, o leitorado argentino de hoje deve muito aos que vieram a esse país buscando refúgio no passado."
Mesmo assumindo a biblioteca, Manguel seguirá dando aulas em Princeton e em Columbia, "portanto creio que vou ter de aprender a escrever em aviões, ficarei por um bom tempo viajando entre Buenos Aires e Nova York."
Para o apartamento na capital argentina que está alugando com as ajuda das irmãs, levará poucos livros. Basicamente, "uma 'Divina Comédia' edição de bolso que sempre levo comigo e um volume de Rudyard Kipling (o romance "Stalky & Co") que Borges me deu de presente. É o mesmo volume que ele leu quando era adolescente".
E o resto de sua imensa biblioteca pessoal? "Ficou em caixas, num depósito, na França, aguardando o dia de sua ressurreição."


Reprodução da Folha de São Paulo

sábado, 21 de maio de 2016

Os novos velhos tempos


O governo Michel Temer começa exatamente onde o de Fernando Henrique Cardoso parou quase duas décadas atrás: tentando instituir uma idade mínima para a aposentadoria. A proposta era de 60 anos para os homens e 55 para as mulheres, restrita apenas aos que entrassem no mercado após a promulgação da emenda. Foi barrada na Câmara em 6 de maio de 1998.
O atual inquilino do Planalto deve lembrar bem, pois era então o presidente da Casa, aliado de FHC. Não retrocedemos à República Velha; voltamos à idade de ouro do neoliberalismo tupiniquim. Agora a equipe temerária fala em estabelecer limite de 65 para ambos os sexos, valendo também para os que já estão na labuta.
Nesta saison retrô, duas ideias serão testadas. A primeira é minha. Por volta de 2010, argumentei que o realinhamento de 2006 poderia consolidar a proteção social existente, mesmo que a oposição viesse a ganhar eleições posteriores. É verdade que Temer não foi eleito, assumiu a Presidência graças a um golpe parlamentar. Mas julga ter base suficiente para impor o desmonte do precário Estado de bem-estar nacional.
Aqui a diferença com golpe militar cobra força. Nele, as mudanças são impostas pela força. Os que discordam são levados à prisão, ao exílio e à tortura. Os generais só prestam contas à história. Na arruaça legislativa, diferentemente, é necessário manter a maioria legislativa que derrubou Dilma e logo submeter-se ao voto popular.
Quantos deputados serão candidatos a prefeito em outubro? Quantos apoiam ou são apoiados por chefes do Executivo municipal? Como reagirão as suas bases quando verificarem que o benefício previdenciário, com o qual contavam, será adiado por X anos?
Aí está a explicação de por que escolher parlamentar ficha suja para liderar os governistas. O presidente interino sabe que apenas a metodologia rudimentar de Eduardo Cunha é capaz de tanger dezenas de políticos abespinhados por eleitores.
A segunda análise a ser repensada é aquela de acordo com a qual o lulismo foi apenas uma apresentação diferente do cardápio tucano. No fim das contas, Lula também reformou a Previdência em seu primeiro ano de mandato, um dos maiores indícios em favor do argumento da continuidade.
Ocorre que Lula optou por sacrificar os funcionários públicos — o que provocou a justificada aparição do PSOL – para depois manobrar a favor dos trabalhadores como um todo, sobretudo por meio da elevação real do salário mínimo. Temer, diferentemente, dá continuidade plena ao projeto de fazer do Brasil um espaço capitalista livre dos constrangimentos impostos pela Constituição de 1988.
O neoliberalismo retornou animado. Vejamos se veio para ficar.


Texto de André Singer, na Folha de São Paulo

Ministro da Defesa de Israel diz não confiar mais em Netanyahu e renuncia


Sob o argumento de que o governo de Israel está tomado "por elementos perigosos e extremistas" e que não é mais possível confiar no premiê Binyamin Netanyahu, o ministro da Defesa israelense, Moshe Yaalon, anunciou nesta sexta (20) sua renúncia.
Yaalon era considerado uma voz moderada no governo, mas constantemente suas declarações sobre o papel das Forças Armadas entrava em choque com as de Netanyahu.
A tensão entre os dois se acirrou nos últimos dias, quando Yaalon defendeu o direito de um de seus funcionários de expressar suas opiniões livremente sobre as Forças Armadas. Na ocasião, o general Yair Golan fez associações entre as últimas ações de Israel e eventos na Alemanha nazista.
Outro ponto de tensão ocorreu em março, quando um soldado israelense foi flagrado em um vídeo atirando na cabeça de um agressor palestino que já estava ferido e rendido em Hebron. Yaalon defendeu que o soldado fosse processado por assassinato. No entanto, membros do governo defenderam a ação do soldado.
Segundo o agora ex-ministro, a maior parte da população de Israel é tolerante e almeja por uma sociedade liberal e democrática. "No entanto, para minha grande infelicidade, elementos extremistas e perigosos tomaram Israel e o partido Likud [governista], ameaçando a população", disse.
"Infelizmente, políticos do país escolheram o caminho da incitação e segregação de partes da sociedade israelense, em vez de unificá-las e acolhê-las. É insuportável para mim que o cinismo e a ânsia pelo poder estejam nos dividindo. Já expressei minha opinião sobre esse assunto mais de uma vez, por ter uma preocupação honesta sobre o futuro da sociedade israelense e das próximas gerações."
Na rede social Facebook, Yaalon também anunciou sua renúncia do Parlamento e que ficará por um tempo longe da vida política.
"Recentemente, tive fortes discordâncias em assuntos morais e profissionais com o premiê, diversos ministros e membros do Knesset [Parlamento]", disse. "Lutei com todas as minhas forças contra manifestações de extremismo, violência e racismo na sociedade israelense, que ameaçam sua solidez."

POSSÍVEL SUCESSOR

De acordo com a agência Associated Press, Netanyahu provavelmente indicará Avigdor Lieberman, 57, ex-ministro das Relações Exteriores, para o cargo. Lieberman é um antigo aliado do premiê, mas não possui experiência militar.
No passado, Lieberman já expressou sua descrença em relação a um acordo de paz com os palestinos e defendeu a pena de morte contra árabes condenados por terrorismo.


Reprodução da Folha de São Paulo

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Pescadores de ilusões

Na profusão de notícias atribuídas ao governo provisório, constam inúmeras medidas cuja radicalidade contrasta com a interinidade e a falta da legitimidade conferida pelo voto. Seria o caso de uma eventual privatização dos Correios e da Casa da Moeda.
Na taxonomia apresentada no "Staff Note" do FMI intitulado "Accounting devices and fiscal illusions", cujo conteúdo resumi na coluna "Rigor Seletivo", de 15/10/2015, uma das quatro formas de reduzir artificialmente o deficit público é a dos chamados desinvestimentos, que elevam receitas hoje em detrimento de receitas futuras.
Como aponta o autor, ainda que a arrecadação oriunda da venda de ativos públicos possa ser contabilizada como reduzindo o deficit imediato, o governo também perde os dividendos futuros das empresas privatizadas, o que pode tornar o benefício fiscal da operação muito menor ou até mesmo inexistente.
Os Correios, que não foram privatizados nem nos EUA por seu caráter estratégico e essencial, registraram em média R$ 800 milhões de lucro líquido por ano desde 2001 (aos preços atuais), dos quais ao menos 25% voltaram para a União na forma de dividendos. Antes do agravamento da crise, o lucro líquido dos Correios chegou a ultrapassar a faixa de R$ 1 bilhão, em 2012, e o da Casa da Moeda atingiu um recorde de R$ 783 milhões, em 2013.
Outros anúncios recentes reforçam a impressão de que a gestão das contas públicas pelo governo interino será menos transparente –além de mais regressiva e contraproducente– do que a posta em prática pelo governo eleito nos últimos anos.
O interventor destacado para o Ministério da Fazenda, o sr. Henrique Meirelles, anunciou, por exemplo, que buscará congelar as despesas públicas em termos nominais (sem o desconto da inflação). No entanto, conforme aponta o estudo do Ipea de Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair já divulgado pelo colunista Vinicius Torres Freire em 24/4/2016, quase 92% do aumento de gastos federais em 2015 deveu-se ao pagamento dos débitos com bancos públicos e FGTS –as tais "despedaladas fiscais"–, tendo o gasto real efetivo caído cerca de 4%.
Em mais um truque de ilusionismo fiscal, a equipe econômica provisória poderá aproveitar-se do aumento contábil de despesas em 2015 para vender o peixe da estabilidade no valor nominal dos gastos, sem ter de cortar despesas reais efetivas. Os cortes restringir-se-iam, portanto, aos itens que simplesmente não contam com a boa vontade dos apoiadores mais afoitos do golpe.
Uma das primeiras vítimas foi uma modalidade do programa Minha Casa, Minha Vida, cujo cancelamento anunciado pelo Ministério das Cidades na terça (17) implicará perdas não só de caráter social mas na geração de empregos do setor de construção. Só na cidade de São Paulo, 8.785 unidades habitacionais tiveram seu financiamento suspenso.
A julgar pelo perfil dos suspeitos, as próximas vítimas poderão ser o SUS, a universidade pública e o incentivo à pesquisa, o salário dos servidores menos influentes, ou os outros programas sociais. Os investimentos públicos em infraestrutura, que já vêm sendo atacados desde 2011, podem ser enterrados pela MP 727, de 12/5, que inaugura nova fase de concessões e privatizações.
Enquanto isso, o aumento de impostos progressivos continua fora da agenda, e a eliminação das desonerações fiscais, também. Já a volta da CPMF passou a ser recebida com tranquilidade. Tranquilidade perdida pelos que assistem mais uma vez à mudança das regras da aposentadoria, que, segundo Meirelles, terá de ser feita no meio do jogo (folha.com/no1772467).
Maquiavel teria aprovado: todo o mal, de uma vez, concentrado naqueles que sempre falaram menos e trabalharam mais.


Texto de Laura Carvalho, na Folha de São Paulo.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Ignorância em ação

A extinção do Ministério da Cultura não foi ocasional. Não foi técnica. Nem é coerente apenas com o nível cultural do grupo que ocupa os postos chamados de "o governo". Há também uma coerência interna que identifica, uns com os outros, os integrantes desse grupo heterogêneo, caótico e retrógrado. Essa segunda coerência faz, inclusive, uma conexão entre a atualidade e o passado de algumas décadas.
O governo fala muito. Ainda que metade seja para desdizer o que foi dito na outra metade. Atos administrativos, para quem sabia tanto do que devia ser feito pelo governo anterior, nem um só. Há providências, porém.
Todas na mesma linha, das quais seguem-se alguns exemplos.
1) Nas duas dúzias de ministros, há um único indicado por Michel Temer. É o da Justiça, Alexandre Moraes, cuja primeira e solitária medida, divulgada logo ao assumir, é "rever todos os atos deste ano" praticados pelo antecessor, José Eduardo Cardozo.
2) No Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, Osmar Terra comunica a providência de revisar atos e programas do governo Dilma. E uma investigação no Bolsa Família que pode resultar "no desligamento de 10% dos beneficiários", ou "mais, de 20% a 30%, se cruzados todos os dados". De que base respeitáveis vêm tais estimativas? O entra-e-sai faz do Bolsa Família uma população flutuante mês a mês. Parece claro que a intenção é cortar o gasto do Bolsa Família com uma alegação oportunista.
3) No Ministério da Educação e Cultura, Mendonça Filho manda rever todas as medidas tomadas nos últimos dias do governo Dilma por Aloizio Mercadante (Educação), Juca Ferreira (Cultura) e respectivos chefes de departamento.
4) Na Casa Civil, Eliseu Padilha comanda a revisão de todos os atos baixados por Dilma desde 1º de abril.
5) Também na Casa Civil, Padilha procede à revisão das demarcações de terras indígenas. Subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat advertiu que a revisão pretendida viola a Constituição. Decisões passadas do Supremo Tribunal Federal foram no mesmo sentido. Mas, desejada por fazendeiros ocupantes de terras indígenas, a revisão continua.
6) Na Advocacia-Geral da União, Fábio Medina Osório chega com a determinação de "apurar" a conduta do antecessor José Eduardo Cardozo na defesa de Dilma. Parece-lhe inadmissível que Cardozo tenha se referido a "golpe", ao falar do golpe.
7) O próprio Michel Temer desconsidera a garantia legal do mandato de quatro anos do jornalista Ricardo Melo na presidência da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), empossado no início do mês. E o exonera.
As revisões citadas nestes exemplos e os demais casos, que incluem os outros ministérios, compõem um conjunto caracterizadamente persecutório e policialesco. Sua amplitude e prioridade evidenciam tratar-se, não da verificação de eventuais impropriedades, mas de arbitrariedade e prepotência como política de governo. Uma política que expressa a índole do governo e do próprio Temer, no mínimo por se sujeitar, como marionete, a corrompidos, ímprobos e fraudadores à sua volta.
É verdade que um ou outro governo tenta valorizar-se à custa de algumas reais ou alegadas acusações ao antecessor. Fernando Henrique, aliás, devia agradecer a Lula por nada ter investigado, com tantas possibilidades. Mas a busca e a perseguição como política e prática geral, vista agora, só teve um precedente no Brasil: o poder instalado pelo golpe de 1964. Não comparadas as dimensões, a sanha é a mesma. Até a covardia que leva a demitir o garçom do gabinete presidencial, José Catalão, porque considerado petista, iguala essa gente de hoje à lá de trás.

SENTENÇA

Gore Vidal, em "Washington, D.C." (há edição brasileira da Rocco), sobre o vice: "Pode-se dizer que tem todas as características de um cachorro, menos a lealdade".


Reprodução da coluna de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo. 

O amigo oculto do presidente

Num discurso famoso, a presidente afastada disse que atrás de toda criança existe uma figura oculta, que é o cachorro. Nos últimos dias, os brasileiros estão percebendo que atrás do presidente interino existe outra figura, nem tão oculta. É o Eduardo Cunha.
Mesmo afastado da Câmara por decisão do Supremo, o correntista suíço está dando as cartas no governo de Michel Temer, seu velho aliado. Emplacou oadvogado na Casa Civil. Emplacou um assessor na Secretaria de Governo. Emplacou um aliado como ministro dos Transportes.
Ajudou a emplacar outro advogado como ministro da Justiça. O escolhido vai comandar a Polícia Federal, que investiga políticos suspeitos de corrupção. Alguém pensou em conflito de interesses?
Agora Cunha deu a demonstração definitiva da ascendência sobre Temer. Emplacou André Moura, o mais fiel de seus escudeiros, como líder do governo na Câmara. Ele terá carta branca para negociar e dar entrevistas em nome do presidente.
Investigado na Lava Jato, Moura tem um prontuário de dar inveja ao padrinho. É réu em três ações penais no Supremo, sob acusação de desviar verba. Responde a mais três inquéritos, um deles por tentativa de homicídio. Foi condenado por improbidade após torrar dinheiro público para promover um churrasco.
Filiado ao nanico PSC, o deputado gosta de ser chamado de André Cunha, tamanha a intimidade com o chefe. O petista Paulo Teixeira o batizou com outro apelido: "lambe-botas". As botas de Cunha, é claro.
A escolha indignou até deputados que apoiaram o impeachment. Jarbas Vasconcelos, do PMDB, definiu a nomeação como "um escárnio".
Ao promover o pau-mandado, Temer se apresenta ao país como um refém de Cunha. Se ele pretende terceirizar o governo ao correntista suíço, deveria entregar logo as chaves do palácio. Questionado sobre os processos, Moura disse não ter "nada a temer". É verdade. Nós é que temos.


Texto de Bernardo Mello Franco, na Folha de São Paulo

Esporte desmontado

SE VOCÊ, rara leitora e raro leitor, não é uma pessoa envenenada pela intolerância que divide o mundo entre petistas e coxinhas, lembrará que leu aqui não poucas críticas a todos os ministros do Esporte dos governos Lula e Dilma (o que valeu impropérios dos petistas) além de muitos elogios aos avanços na legislação esportiva (o que resultou em xingamentos dos coxinhas).
A razão sempre foi a mesma: nenhum dos tais ministros era do esporte ou tinha uma vaga ideia do que fazer.
Agnelo Queiroz, Orlando Silva e Aldo Rebelo, todos do PCdoB, apenas aparelharam o ministério e decepcionaram.
O primeiro tem tudo para ser preso, o segundo complicou-se até com a pamonha e o terceiro desmoralizou a honestidade.
Depois dos ateus do PCdoB (embora um deles ao menos a coluna tenha visto comungar), veio a Igreja Universal do Reino de Deus do pastor George Hiltonque, diga-se, mal não fez, ao contrário, ajudou a aprovar o Profut, passo adiante nas leis do futebol, grande gol, embora ainda insuficiente, da presidenta (presidenta?! Pega, pega, é coisa de petista!) afastada.
Eis que agora temos —sabe-se lá por quanto tempo, tantas já são as trapalhadas de um interino que acha estar falando com o presidente da Argentina, nomeia um ministro da Justiça de botinas para logo desmenti-lo e escolhe a marca para sua gestão com a bandeira dos tempos da ditadura—mais um ministro do Esporte, este vindo do PMDB.
Por mais que desminta, sua primeira medida foi desmontar a Autoridade Pública do Futebol, a APFut, ao anular as nomeações já feitas e entregar as novas ao notório deputado federal Jovair Arantes (PTB-GO), da bancada da bola e parceiro de Carlinhos Cachoeira. Não por acaso, fala-se em legalizar os jogos de azar no país, para alegria do velho bicheiro paulista Ivo Noal, cuja ascensão se deu exatamente no período em que era secretário da Segurança de São Paulo o presidente em exercício.
E ninguém bate nas panelas por isso!
O novo ministro, deputado federal Leonardo Picciani (PMDB-RJ), tem como maior obra em sua vida de empresário ter participado, como sócio de uma mineradora, da compra de ações de alguém que havia morrido 17 meses antes de "assinar" a venda. A tal mineradora, Tamoio, vende brita para obras públicas.
O vendedor defunto acabou atribuído a um equívoco do contador. Como o sumiço, entre outras, da estrela, que representa, no logotipo temerário, o Estado do Roraima do ministro Romero Jucá, encalacrado até o pescoço na Lava Jato e autor do precoce relatório da CPI do Futebol antes que esta terminasse, é de responsabilidade de uma criança de 7 anos.
Mas as panelas seguem mudas.
Imagine na Olimpíada.
Uma festa seguramente linda na abertura para nos fazer chorar de emoção e esquecer que recebemos a Olimpíada sem ter nem sequer Política Esportiva.
Não temos e não teremos enquanto o ministério for objeto de barganha política. Do jeito que está, este sim pode acabar, sem prejuízo, ao contrário do da Cultura.
Pensar que o do Esporte deveria estar nas mãos de uma Ana Moser, da Atletas pelo Brasil.
Mas como, se nem Autoridade Pública Olímpica a deixaram ser?



Texto de Juca Kfouri, na Folha de São Paulo

Tradutor do russo Boris Schnaiderman morre em São Paulo aos 99 anos

Tradutor do russo Boris Schnaiderman morre em São Paulo aos 99 anos


PAULO WERNECK
ESPECIAL PARA A FOLHA

O escritor e tradutor Boris Schnaiderman morreu, na noite desta quarta-feira (18), no Hospital Samaritano, aos 99 anos. Ele estava internado desde a semana passada e passou por uma operação no fêmur. O intelectual acabou desenvolvendo uma pneumonia e não resistiu.
A informação foi confirmada à Folha por sua mulher, Jerusa Pires Ferreira. O tradutor havia feito aniversário na terça (17).
O velório será nesta quinta (19) de 8h30 até 14h, na Centro Universitário Maria Antonia. A cremação acontecerá depois disso, no Crematório Vila Alpina.
Assim como Paulo Rónai, Anatol Rosenfeld e Otto Maria Carpeaux, estrangeiros que estenderam pontes entre a literatura europeia e a cultura brasileira, Schnaiderman é considerado por seus pares e por estudiosos o pai fundador da tradução de ficção russa no Brasil, responsável pela edição pioneira de autores clássicos e de vanguarda, de Dostoievski e Tolstói a Maiakóvski e Guenádi Aigui.
Certa vez, durante a campanha da Força Expedicionária Brasileira na Itália, na qual serviu como sargento, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45), um capitão o interpelou:
"Mas vem cá, você é russo e quer ir para uma guerra que é de brasileiros. Que estranho!"
Schnaiderman rebateu: "Não, a guerra não é só de brasileiros". E emendou: "Além disso, eu sou brasileiro".
Nascido em Úman, na Ucrânia, no mesmo ano de 1917 que viu surgir a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Boris Schnaiderman inscreveu seu nome na cultura brasileira como um dos maiores tradutores literários que o país já conheceu.
Os Schnaiderman deixaram Úman quando o pequeno Boris tinha apenas um ano, fugindo dos pogroms (massacres de judeus) que assolavam a região. Passariam oito anos em Odessa, vivendo em um meio cultural basicamente russo, até dezembro de 1925, quando embarcaram para o Rio. Ele só voltaria para a Rússia homem feito, quarenta anos depois, em 1965.
"Meu pai era comerciante, então é claro que para ele foi mais difícil a adaptação à vida nos níveis soviéticos", contaria Boris em uma entrevista. "No período da NEP, da Nova Política Econômica, ele pôde desenvolver lá certa atividade de comércio. Quando a NEP foi posta de lado, as coisas foram ficando mais difíceis, mas ele conseguiu sair com autorização, com passaporte."
Das poucas lembranças de infância está o curioso corre-corre a que certa vez assistiu numa enorme escadaria: futuramente ele saberia que eram as filmagens da cena da escadaria de Odessa, uma das mais marcantes de "O Encouraçado Potemkin", de Sergei Eisenstein.
Em dezembro de 1925, a família desembarcou no Rio e não demorou a rumar para São Paulo. "No Brasil, meu pai continuou a trabalhar como comerciante, mas com muitas dificuldades." A pressão econômica logo recaiu sobre o jovem Boris. "Faziam questão que eu tivesse um título, algum curso superior. Insistiam em agronomia e eu queria literatura."
Os pais venceram. Aos 17, em 1934, ele se mudou com os pais para o Rio, onde foi estudar e conheceu a xenofobia da era varguista. "Minhas lembranças são péssimas... Nessa época o Brasil vivia sob um regime autoritário que tinha muita desconfiança em relação ao estrangeiro", recordaria ele em um depoimento.
Por causa de um cunhado que estava sendo investigado, chegou a ser detido e teve até seus cadernos de estudos confiscados. "A polícia política invadiu minha casa", recordaria. "Eu estava voltando da aula e quando cheguei encontrei homens sem paletó... Naquele tempo ficar sem paletó era o cúmulo da intimidade!"
A condição de estrangeiro também dificultava a vida profissional de Boris. Sem a naturalização, não podia atuar como engenheiro agrônomo nem mesmo com o diploma que obteve em 1940, na Escola Nacional de Agronomia, no Rio. "A naturalização era difícil para quem era nascido na Ucrânia, União Soviética", recordaria em entrevista. Na mesma época, a escritora Clarice Lispector, também nascida na Ucrânia, enfrentou dificuldades semelhantes para obter a cidadania brasileira e só conseguiu após escrever uma corajosa carta ao presidente Getúlio Vargas.

GUERRA

Boris enfim naturalizou-se em 1941, mas só poderia exercer a profissão de agrônomo antes se fizesse o serviço militar, no qual só poderia ser admitido como praça: o CPOR, que formava os oficiais, era para os brasileiros natos.
A perspectiva de ir para o front o atraía: "Tinha vontade de ir para a guerra, mas ao mesmo tempo tinha muito medo da minha família...". Em vez de comunicar o seu desejo aos pais, fez um curso preparatório para sargento: "Era inevitável que iria ser convocado. Sabia que iria ser".
sargento Boris Schnaiderman foi convocado às vésperas do primeiro embarque das tropas brasileiras para a Europa, em julho de 1944. Participaria da guerra até a ofensiva final, em abril de 1945. "Quando nós entramos no Norte da Itália... aí foi uma glória! A população nos recebeu de braços abertos, jogavam flores, abraçando a gente", recordaria anos depois.
Ainda que enfrentasse chumbo grosso no front de Castelo ("ali passei algumas semanas diante de uma ponte que era constantemente bombardeada"), Boris encontrava tempo para a leitura nos tempos mortos das batalhas. "Ler, eu lia, pois era uma guerra em que não se ficava o tempo todo ocupado com a luta. Como era calculador de tiro, fazia os cálculos que me pediam e nos intervalos lia romances."
Em entrevista à revista Shalom, nos anos 1980, o ex-controlador de tiro Boris Schnaiderman recordaria o despreparo dos brasileiros no front:
"Tínhamos aprendido o que se chamava de artilharia de montanha, ou seja, o canhão era desmontado e colocado no lombo do burro. Era um canhão de 75 mm, da tradição francesa da Primeira Guerra Mundial. Só quando fui enviado à guerra, fomos trabalhar com canhões de 105 mm, modelo americano, que dispensava o lombo de burro - era puxado por um caminhão."
A experiência da guerra ficou registrada em "Guerra em Surdina", narrativa autobiográfica publicada em 1964 - e reeditada pela Cosac Naify em 2004 -, um dos principais testemunhos sobre a campanha da FEB na Itália.

TRADUÇÃO

Pouco antes da convocação, em 1943, Boris Schaniderman ofereceu a diversos editores uma tradução de "Os Irmãos Karamázov", de Fiódor Dostoiévski, que acabou sendo publicada pela Vecchi, sob o pseudônimo Boris Solomonov, derivado de Solomonovitch, seu patronímico - nome que indica o nome do pai dos cidadãos russos. Boris conta que trabalhava praticamente sozinho: "Eu queria me realizar intelectualmente, mas não tinha contatos nessa época".
O Dostoievski de Boris fundou uma nova era na tradução de literatura russa no Brasil. Bastante difundida nos meios cultos do país, a ficção russa ainda chegava a partir de traduções francesas ou inglesas que, por amadorismo ou desejo de embelezar as rudezas da prosa eslava, invariavelmente deturpavam os originais.
Boris acabaria renegando essa e outras traduções publicadas na juventude, ainda que, quase seis décadas depois, elas ainda recebessem elogios de tradutores tarimbados como Paulo Bezerra, que traduziu Karamázov em 2008. Os "Karamázov" de Solomonov ainda deram prova de resistência ao serem plagiados pela editora Martin Claret, num caso denunciado pela tradutora e pesquisadora Denise Bottman.
"Essas primeiras traduções eram ruins, ruins mesmo, não é modéstia, e foram assinadas com pseudônimo", diria Boris, décadas mais tarde. "Meu nome foi publicado pela primeira vez em uma antologia de contos de Tchekhov, em 1959."
Nos anos 1950, Boris teve seu primeiro encontro intelectual decisivo: formou um grupo de amigos que se reunia às segundas-feiras na casa do casal de editores Guita e Jacó Guinsburg, para discutir e estudar filosofia, estética, literatura e psicanálise.
Naqueles encontros, articulados em torno do crítico alemão Anatol Rosenfeld, ao longo de vinte anos formou-se uma importante geração de psicanalistas, filósofos e críticos de artes, como Isaías Melsohn, Regina Schnaiderman (com quem se casou em 1949, mãe de seus filhos Carlos e Miriam), Roberto Schwarz e Sábato Magaldi, entre outros.

USP

A essa altura, o autodidata Boris já escrevia artigos sobre literatura russa para o suplemento literário de O Estado de S. Paulo, então dirigido pelo crítico de teatro Decio de Almeida Prado. O convite para abrir um curso livre de russo na Universidade de São Paulo, em 1960, ajudou-o a pôr os dois pés na vida intelectual, abandonando o emprego na Escola Agrotécnica de Barbacena (MG), do Ministério da Agricultura, onde trabalhou de 1948 a 1953.
Não demorou para que o curso de literatura e língua russas fosse oficialmente incorporado pela USP, onde Boris daria aulas até 1979, quando se aposentou. Em 2001, tornou-se professor emérito. "Hoje, há uma onda antiuniversitária, mas a universidade é um lugar onde há pessoas interessantes fazendo coisas interessantes", diria ele em entrevista.
Nesse período de fértil atuação como tradutor e formador de estudiosos da cultura russa, Anatol Rosenfeld apresentou Boris a Haroldo e Augusto de Campos, poetas que se aventuravam na tradução de poemas da vanguarda russa ainda absolutamente desconhecidos no Brasil. Era o segundo dos três encontros intelectuais fundamentais em sua vida - o terceiro seria sua união com a professora de literatura e semiótica Jerusa Pires Ferreira.
Boris, que tinha guardado alguns recortes sobre um desses poetas, Vladimir Maiakóvski, passou a dar aulas para Haroldo e mais tarde para seu irmão Augusto de Campos. Os três logo iniciaram uma parceria que Augusto qualificaria como "trabalho laboratorial em torno da poesia russa": os dois irmãos levavam a Boris alguns poemas que traduziam com os recursos que tinham à mão; Boris esclarecia dúvidas, corrigia e às vezes produzia traduções literais, em prosa, para serem retrabalhadas pelos criadores da poesia concreta. Às vezes, gostava de assinalar, quase não mexia nas traduções.
As ousadias da poesia russa de vanguarda pareciam se encaixar à perfeição no projeto estético dos irmãos Campos, para os quais não haveria revolução sem formas revolucionárias, como rezava a lição de Maiakóvski. Já Boris pareceu encontrar no concretismo uma porta aberta para uma renovação em seu repertório estético: "De um modo geral, minha formação literária era muito tradicional", diria ele. "Foi justamente em fins da década de 1950 e início da década de 1960 que eu posso dizer que me modernizei literariamente, mesmo em termos de poesia brasileira."
Da parceria com os irmãos Campos surgiram livros que fizeram a cabeça de mais de uma geração de leitores: Poemas, de Maiakóvski (1967) e Poesia russa moderna (1968). Ambos tiveram sucessivas reedições, como novos poemas incorporados, e atualmente estão disponíveis pela editora Perspectiva.
Do laboratório dos Campos e Boris ainda saíram importantes estudos literários, como "A poética de Maikóvski através de sua prosa", que Boris lançou em 1971, ensaio que ele retrabalharia e relançaria no final da vida. Crítica, poesia e tradução eram uma coisa só, em permanente articulação e alimentando-se uma da outra. As mais de vinte traduções que publicaria, sempre produzindo ensaios críticos em paralelo, lhe renderiam em 2003 o Prêmio de Tradução da Academia Brasileira de Letras, concedido pela primeira vez naquele ano.
As viagens à União Soviética, a partir de 1965, permitiam-lhe fazer pesquisas e estabelecer vínculos com a intelectualidade moscovita. Sem nunca ter vivido na URSS –e tendo mantido, quase sempre, certa distância ideológica do modelo soviético–, Boris produziu um belo livro sobre a queda do regime comunista, nos anos 1990, em "Os escombros e o mito - A cultura e o fim da União Soviética."
Boris relata o assombro com que ele e seus companheiros de geração tomaram conhecimento de galpões repletos de obras censuradas nos tempos do stalinismo –chegavam-se a revelar a quase dez obras inéditos de alguns de seus autores prediletos, o que reconfigurou uma das principais constelações literárias do século 20. O livro funciona como uma espécie de guia de leitura da literatura russa e uma narrativa da impressionante vida intelectual sob o stalinismo.
O reconhecimento em solo russo veio em 2007, quando recebeu do governo a Medalha Púshkin.
Até o final da vida Boris Schnaiderman trouxe sua experiência pessoal para o centro de sua produção intelectual. "Tradução, ato desmedido", publicado em 2011, condensa setenta anos de produção em ensaios que constituem sua profissão de fé como tradutor e percorrem os principais autores que traduziu. Com o livro publicado, passou a trabalhar em uma autobiografia.

PAULO WERNERCK é curador da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) 


Reprodução da Folha de São Paulo

quarta-feira, 18 de maio de 2016

O nome do jogo é Nezinho Alencar

Existe a agenda do século 21, que pede banheiros para transgêneros, história d'África nos currículos e livre consumo de maconha. É bonita e moderna, mas embute um truque. Discutindo-se a agenda do 21 esquecem-se os restos a pagar do 19.
No 19, os patriarcas escondiam-se na escravidão para viver naquilo que Gilberto Freyre chamou de "intoxicação sexual". No 21, essa figura do oligarca, senhor de seus domínios, perdeu espaço, mas ainda vai bem obrigado.
No dia 23 de janeiro de 2016 deste século 21, o ex-senador Manoel Alencar Neto (PSB-TO), também conhecido como Nezinho Alencar, foi preso pela Polícia Federal sob a acusação de ter abusado sexualmente de duas meninas menores, uma de seis e outra de oito anos.
Nezinho é uma próspero político do Estado de Tocantins e chegou ao Senado em 2005, cavalgando uma suplência. Esteve na cadeira por alguns meses, durante os quais honrou a base governista, defendeu a prorrogação das dividas do agronegócio, falou em nome do "choro de mães de família", pediu mudanças na legislação trabalhista e lembrou ter começado sua vida política nos "movimentos estudantis pelas liberdades democráticas". Na região de Guaraí há quem peça bênção a Nezinho.
No governo Temer o PSB de Nezinho continua aninhado no Planalto e o pernambucano Fernando Coelho Filho ganhou o Ministério da Integração Nacional. Seu pai é o senador Fernando Coelho, que por sua vez é sobrinho do ex-governador Nilo Coelho, filho do coronel Quelê, o patriarca dos Coelho de Petrolina (PE).
Nezinho foi preso porque um vaqueiro escondeu um celular numa árvore e fotografou-o, com a cabeça branca de seus 67 anos, bolinando duas crianças, uma da quais mantinha no colo. Em nenhum momento ele desmentiu a veracidade da cena.
Em março o juiz Ricardo Gagliardi, da 1ª Vara Criminal de Colmeia soltou o ex-senador argumentando que "o fato de o investigado ser colocado em liberdade em nada afronta a ordem pública". Pode ser, mas por via das dúvidas, o vaqueiro e outras nove pessoas de sua família estão hoje escondidos, sob proteção da Polícia Federal.
Os advogados de Nezinho defendem-no com dois argumentos. Primeiro, foi tudo "armação" do pai das meninas. Tudo bem, um pai analfabeto e pobre deve ser sempre o primeiro suspeito, mas quem está na fotografia bolinando as crianças é o ilustre ex-suplente de senador pelo PSB. Na segunda linha de defesa, o bolinador teria agido sob influência de antidepressivos misturados a álcool. Em suma, Nezinho Alencar é a verdadeira vítima, pois até chorou quando lhe mostraram a cena. Não chorava quando mantinha a criança no colo. Tomara que nenhum consumidor de álcool com antidepressivos cruze com familiares de Nezinho ou de seu advogados.
Felizmente, a repórter Renata Mariz, do "Globo", recuperou o caso do vaqueiro e de suas filhas. Eles vivem com medo. Fazem bem, porque o doutor continua acusando-os de "armação" e até hoje não passou pela sua cabeça pedir desculpas por ter bolinado crianças, filhas de um empregado.
O pai das duas meninas dá uma aula de ciência política aos novos poderosos de Brasília e aos barbudos que acreditaram numa aliança com a oligarquia. Segundo ele, Nezinho não estaria solto se tivesse "mexido com a filha do juiz, do delegado, do promotor ou de outro fazendeiro".



Texto de Elio Gaspari, na Folha de São Paulo

terça-feira, 17 de maio de 2016

Faltou combinar com os russos


Reza a lenda que na Copa de 58, o técnico Feola bolou um esquema infalível contra a seleção soviética: Nilton Santos lançaria a bola pela esquerda para Garrincha, que driblaria três russos e cruzaria para Mazzola marcar de cabeça. Garrincha ouviu o professor atentamente: "Tá legal, seu Feola, mas o senhor combinou com os russos?".
"Primeiro a gente tira a Dilma", dizia o pessoal do impeachment. "Depois a gente derruba o Temer. Aí a gente prende o Cunha. Quando ele cair, a gente cassa o Renan. Daí pronto: eleições gerais." O plano era infalível. Só esqueceram de combinar com os russos.
No poder, o presidente interino (não pronunciarei mais seu nome) já mostrou que não tem a menor intenção de renunciar –apesar de ter assinado as mesmas pedaladas que derrubaram Dilma. Parabéns a todos os que produziram o efeito dominó mais curto do mundo: parou na primeira peça.
Os russos roubaram a bola antes dela chegar ao ataque e fizeram sete gols. O secretario de segurança genocida foi premiado com a Justiça. A Educação ficou com o PFL (me recuso a chamar de Democratas) –partido que foi contra o ProUni, o Fies, os royalties para educação. A Cultura foi pro mesmo lugar que a democracia: debaixo da terra. Ou do PFL. O que é pior. Serra no Exterior –um sujeito que não tem sequer um amigo vai cuidar da diplomacia. Mudaram a CGU –e junto com ela a torneira da Lava Jato.
Achei que aqueles que eram contra a corrupção iriam às ruas contra o primeiro presidente brasileiro que já assume com a ficha suja. Não foram. Achei que fossem contra a indicação de ministros citados na Lava Jato. Tampouco foram. O pato da Fiesp acordou rouco. As panelas voltaram à cozinha. Durante o discurso do vampiro embalsamado que nos governa, tudo o que se ouvia era um silêncio ensurdecedor.
Cheguei a ouvir: "ao menos esse presidente fala bem o português". A vontade é enorme de gostar do mordomo interino. Pode roubar, matar, e esconder cadáver, mas pelo menos não erra o plural.
Não se esqueçam do Carlos Lacerda, que fez o que pôde pro governo de Jango cair. Quando o golpe chegou, teve os direitos políticos cassados. Tentou reclamar –era tarde demais. "Mas não era isso que você queria?", poderiam argumentar os militares.
O golpe chegou. Vale lembrar de Lacerda. Quem pediu o golpe não estará imune a ele. É o momento de deixar claro que não era isso que vocês queriam. Com esse silêncio todo, fica parecendo que era.


Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

Comentário rápido: na noite de domingo, em algumas capitais, houve bateção de panelas durante entrevista do presidente traíra, digo, interino ao Fantástico.

A doença do amor

Existe de fato amor romântico? Esta é uma pergunta que ouço quando, em sala de aula, estamos a discutir questões como literatura romântica dos séculos 18 e 19. Quando o público é composto de pessoas mais maduras, a tendência é um certo ceticismo, muitas vezes elegante, apesar de trazer nele a marca eterna do desencanto.
Quando o público é mais jovem há uma tendência maior de crença no amor romântico. Alguns diriam que essa crença é típica da idade jovem e inexperiente, assim como crianças creem em Papai Noel.
Mas, em matéria de amor romântico, melhor ainda do que ir em busca da literatura dos séculos 18 e 19 é ir à fonte primária: a literatura europeia medieval, verdadeira fonte do amor romântico. A literatura conhecida como amor cortês.
Especialistas no assunto, como o suíço Denis de Rougemont, suspeitavam que a literatura medieval criou uma verdadeira expectativa neurótica no Ocidente sobre o que seria o amor romântico em nossas vidas concretas, fazendo com que sonhássemos com algo que, na verdade, nunca existiu como experiência universal. Dos castelos da Provence francesa do século 12 ao cinema de Hollywood, teríamos perdido o verdadeiro sentido do amor medieval, que seria uma doença da qual devemos fugir como o diabo da cruz.
Para além dos céticos e crentes, a literatura medieval de amor cortês é marcante pela sua descrição do que seria esse "pathos" amoroso. Uma doença, uma verdadeira desgraça para quem fosse atingindo em seu coração por tamanha tristeza. André Capelão, autor da época ("Tratado do Amor Cortês", ed. Martins Fontes), sintetiza esse amor como sendo uma "doença do pensamento". Doença essa que podemos descrever como uma forma de obsessão em saber o que ela está pensando, o que ela está fazendo nessa exata hora em que penso nela, com o que ela sonha à noite, como é seu corpo por baixo da roupa que a veste, o desejo incontrolável de ouvir sua voz, de sentir seu perfume. Mas a doença avança: sentir o gosto da sua boca, beijá-la por horas a fio.
Mas, quando em público, jamais deixe ninguém saber que se amam. Capelão chega a supor que desmaios femininos poderiam ser indicativos de que a infeliz estaria em presença de seu desgraçado objeto de amor inconfessável. A inveja dos outros pelos amantes, apesar de condenados a tristeza pela interdição sempre presente nas narrativas (casados com outras pessoas, detentores de responsabilidades públicas e privadas), se dá pelo fato que se trata de uma doença encantadora quando correspondida.
Nada é mais forte do que o desejo de estar com alguém a quem você se sente ligado, mesmo que a milhares de quilômetros de distância, sem poder trocar um único olhar ou toque com ela.
O erro dos modernos românticos teria sido a ilusão de que esse medievais imaginariam o amor romântico numa escala universal e capaz de conviver com um apartamento de dois quartos, pago em cem anos.
Não, o amor cortês seria algo que deveríamos temer justamente por seu caráter intempestivo e avassalador. Sempre fora do casamento, teria contra ele a condenação da norma social ou religiosa que, aos poucos, levaria as suas vítimas à destruição, psicológica ou física.
Para os medievais, um homem arrebatado por esse amor tomaria decisões que destruiriam seu patrimônio. A mulher perderia sua reputação. Ambos viriam, necessariamente, a morrer por conta desse amor, fosse ele em batalha, por obrigação de guerreiro, fosse fugindo do horror de trair seu melhor amigo com sua até então fiel esposa. Ela, morreria eventualmente de tristeza, vergonha e solidão num convento, buscando a paz de espírito há muito perdida. A distância física, social ou moral, proibindo a realização plena desse desejo incessante como tortura cotidiana.
O poeta mexicano Octavio Paz, que dedicou alguns textos ao tema, entendia que a literatura medieval descrevia o embate entre virtude e desejo, sendo a desgraça dos apaixonados a maldição de ter que pôr medida nesse desejo (nesse amor fora do lugar), em meio à insuportável culpa de estar doente de amor.


Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo