sexta-feira, 2 de maio de 2025

STF homenageia o trabalhador brasileiro


Nesse 1º de maio de 2025, trabalhador, o STF gostaria de lembrar o que fez por você nos últimos anos.

A Constituição de 1988 garantiu, no artigo 7º, direitos como salário mínimo, férias, décimo terceiro, licença-maternidade, proteção contra acidentes, proibição da discriminação. Decorrem da pedra fundamental do direito do trabalho: a relação de emprego, que supõe subordinação e continuidade.

Para esvaziar a Constituição sem mudar o texto da Constituição, o tribunal premiou você, trabalhador, com a eliminação gradual de garantias elementares da sua vida econômica. E incentiva fraudes ao conceito de "relação de emprego".

No seu dia, trabalhador, vale recordar dez prêmios que lhe foram concedidos:

1. O STF inventou a prevalência da negociação sobre a lei. Patrão e empregado podem entrar num "acordo" contra a lei. Permitiu que esse acordo assimétrico tenha tratamento de contrato civil qualquer. A lei trabalhista torna-se facultativa.

2. Inventou também a prevalência do contrato sobre a realidade. Se o trabalhador assinou um papel, mas na realidade pratica atividades diferentes do combinado, prevalece o que estava escrito.

3. O STF ampliou conceito de terceirização previsto na reforma trabalhista. A lei definia requisitos como a autonomia na prestação de serviços terceirizados. Foram abolidos.

4. O STF equiparou terceirização, em que ainda restam ao trabalhador certos direitos, a pejotização, na qual o trabalhador vira uma empresa. E eliminou a isonomia entre trabalhadores terceirizados e empregados.

5. O STF atribuiu aos terceirizados do serviço público o ônus de provar que a administração pública não fiscalizou empresas contratadas.

6. Rumo à era pré-moderna, o STF permite ao direito civil regular relações de trabalho. E veja só: com a proposta de reforma do Código Civil, essa relação pode perder até a proteção do contrato civil (como o equilíbrio do contrato, a boa-fé e a premissa de cooperação entre as partes), e se tornar uma figura nova, o "contrato empresarial".

Agora você é empresário, trabalhador. Suas relações são de igual para igual.

7. O STF liberou grandes corporações como Uber e iFood para contratar esse empresário de si mesmo sem responsabilidade trabalhista ou previdenciária.

8. A Justiça do Trabalho tornou-se, por arte do STF, Justiça a ser combatida, não aperfeiçoada. E o STF, sua instância revisora, mesmo que não haja controvérsia constitucional.

9. Se almeja reconhecer vínculo empregatício, trabalhador, a porta da Justiça do Trabalho foi fechada.

10. Para a mulher trabalhadora-empresária, o STF acabou de lhe tirar proteção à maternidade e contra o assédio. Relação horizontal, afinal, não tem assédio.

Todas as estratégias empresariais de fuga do direito do trabalho foram validadas pelo STF. E, para deixar mais claro de que lado estão, ministros do tribunal frequentam reuniões lobísticas com empresas dispostas a patrocinar encontros dentro ou fora do país.

Enquanto isso, o ministro do STF, esse empreendedor individual das decisões monocráticas, dos pedidos de vista, desimpedido de julgar causas de seus parentes-advogados, desapegado do decoro e dos rituais de imparcialidade, rejeita toda regulação de seu regime de trabalho. Um emprego sem igual.


Reprodução de texto de Conrado Hübner Mendes na Folha de São Paulo.

domingo, 27 de abril de 2025

Elites que se tornaram uma caricatura


Em salões decorados com obras que ninguém sabe explicar e restaurantes onde o nome do chef vale mais que o sabor da comida servida, uma parte da elite brasileira cultua não a excelência, mas a aparência de excelência.

Entre uma taça de vinho importado e uma conversa sobre o novo destino internacional, perpetua-se uma miragem de que seu modo de vida é superior. Um modelo a ser seguido. Uma espécie de civilização paralela onde o status substitui a substância e o patrimônio serve à vaidade.

Esse viés de classe travestido de bom gosto não é inofensivo. Ao considerar suas preferências culturais, estéticas e comportamentais como universais e sinônimos de sofisticação, essa parcela da elite brasileira não apenas ignora o multiculturalismo do país, como empobrece seu próprio repertório.

O resultado são pessoas que se julgam refinadas e educadas, mas são intelectualmente rasas. Pessoas que se julgam cidadãs do mundo, mas são domesticamente alienadas. Pessoas que se julgam livres, mas estão fortemente acorrentadas ao olhar do outro.

Junta-se a isso o culto ao acúmulo material, ao networking performático, onde as interações sociais funcionam mais como uma coreografia artificial do que a constituição de uma troca genuína, as condecorações de participação distribuídas no teatro da distinção e os diversos selos de validação que alimentam a dança da exclusão.

Nesse universo particular, a vida transforma-se em uma grande vitrine. A existência passa a ser medida por métricas externas e não pelas convicções internas. Vive-se para ser visto, aprovado e aplaudido. O íntimo desaparece, substituído por uma persona cuidadosamente construída, mas essencialmente frágil.

Sim, frágil. Pois há algo profundamente decadente nessa lógica, visto que o narcisismo de classe nunca foi um sinal de força, mas um sintoma de fragilidade. É o incômodo de estar deixando de ser o centro das atenções. É a insegurança disfarçada de elegância. É também a tentativa desesperada de eternizar um modo de vida cada vez mais questionado, cada vez mais isolado, cada vez mais vazio.

Além disso, o problema é que esse narcisismo de classe está preso a uma visão curta e autorreferente. Ao projetar sua imagem como modelo, essas elites esquecem que estão olhando para um espelho, não para um país. Não veem as contradições da própria trajetória, nem reconhecem os atalhos que lhe foram oferecidos.

Há, nesse imaginário de grandeza, uma recusa sistemática ao desconforto da divergência humana. O outro... Aquele mais pobre, aquele mais escuro, aquele mais periférico... torna-se não um interlocutor, mas um problema a ser administrado, quando não manipulado.

Essa autoidolatria compromete o que deveria ser o verdadeiro papel das elites em sociedades democráticas, ou seja, o de pensar o país para além de si mesmas. Quando tudo gira em torno da própria imagem, não há espaço para a escuta, para o aprendizado coletivo, e muito menos, para a autocrítica.

A elite, então, deixa de ser liderança para se tornar uma caricatura. Um mundinho particular que se embriaga com seu próprio discurso, enquanto o mundo real pulsa lá fora com demandas que ela não sabe mais interpretar.

Essa coluna é a segunda da série que tenho feito sobre os desafios das elites. Além disso, é uma homenagem à música Gentleman, de Fela Kuti.


Reprodução de texto de Michael França na Folha de São Paulo

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Que a Páscoa etíope seja a ressurreição da paz


"Nesta alegre ocasião da Páscoa, ao celebrarmos o espírito da ressurreição, vamos abraçar a beleza de novos começos e a promessa de dias melhores pela frente". A mensagem de Abebe, historiador que conheci em Lalibela, na Etiópia, traz palavras comumente repetidas nestes dias, mas que me emocionam especialmente.

Em dezembro de 2022, quando conheci Abebe –de quem é prudente omitir o sobrenome–, fazia um ano que o Exército da Etiópia havia retomado o controle da cidade, patrimônio mundial da Unesco, depois de rebeldes da região do Tigré terem ocupado a região por seis meses.

Havia apenas um hotel aberto em Lalibela, que vive do turismo religioso desde a Idade Média, quando, no século 12, o rei Gebre Meskel Lalibela determinou que igrejas monumentais fossem esculpidas em montanhas rochosas, construindo uma Nova Jerusalém, já que a peregrinação cristã à Terra Santa era um risco com a conquista muçulmana em 1187.

Das 11 igrejas, a mais conhecida, Biete Giyorgis, de São Jorge, tem altura equivalente a de uma catedral de três andares. Mas em vez de pedra sobre pedra, a igreja foi esculpida —por homens de dia e anjos de noite—, repetem na região, em uma única rocha.

Do topo da igreja em formato de cruz, o jogo de luz e sombra nos diferentes momentos do dia, a vista das montanhas e o silêncio dos peregrinos vestidos de branco, com um tecido de algodão típico envolvendo corpos e cabeças, emocionam. A energia do lugar me lembrava a tranquilidade budista que contrastava com a escuridão de dentro das igrejas e com os kebero, tambores tocados durante as celebrações.

Para entrar no templo, tiram-se os sapatos, como faço para entrar nos barracões do candomblé; cobre-se a cabeça, como fiz em mesquitas; fui abençoada por um padre com uma cruz nas mãos, em formato diferente da que eu conhecia.

Nos dias que passei ali, éramos apenas eu, com a companhia generosa e culta de Abebe; um casal de uma mulher etíope com seu marido americano; e um grupo barulhento de jovens espanhóis. Naquela cidade toda, que recebia 50 mil turistas estrangeiros por ano antes da pandemia, éramos os únicos turistas, hospedados no único hotel em funcionamento.

Pela primeira vez na história, de março a setembro de 2020, as igrejas foram fechadas para evitar contaminações por Covid-19. Na reabertura, a guerra civil do norte do país, de novembro de 2020 a novembro de 2022, afastou os turistas de vez.

No café da manhã, uma espanhola de 20 e poucos anos perguntou se eu não tinha medo de viajar sozinha pela região instável. Eu expliquei que tinha ido ao Quênia a trabalho e aproveitava a oportunidade para conhecer um pouco do único país africano nunca colonizado pela Europa.

"E vocês?", perguntei, tentando esconder meus preconceitos. "Nós somos médicos, estamos trabalhando no atendimento das vítimas da guerra, no norte. Tiramos uma folga e viemos conhecer Lalibela. Até dias atrás, estávamos no meio da guerra, na verdade." Que vergonha, Bianca.

À distância, tenho acompanhado por Abebe o fechamento de escolas, a fome se agravar e a preocupação com novos conflitos, como uma possível guerra contra a Eritreia, que tem tomado o noticiário local.

"Que seus encontros sejam repletos de risos, sua mesa de deliciosa comida e seu coração de amor. Que você encontre paz em cada momento e alegria em cada bênção", desejou-me Abebe nesta Páscoa.

As palavras de Abebe chegaram com o sabor do Tej, vinho de mel, que carrega a fama de ter sido a bebida preferida da rainha de Sabá, e do injera —pão azedo etíope que serve de prato para carnes e vegetais, compartilhados sem o uso de talheres.

Que renasça a paz no país africano de maioria cristã desde o século 4, não por imposição colonial europeia, mas pelos vínculos comunitários e coletivistas em que viviam os primeiros cristãos.


Reprodução de texto de Bianca Santana na Folha de São Paulo

sexta-feira, 18 de abril de 2025

O que ainda leva os brasileiros a fazer turismo nos EUA?


Walt Disney World, Universal Orlando e SeaWorld. Antes o kit básico de viagem para os Estados Unidos incluía o visto B2 com validade de dez anos e ingressos para os parques temáticos. Hoje, ele vem com novos itens indispensáveis: um celular descartável sem dados sensíveis (sem fotos, redes sociais ou mensagens que possam soar antipáticas a Trump), um notebook antigo sem histórico digital, e os contatos da embaixada brasileira —precaução útil diante da possibilidade de detenção na fronteira. Também é recomendável portar cópias impressas de documentos como reserva de hotel, passagem de retorno e seguro-viagem.

Além disso, é preciso estar preparado para responder, em inglês, a uma série de perguntas sobre os seus interesses pessoais (não mostre inclinação para políticas climáticas ou de igualdade e inclusão), a sua orientação sexual, ou sobre o roteiro e os vínculos com o país de origem. Tenha cuidado para não ser confundido com um "imigrante disfarçado".

É muita ansiedade. CanadáReino UnidoAlemanhaFrança, Finlândia, Dinamarca, Irlanda, Países Baixos, Portugal, entre muitos outros países, têm emitido alertas de viagem para os Estados Unidos, recomendando cautela aos seus cidadãos devido ao endurecimento das políticas migratórias sob a atual administração norte-americana, refletidas nas mudanças nas normas de entrada e no aumento de detenções arbitrárias.

As retenções extrajudiciais, segundo dezenas de relatos pessoais divulgados pela imprensa internacional, podem se estender por várias semanas. A ICE (Immigration and Customs Enforcement), agência responsável pelo controle migratório, administra cerca de 200 centros de detenção espalhados pelos EUA.

As novas políticas fronteiriças dos EUA revelam práticas típicas de Estados repressivos e autoritários: controle de dados pessoais, detenções sem acusação formal, racismo institucionalizado e exclusão legalizada. Nos principais rankings internacionais de qualidade democrática, os Estados Unidos deixaram de estar do lado dos bons. Desde o primeiro mandato de Donald Trump, observou-se um declínio consistente nos indicadores institucionais. Segundo a Economist Intelligence Unit, os EUA deixaram de ser classificados como uma "democracia plena" e passaram à categoria de "democracia com falhas".

Voltemos ao turismo. Uma análise recente da Oxford Economics projeta uma queda de 5,1% nas viagens turísticas aos Estados Unidos, contrariando a tendência de crescimento anual observada nos últimos anos —em 2023, por exemplo, o aumento foi de 31%. Uma pesquisa divulgada esta semana revelou que 77% dos suíços não pretendem visitar os EUA devido a Donald Trump.

Em 2024, cerca de 1,9 milhão de brasileiros viajaram aos EUA, com um gasto total estimado em 6,3 bilhões de dólares. O Brasil ocupa atualmente a sexta posição entre os países que mais consomem em território norte-americano. Os EUA ocupam um imaginário de consumo e modernidade no Brasil. Ter o visto e viajar até à América é visto por parte da população como um símbolo de prestígio —uma forma de mostrar poder aquisitivo.

Para autores como Octavio Ianni, a modernidade periférica não é apenas um estágio atrasado em relação ao "centro", mas um modo particular de viver a modernidade, marcado pela tensão entre o desejo de pertencimento e a condição estrutural de subordinação. Para muitas famílias, ir à Disney se tornou um rito de passagem da classe média emergente.

Durante os anos de câmbio favorável —especialmente entre 2005 e 2014— os Estados Unidos consolidaram-se também como destino de compras para os brasileiros. Esse cenário, no entanto, mudou. A desvalorização do real, somada às políticas protecionistas implementadas durante o governo Trump —incluindo novas tarifas de importação—, tende a encarecer os bens de consumo no mercado norte-americano, reduzindo a atratividade econômica do turismo nos EUA.

Os brasileiros têm opções. O Canadá, além da segurança institucional, tem se consolidado como destino para famílias e estudantes. A Europa oferece não apenas parques temáticos —como a Disneyland Paris—, mas também roteiros culturais, históricos e gastronômicos que se tornaram mais acessíveis nos últimos anos. Entre Brasil e Portugal, há hoje 102 voos semanais ligando 13 capitais brasileiras a diferentes cidades portuguesas —uma verdadeira ponte aérea sobre o Atlântico.

A decisão de não fazer turismo nos Estados Unidos poderá, em breve, tornar-se um símbolo de consciência cívica e posicionamento político. Um gesto de recusa ativa à humilhação e à seletividade racial travestida de protocolo de segurança. O "não ir" aos EUA de Trump poderá ganhar contornos de declaração pública e de distinção social. Nesse novo mapa de prestígio, posar com sacolas na Times Square deixará de ser afirmação de classe, mas de falta dela.


Reprodução de texto de Rodrigo Tavares na Folha de São Paulo

terça-feira, 15 de abril de 2025

Uma elite que sabe muito, mas entende pouco


Em uma manhã qualquer, entre um brunch com avocado e uma conversa sobre alguma viagem à Europa, um membro de uma típica parcela da elite brasileira pode ser flagrado cometendo um erro antigo, mas ainda recorrente: confundir experiências internacionais com sofisticação, e credenciais com educação de excelência.

Já faz algum tempo que se sabe que o acúmulo de conhecimento formal não anda, necessariamente, de mãos dadas com o desenvolvimento integral do ser humano. Ainda assim, quando se trata das elites brasileiras, o tema raramente é considerado à altura de sua importância.

Talvez porque seus protagonistas ocupem posições confortáveis demais para serem questionados. Ou, quem sabe, porque a ala mais esclarecida prefira evitar o desconforto de confrontar seus pares que estão blindados pela própria soberba. No fim, uma parte peca pela ignorância, a outra, pela complacência.

Contudo, essa negligência não é acidental. Ela tem raízes profundas na lógica educacional brasileira, que, mesmo em suas melhores versões, funciona menos como instrumento de formação e mais como ornamento de distinção social.

Em vez de expandir horizontes, a educação das elites tende a ser um subterfúgio para um sofisticado mecanismo de hierarquização social. Um filtro de status. Um verniz técnico que, por vezes, encobre uma brutal ausência de interesse em construir uma nação, em vez de apenas se servir dela.

Nossos melhores colégios e universidades até formam especialistas competentes, mas, em muitos casos, deformam cidadãos. Produzem indivíduos altamente eficazes do ponto de vista técnico, mas com baixa sensibilidade social. O custo disso é alto, pois se cria uma elite treinada para administrar, mas não para compartilhar. Uma elite focada em vencer, mas não em conviver.

Existe no país uma pedagogia do privilégio. Uma pedagogia que ensina, desde cedo, que o mundo é um espaço a ser explorado, não construído coletivamente. Ensina-se a liderar, mas não a escutar. Ensina-se a performar, mas não a refletir. E, não raramente, ensina-se uma arrogância disfarçada de competência, juntamente com um desprezo pelas dores e experiências do país real. Aquele que começa logo após os altos muros dos apartamentos e condomínios fechados.

Mesmo nas franjas mais conscientes dessa elite, o problema não é o excesso de educação, mas a estreiteza com que ela é concebida. Ocorre uma formação instrumental, mas sem densidade moral. E, quando essa elite malformada ocupa os espaços de decisão, tende a perpetuar privilégios, naturalizar desigualdades e reforçar estruturas excludentes, muitas vezes com a convicção sincera de estar fazendo o melhor.

Curiosamente, falta-lhe formação para pensar o país como um todo. Além disso, parte significativa ainda vê o Brasil como uma plataforma de extração, não como uma nação a ser construída. A despeito de sua mobilidade internacional, seu imaginário segue provinciano.

Transformar a educação dessas elites exige muito mais do que reformar currículos, exige reformar consciências. Porque um país com elites mal-educadas está fadado a repetir os mesmos erros, porém em versões cada vez mais disfarçadas de excelência.

*

O título é uma homenagem à música "Colonial Mentality", de Fela Kuti.


Reprodução de texto de Michael França na Folha de São Paulo

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Guerra do petróleo usa palavras como munição


Esqueça por ora a guerra de tarifas de Trump contra a China, ou mesmo a queda de braço entre mercado e Lula/Haddad e a batalha parlamentar entre partidários e adversários de anistia para golpistas. São conflitos decisivos para o futuro próximo do mundo e do Brasil, mas que empalidecem diante das consequências de longo prazo para a humanidade da guerra do petróleo, travada com palavras.

Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, e Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama, se encolhem na trincheira das "decisões técnicas" sobre a foz do Amazonas. Alexandre Silveira, da pasta de Minas e Energia, dispara petardos como "falta de coragem" e "crime de lesa-pátria" contra a agência por postergar o licenciamento.

Rótulos têm peso estratégico no debate público. Por que não "guerra do carvão mineral, petróleo e gás natural"? Porque "guerra do petróleo", além de mais curto e contundente, mira diretamente no elemento central da ambiguidade do governo Lula no que se refere às mudanças climáticas —ou será melhor falar em crise do clima, em emergência climática?

Lula deve achar que basta reduzir desmatamento na amazônia para desfilar em Belém como estadista verde. Silveira não enxerga que insistir na anuência do Ibama antes da COP30 arrisca empanar o brilhareco do chefe desenvolvimentista. Ao menos por conveniência, poderia aguardar sete meses por seu troféu —que virá, pode anotar, porque Lula já demonstrou, com pré-sal e Belo Monte, até onde vão suas convicções ambientais.

A resistência ambientalista, parte mais fraca, fez manobra de guerrilha eficaz ao chamar de foz do Amazonas, anos atrás, a província petrolífera que almeja interditar. A ciência do clima não deixa margem para dúvida: sem zerar até 2050 emissões de carbono pela queima de combustíveis fósseis, a temperatura média da atmosfera ultrapassará 1,5ºC de aquecimento, limiar de segurança estipulado no Acordo de Paris dez anos atrás.

O ministro de Minas e Energia tenta recuperar terreno insistindo em rebatizar a foz do Amazonas como "margem equatorial" ou "Amapá águas profundas". É fato que o bloco 59 no fulcro da disputa fica a 500 km da foz propriamente dita, mas, por outro lado, está a meros 160 km de Oiapoque (AP), no litoral sensível do estado, pontilhado de manguezais.

É distância ínfima para correntes marinhas, para nada dizer da que separa a área de exploração dos centros urbanos com infraestrutura imprescindível em caso de acidentes como explosões e derramamento de óleo. O Ibama se debruça sobre essas questões para dar seu parecer, mas o ministro prefere atacá-lo com a patranha de que a renda das perfurações financiará a transição energética.

Precisamos explorar mais petróleo para acabar com a exploração do petróleo, dá para entender?

Se o governo tivesse resposta convincente, não apelaria para jogos de palavras nem jogos de guerra. Apresentaria números, metas, cronogramas e propostas concretas sobre como fará sua parte para o mundo desembarcar dos combustíveis fósseis. Mas o Plano Nacional de Transição Energética (Plante, sigla engraçadinha) está parado no MME, ora veja.

Se for só para xingar, dá para chamar de crime de lesa-humanidade.


Reprodução de texto de Marcelo Leite na Folha de São Paulo

Morre Mario Vargas Llosa, que venceu o Prêmio Nobel de Literatura, aos 89 anos


Um dos últimos nomes representativos do chamado "boom latino-americano" da literatura, Mario Vargas Llosa morreu neste domingo, aos 89 anos, em Lima. A morte foi informada por seu filho, Álvaro Vargas Llosa, nas redes sociais, no fim da noite.

"Com profunda tristeza, tornamos público que nosso pai, Mario Vargas Llosa, morreu hoje em Lima, cercado por sua família e em paz. Sua partida entristecerá seus parentes, amigos e seus leitores ao redor do mundo, mas esperamos que você encontre conforto, como nós, no fato de que ele gozou de uma vida longa, múltipla e fecunda, e deixa um trabalho que sobreviverá", afirmou Álvaro, em nota assinada junto dos irmãos, Morgana e Gonzalo.

Ainda em nota, a família informou que não haverá velório ou sepultamento abertos ao público. "Nossa mãe, nossos filhos e nós mesmos confiamos que teremos o espaço e a privacidade que necessitamos para se despedir dele. Seus restos mortais, como era seu desejo, serão cremados."

Nascido em 1936, Vargas Llosa construiu uma obra imensa, que conquistou leitores pelo mundo todo. Em 2010, ele venceu o Prêmio Nobel de Literatura, não sem antes ter abocanhado o Princesa de Astúrias, o Cervantes e o PEN. Sua obra é marcada por uma combinação obstinada entre ficção e política, em contraposição à de Gabriel García Márquez, seu colega de geração, que abandonou o realismo para mergulhar no universo do maravilhoso.

Habilidoso com as palavras, Vargas Llosa cativa o leitor desde a primeira página de seus romances. Com uma enorme facilidade de mesclar ficção e elementos da realidade, ele pôde abordar questões políticas e sociais latentes e atuais de modo literário. Em suas páginas, estão as ditaduras, a corrupção política e os conflitos sociais de toda a América Latina.

Um de seus livros mais conhecidos é "A Festa do Bode", publicado em 2000, que retrata os anos de ditadura de Rafael Trujillo na República Dominicana. Nessa obra, Vargas Llosa habilmente entrelaça a história do ditador com a vida de personagens fictícios, inspirados nas histórias de suas vítimas que não sobreviveram para contar a história. Cria-se, no livro, um retrato vívido e perturbador da tirania e suas consequências.

Outro livro, que figurava entre seus preferidos particulares, é "A Guerra do Fim do Mundo", para onde o escritor voltou as atenções e criou uma obsessão pela revolta de Canudos, no Brasil.

Além de seu trabalho como romancista, Vargas Llosa foi um prolífico ensaísta e jornalista, usando sua voz para expressar opiniões sobre diversos assuntos. Ficou conhecido por sua defesa da liberdade de expressão e dos direitos humanos e se envolveu ativamente em campanhas políticas. Meteu-se, em vários países da região, em debates locais, ao defender a eleição de um ou de outro candidato a presidente no Brasil, na Argentina e no Chile.

Curiosamente, em contraposição a suas ideias políticas nos últimos anos, mais à direita, Vargas Llosa começou a atuar na literatura e na política ao lado da Revolução Cubana. Era um aliado do castrismo até o caso de Herberto Padilla, um poeta e escritor cubano que, em 1971, começou a fazer críticas à revolução. Preso, o autor ensejou que vários intelectuais e escritores se mobilizassem por ele, inclusive Jean-Paul Sartre e Simone de Beauviour.

Vargas Llosa também foi um deles. A partir da desilusão causada por esse episódio, o peruano começou a se afastar da esquerda. Nas décadas seguintes, o escritor se viu muito envolvido na política de seu instável país, o Peru, a partir de então sempre se posicionando contra soluções consideradas populistas. Foi candidato à presidência em 1990 contra quem viria a se tornar o ditador do país, Alberto Fujimori, mas acabou perdendo a eleição.

Em 2010, Vargas Llosa recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em reconhecimento à sua contribuição excepcional para a literatura mundial. Esse prestigioso prêmio solidificou ainda mais sua posição como um dos grandes escritores contemporâneos e trouxe maior visibilidade para as suas obras. O estilo de escrita de Vargas Llosa é caracterizado por uma prosa elegante, rica em detalhes e profundamente reflexiva. Seus personagens são, em sua maioria, complexos e realistas.

Embora muitos de seus livros se passem no Peru, como "La Ciudad y Los Perros", "La Casa Verde" e "Conversación en La Catedral", a influência de Vargas Llosa transcende de forma ampla as fronteiras de seu país natal.

O impacto literário de Vargas Llosa alcança leitores em todo o mundo. Uma das disputas literárias mais conhecidas e significativas do século 20, aliás, foi a briga entre ele e García Márquez. A amizade desses dois renomados escritores teve início na década de 1960, quando faziam parte do chamado "boom latino americano". No entanto, a relação deu uma reviravolta dramática nos anos 1970, por causa de um conflito pessoal e político.

O imbróglio foi multifacetado, enraizado tanto em diferenças artísticas quanto em desacordos políticos. Seus estilos de escrita e abordagens narrativas contrastantes se tornaram fonte de contenda, com Vargas Llosa favorecendo uma abordagem mais analítica e estruturada, enquanto García Márquez abraçava o realismo mágico e um estilo que era mais lírico e expansivo.

No entanto, a disputa entre os dois autores foi além das diferenças literárias. Suas posições políticas opostas também contribuíram para a tensão em seu relacionamento. Vargas Llosa inclinava-se para a ideologia liberal, defendendo a democracia e os mercados livres, enquanto García Márquez mantinha uma afinidade maior com a política de esquerda e os princípios socialistas.

O clímax da disputa ocorreu quando eles se envolveram em uma briga física num encontro público. A razão teria sido um desentendimento por conta da mulher do peruano, Patricia Llosa, que havia sido namorada de Gabo anteriormente. Terminou com Gabo levando uma bofetada de Vargas Llosa em um cinema, diante de todos. Esse evento marcou o fim definitivo da amizade e deixou um impacto duradouro no mundo literário.

Em uma entrevista à Folha, ao ser questionado sobre a relação entre ambos, Vargas Llosa disse que jamais voltaria a falar de Gabo no plano pessoal, mas que seguiria elogiando a magnitude de suas obras. Isso seguiu fazendo depois da morte do colombiano.

A vida amorosa de Vargas Llosa foi outro elemento tão vibrante e dinâmico quanto sua carreira literária. Ao longo da vida, ele se envolveu em diversos relacionamentos românticos, alguns dos quais receberam grande atenção pública, como o affair com Isabel Preysler. Notavelmente, na década de 1950, ele se casou com sua primeira mulher, Julia Urquidi, com quem teve dois filhos. No entanto, o casamento deles terminou em divórcio, e Vargas Llosa teve outros relacionamentos.

Um dos casos de amor mais notáveis foi com sua prima por casamento, Patricia Llosa, com quem ele posteriormente se casou. O relacionamento levantou sobrancelhas e atraiu escrutínio público devido à sua natureza não convencional. Apesar das controvérsias em torno da união, Mario Vargas Llosa e Patricia Llosa permaneceram juntos e compartilharam uma vida repleta de interesses intelectuais em comum e apoio mútuo. O escritor, no entanto, se separou de Patricia há uma década e morreu solteiro. Ele deixa os seus três filhos.


Reprodução de texto se Sylvia Colombo na Folha de São Paulo.

quinta-feira, 27 de março de 2025

O Rio de Janeiro continua lendo


O Rio de Janeiro continua lendo. A frase, espetacular, não é minha, mas de meu confrade na Academia Brasileira de Letras, o poeta Antonio Carlos Secchin. Bem poderia ser o mote do "Rio Capital Mundial do Livro", a superprogramação organizada pela Unesco a cada ano numa cidade e que terá o Rio por sede a partir de 23 de abril. É a 25ª edição —algumas das outras foram em Madri, Montreal, Atenas, Buenos Aires— e a primeira numa cidade de língua portuguesa. A escolha é feita por um comitê internacional formado por federações de editores, livreiros, escritores e bibliotecas.

Durante um ano, até 23 de abril de 2026, o Rio produzirá incontáveis debates, cursos e lançamentos, distribuirá livros no transporte público e promoverá eventos em bibliotecas —só no centro da cidade há 20— e livrarias. Um ponto alto será a Bienal do Livro, em junho, que se espera ser a maior até hoje. Outra iniciativa importante, a qualificação de jovens para o mercado editorial. O objetivo de tudo isso é fomentar a literatura, a sustentabilidade do mercado e a leitura de livros, inclusive pelos meios eletrônicos.

O Rio foi escolhido pelo seu "patrimônio literário", de alcance histórico e nacional. Há 100 anos, por exemplo, já abrigava escritores de todos os estados e os acolhia nos suplementos literários de dezenas de jornais diários e revistas, mais de 30 editoras e outras tantas livrarias —a principal, a Leite Ribeiro, com um estoque de 300 mil volumes, fachada de 100 metros de extensão e vitrines iluminadas dominando o largo da Carioca. E nos gabinetes de leitura, salões de discussões, grêmios, cafés, confeitarias e qualquer lugar onde se pudesse discutir ideias. Não raro, poetas trocavam bengaladas por uma metáfora.

O país mudou, mas não de todo. O livro se sentirá em casa aqui e o resultado não se medirá somente por exemplares vendidos ou leitores conquistados, mas por um aprimoramento espiritual coletivo.

O Rio de Janeiro continua lendo porque é algo que nunca deixou de fazer.


Texto de Ruy Castro na Folha de São Paulo.

Os reacionários e a reforma do Imposto de Renda


Economista e um dos grandes intelectuais do século 20, Albert Hirschman (1915-2012) publicou em 1991 "The Rhetoric of Reaction", que viria a ser traduzido para o português como "A Retórica da Intransigência". Nessa joia de inteligência e erudição, em menos de 200 páginas ele identifica três argumentos típicos da oposição reacionária a propostas de reforma progressistas: as alegações de perversidade, futilidade e ameaça.

Assim, para os refratários às mudanças, uma reforma seria "perversa" por agravar o problema que pretenderia resolver; "fútil" por não levar a qualquer resultado palpável; e "ameaça", ao colocar em perigo outro objetivo, valor ou realização duramente conquistados.

Para ilustrar as teses da perversidade, futilidade e ameaça, Hirschman utilizou exemplos tirados da história, como a crítica de pensadores conservadores à Revolução Francesa de 1789; ao estabelecimento do sufrágio universal; e ao advento de políticas de bem-estar social. Mas não é difícil encontrar os argumentos da retórica reacionária em muitas das críticas negativas ao projeto de lei que trata de mudanças no Imposto de Renda, formulado pelo ministro Fernando Haddad e encaminhado ao Congresso pelo presidente Lula há uma semana.

Como se sabe, trata-se de dar isenção completa do tributo a quem ganhe menos de R$ 5.000 mensais e estabelecer descontos decrescentes para quem receba entre R$ 5.000 e R$ 7.000. Para compensar a arrecadação perdida, propôs-se um modesto e progressivo aumento da contribuição dos cerca de 140 mil cidadãos que ganham acima de R$ 50 mil mensais. Uma proposta moderada —há muito esperada e prometida— no rumo da distribuição mais equânime da renda.

Por ser o que é, incluir tantos contribuintes —calcula-se que possa beneficiar cerca de 10 milhões de pessoas— e focalizar a questão da desigualdade de renda, as objeções à proposta não miraram sobretudo a isenção. Os que a ela se opõem dão como certo que o Legislativo mudará para pior o capítulo da compensação.
Assim, o projeto foi criticado por suas alegadas consequências perversas para a já delicada situação fiscal e pela perda inevitável de receitas caso não se aprove a elevação dos impostos pagos pelos mais ricos. Perversos seriam também os resultados se dividendos vierem a ser taxados, criando riscos indesejáveis de evasão fiscal e fuga de capitais.

Se não se obtiver o equilíbrio entre isenção e novas receitas, previsto no texto do Executivo, haverá mais inflação, que corroerá os ganhos obtidos pelos que deixarão de pagar impostos. E a reforma, em suma, terá sido fútil. Por fim, a crítica mais radical à iniciativa diz entendê-la como ameaça à existência de uma economia bem ordenada, à medida que a isenção do Imposto de Renda também para aqueles pouco acima da linha da pobreza fortaleceria a ideia de que a população não precisa pagar impostos.

Os críticos não apresentam uma única alternativa para melhorar o projeto, sem prejuízo da meta de maior equidade. Como nos exemplos oferecidos por Hirschman, a defesa do indefensável status quo não é declarada; desfila como vaticínio dos desastres que a mudança progressista poderá trazer. Nada de novo sob o sol.


Reprodução de texto de Maria Hermínia Tavares na Folha de São Paulo

quarta-feira, 5 de março de 2025

Rubens Paiva continua aqui


Os oficiais que em janeiro de 1971 prenderam, espancaram e mataram Rubens Paiva podiam tudo.

Tanto podiam que empulharam o país por décadas, impingindo-lhe uma patranha segundo a qual ele havia sido resgatado por parceiros. Perderam. Nos últimos minutos de domingo, "Ainda Estou Aqui" levou o Oscar de melhor filme internacional.

Perderam para a memória de Eunice Paiva, sua viúva, para o livro escrito por seu filho Marcelo, para a arte de Walter Salles, para Fernanda Torres e a equipe do filme. Perderam para a memória dos povos, num momento em que o Brasil se uniu numa torcida semelhante à das vitórias da seleção brasileira de futebol. Podiam tudo e perderam.

Rubens Paiva estava na cerimônia do Oscar, num momento em que os Estados Unidos vivem um mau momento, mas a memória dos povos prevalece, muitas vezes com a arte. Nessa hora, vale lembrar o comportamento de dois diplomatas americanos naqueles dias: John Mowinckel e Richard Bloomfield, ambos lotados na embaixada, no Rio.

Mowinckel era expansivo e tinha um passado incrível. Em 1944, desembarcou na Normandia e, em junho, num jipe com o escritor Ernest Hemingway, entrou em Paris. Horas depois, ele libertou o hotel Crillon, e o outro tomou o bar do Ritz. No Rio, Mowinckel era figura fácil em boas festas e servia consomê gelado com uísque na sua barraca na praia de Ipanema, em frente ao Country Club.

Bloomfield, calvo e reservado, cuidava dos assuntos econômicos da embaixada.

Uma das filhas de Rubens Paiva telefonou-lhe, contando que o pai havia sido preso. Em 2005, ele recordaria sua reação: "Eu respondi que era um diplomata e não podia fazer nada. Até hoje lembro a decepção dela. Eu não podia fazer outra coisa".

Mas fez. No dia seguinte procurou o chefe da estação da CIA no Rio e contou-lhe o caso. "É tarde", ouviu.

A CIA sabia que Rubens Paiva estava morto. No dia 8 de fevereiro, quando o Exército sustentava que Rubens Paiva havia fugido, ele encontrou-se com Eunice Paiva e relatou a conversa num memorando ao embaixador William Rountree.

Três dias depois do encontro de Bloomfield com Eunice, Mowinckel escreveu a Rountree, dizendo que "algo deve ser feito para punir ao menos alguns desses responsáveis –punir por julgamento público".

Pelo lado americano, depois da eleição de Jimmy Carter, em 1976, o jogo virou.

Pelo lado brasileiro, até hoje, nada, salvo o constrangimento imposto ao general reformado José Antonio Belham.

Como major, ele comandava o DOI do Rio, onde Rubens Paiva foi assassinado. Há uma semana, militantes do Levante Popular da Juventude foram para a porta de sua casa com a palavra de ordem "Ainda Estamos Aqui."

Bloomfield e Mowinckel nada podiam fazer porque Rubens Paiva estava morto e também porque a embaixada americana tinha relações fraternais com a tigrada, valendo-se do seu braço militar.

Tão fraternais que, em dezembro de 1971, ao visitar os Estados Unidos, o presidente Emílio Médici fez um único pedido ao seu colega Richard Nixon: a promoção a general do adido militar, coronel Arthur Moura, um americano de ascendentes açorianos. Foi atendido.

Com Walter Salles empunhando o Oscar, ouve-se Guimarães Rosa: "As pessoas não morrem, ficam encantadas (...) O mundo é mágico".


Reprodução de texto de Elio Gaspari na Folha de São Paulo

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Livro reflete sobre morte assistida ao narrar suicídio de filósofa brasileira aos 74


"O Dia em que Eva Decidiu Morrer" traz, pela primeira vez no país, a história de uma brasileira que viajou à Suíça para exercer o direito de morrer com dignidade. O caso que aconteceu há cerca de dois anos é narrado pelo jornalista Adriano Silva em um livro-reportagem que não se furta a assumir uma posição sobre o assunto. Daí seu subtítulo: "Uma Reflexão sobre Autodeterminação e Direitos de Fim de Vida". A obra será lançada em março.

Eva —nome fictício de uma filósofa real, de 74 anos, cuja família preferiu manter no anonimato— não tinha uma doença terminal. Mas, em 2023, sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) que lhe trouxe sequelas físicas, psíquicas e intelectuais.

Ao compreender que seria incapaz de continuar a trabalhar e a viver da forma que estava acostumada, ela tomou a decisão de buscar ajuda para sua morte. Informou ao filho, que tentou convencê-la do contrário por alguns meses, mas sem desrespeitar a autodeterminação da mãe.

No fim, ele a acompanhou à Suíça, onde, com a ajuda de uma organização pelo direito à morte com dignidade, a Dignitas, Eva acionou a válvula na cânula conectada à veia de seu braço, liberando 15 gramas de sódio pentobarbital, um poderoso sedativo, em sua corrente sanguínea.

"Essa substância a conduziria ao sono profundo em poucos segundos", escreveu Silva. "Nesse estado de anestesia, sem dor nem agonia, em poucos minutos seu coração pararia de bater. Em mais alguns minutos, seu cérebro cessaria todas as funções vitais. E Eva deixaria de existir." Foi o que aconteceu.

O relato com a história de Eva —contado do ponto de vista de seu filho, Guido— está dividido em duas partes no livro e não se resume ao momento final. O autor levanta a vida da filósofa, detalha o momento em que ela teve o AVC e narra cada uma das derrotas diárias que foram mostrando para ela a impossibilidade de uma existência que considerasse digna.

Ex-diretor de redação na editora Abril, de revistas como SuperInteressante e Vida Simples, e ex-editor sênior da Exame, Silva também foi chefe de redação do Fantástico, da Rede Globo.

Com sensibilidade para descrever pessoas e sentimentos complexos, o jornalista vai além das obviedades e do maniqueísmo e apresenta personagens reais profundos, com qualidades e defeitos, tal qual seres humanos.

É uma característica que vem a calhar numa obra que discute um tabu da sociedade, como o da MVA (morte voluntária assistida), o nome que se dá quando uma pessoa decide terminar a própria vida de forma segura e com supervisão médica de modo a encerrar o sofrimento intolerável. Ela também é chamada de suicídio assistido por médico ou ajuda médica para morrer.

"Nós não estamos falando aqui, em nenhum momento, do suicídio comum ou do suicídio irracional, como é chamado. Ou seja, nós não estamos falando de uma dor existencial de uma pessoa jovem e fisicamente saudável. Isso é uma outra discussão, tem um outro encaminhamento, tem um outro tratamento. O que nós estamos falando aqui, quando se fala em direito de fim de vida, em MVA, diz respeito a três tipos de pessoa", afirma Silva, em entrevista.

"A primeira delas é que tem doença terminal ou incurável. Muitas dessas pessoas já estão num processo em que o sedativo não funciona mais, o analgésico não funciona. Então, tudo que ela tem pela frente é sofrimento bárbaro, é tortura."

"O segundo grupo de pessoas é daquelas que não têm a terminalidade, mas têm uma incapacitação grave e irreversível. É o caso da Eva, que teve esse AVC que acabou com tudo que ela sabia e gostava de fazer na vida. E a ponto de ela entender que daquele jeito não vale a pena. Aí também entram os 40 tipos de demência, que, no caso do Alzheimer, tem a sua camada extra de complexidade, porque o paciente tem que tomar a decisão enquanto ele ainda tem a consciência."

"E tem um terceiro grupo, que é o grupo do padecimento por envelhecimento avançado. Existem pessoas que, em determinado momento, 90 e muitos anos, 80 e muitos anos, 100 e poucos anos, depende de cada um, a pessoa sente que perdeu todas as condições de viver uma vida com uma qualidade que ela considera mínima, minimamente aceitável. Há dor, fadiga, cegueira, uma série de questões que podem advir com a idade. Quando a gente vive uma situação de uma população que envelhece no mundo e no Brasil, cada vez mais nós vamos ter mais pessoas nessa situação."

Segundo Silva conta no capítulo "As Palavras Certas e Como Usá-las", a MVA pode ser autoadministrada —caso de Eva, que acionou a válvula com o pentobarbital— ou administrada por terceiros, ato também chamado de eutanásia, quando a pessoa solicita que outra pessoa ministre a substância —muitas vezes por não poder fazê-lo, caso do marinheiro espanhol Ramón Sampedro, que ficou tetraplégico aos 25 e enfrentou uma batalha legal de 29 anos para ter a permissão de morrer.

Sua história, filmada por Alejandro Amenábar em "Mar Adentro", com Javier Bardem em seu papel, venceu o Oscar de filme estrangeiro em 2005. O livro elenca outros casos importantes para a causa, como a do botânico e ecologista britânico David Godall, que realizou a MVA aos 104 anos, sem doença letal, alegando "cansaço de viver". A mesma razão embasou o procedimento do cineasta francês Jean-Luc Godard, aos 91.

No Brasil, há de se lembrar do caso de Nelson Irineu Golla que, em 2014, aos 74, atendendo a pedido da esposa, Neusa, de 72, que definha após sofrer dois AVCs, abraça-se a ela com uma bomba de fabricação caseira entre os dois e a detona, em uma clínica para idosos na zona leste de São Paulo. A história está no livro-reportagem "O Último Abraço - Uma história real sobre eutanásia no Brasil", do jornalista Vitor Hugo Brandalise.

Além do capítulo "Os Fatos e Argumentos", nos quais o autor discorre a respeito de posições contrárias à MVA —como as de diversas religiões—, a legislação brasileira é dissecada em "A autodeterminação no Brasil e no mundo".

"No Brasil, a gente considera a morte uma derrota", diz Silva. "O médico sente assim, a família sente assim, e essa pessoa fica ali, sofrendo barbaramente, porque a gente não deixa a morte acontecer. Então, há o primeiro caminho, que é a distanásia, ou obstinação terapêutica, estendendo a vida a todo custo, sem se importar com as consequências para o paciente. O segundo caminho é o da ortotanásia: eu não antecipo a morte, mas eu não prolongo o processo de morrer também. Aí também entram os cuidados paliativos. Eu posso dizer que não quero intubação, não quero ressuscitamento, não quero hemodiálise. Recusar determinados tratamentos."

"O que nós não temos no Brasil? A terceira hipótese, que é você dizer o seguinte: eu não quero o tratamento, nem o paliativismo, quero ir embora agora, eu não aguento mais. Chegou. Deu. Assim eu não quero. Eu não quero ficar aqui na morfina, esperando a falência dos meus órgãos. Pô, eu já tomei essa decisão, minha existência se tornou insuportável, me deixa ir rápido e de maneira indolor."

Hoje, há 14 países nos quais a MVA é legalizada, com uma série de matizes, como a exigência ou não de terminalidade, se pode ou não ser administrada por terceiros e ainda o acolhimento ou não a estrangeiros —razão pela qual a Suíça se tornou um destino para a maioria das pessoas atrás do procedimento.

São eles: Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Alemanha, Áustria, Suíça, Espanha, Portugal, EUA (onze estados), Canadá, Equador, Colômbia, Austrália e Nova Zelândia. Outros quatro estão em vias de legalizar: Reino Unido, Itália, Cuba e Peru.

Sobre o fato de assumir uma posição sobre o assunto, Silva afirma que "não quis fazer um livro isento, no sentido de não me colocar". "Procuro ser justo e, para bem contar uma história, busco olhar por todos os ângulos. Mas eu parto do pressuposto de que uma história como essa demonstra claramente a tremenda importância de a gente não ser obrigado a morrer de forma horrível."

"Isso toca ainda numa questão minha de sempre ter sido um defensor dos direitos civis e das liberdades individuais. Então, essa me pareceu uma causa suficientemente grande para eu me engajar aos 54 anos."

Para tanto, o autor criou o site boamorte.org, num esforço de oferecer conteúdo em português sobre o tema. "Tentei colocar os principais personagens, os principais livros, os principais filmes, as principais legislações."

Ao lado da advogada Luciana Dadalto, que atua na área e direito médico, Silva está criando uma associação civil chamada Eu Decido. "Vamos montar a entidade para estruturar, não apenas a discussão sobre esse tema, mas também estruturar um pedido, uma conclamação para que o Brasil reveja sua legislação.

"A julgar pela experiência dos países que já aprovaram legislações relativas à MVA, os direitos de fim de vida costumam tomar duas ou três décadas de discussão em sociedade até ganharem força jurídica. É trabalho para uma geração", escreve o autor.

Silva, portanto, não acredita que viverá para colher os frutos de seu trabalho. Ou, melhor dizendo, não morrerá colhendo esses frutos. "Precisamos inaugurar essa conversa com urgência no país", afirma.


Reprodução de reportagem de Ivan Finotti na Folha de São Paulo