sexta-feira, 6 de junho de 2025

Para Zambelli e elite, cidadania europeia é pedigree de branquitude


É digna de nota (de repúdio, diga-se) a forma com a qual a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) vê a sua dupla nacionalidade como escudo para esquivar-se da Justiça. "Como cidadã italiana, eu sou intocável na Itália, não há o que ele possa fazer para me extraditar de um país onde eu sou cidadã", afirmou Zambelli à CNN Brasil, mostrando que, além de mentir sobre como funciona o sistema eleitoral, mente sobre como opera a lei.

A rigor, Zambelli falseia: a Constituição italiana não veda a extradição de seus cidadãos (diferentemente da brasileira no caso de cidadãos natos), sendo possível tanto o cumprimento da pena na Itália, quanto a extradição de Zambelli ao Brasil com base em tratados internacionais ratificados por ambos e avaliado o caráter criminal da conduta nos dois países. Importa, no entanto, que Zambelli faz uso da cidadania europeia por razão que não a jurídica.

Para a elite brasileira, a cidadania europeia é pedigree identitário da branquitude, ou seja, é a reivindicação de uma linhagem superior a dos demais mestiços mambembes. Salvo nos casos raros em que se busca afirmar um laço genuíno, o passaporte europeu serve como definidor de privilégios em tempos de crescente nacionalismo racista anti-imigração nos EUA e na Europa. Branquitude não é um dado objetivo, mas sim contextual. Os privilégios simbólicos e/ou materiais a que pessoas brancas têm acesso (p.ex., impunidade perante a lei) estão condicionados a se estas são lidas como tais (aqui vale ler Cida Bento e Lia Schucman).

A asserção da branquitude europeia não vem sem contradições internas. Irrita a branquitude brasileira pisar nos EUA e ser vista como latina (e, portanto, não branca) e, assim, ser submetida às indignidades a que outros, com menos atenção, são submetidos diariamente.

Irritará Zambelli perceber que nem sua linhagem europeia a protegerá de ser responsabilizada por tentativa de golpe de Estado, mesmo na nação que se esforça para não prender pessoas brancas e que prende funkeiros pretos com alarde cinematográfico.


Reprodução de texto de Thiago Amparo na Folha de São Paulo.

domingo, 1 de junho de 2025

Defesa de liberdade de expressão por Musk, Bolsonaro e Trump era estelionato


A liberdade de expressão está sob ataque nos Estados Unidos. Trump está destruindo a autonomia universitária, prendendo estudantes por suas opiniões políticas e ameaçando recusar visto de entrada no país para quem criticar seu governo em redes sociais.

A culpa dessa ofensiva autoritária é de quem ficou do lado dos Elon Musks desse mundo, contra os Alexandres de Moraes desse mundo, dizendo que defendia a liberdade de expressão.

Se você fez escândalo quando as contas golpistas em redes sociais foram suspensas em 2022, lamento, foi você quem prendeu os jovens estudantes americanos pró-Palestina. Se você deu razão aos bolsonaristas contra Alexandre de Moraes, você declarou guerra a Harvard. Se você disse que Elon Musk tinha razão contra o STF brasileiro, ou se opôs aos "fact-checkers", você é pessoalmente responsável pelo estabelecimento de censura política na concessão de vistos americanos.

Lá, como aqui, a questão sempre foi simples: há movimentos poderosos que buscam destruir a democracia. O bolsonarismo aqui, o trumpismo lá. Quando as instituições democráticas reagiram, você ficou do lado de quem?

Do ponto de vista prático, é só isso que interessa, filho. Você achar que agiu por princípio não importa, seu apego à performance "acima da polarização" não importa. Se você ficou com Jair, Musk ou Trump, você trabalhou pelo autoritarismo de Trump e por coisas infinitamente mais violentas que teriam acontecido no Brasil se o golpe de Bolsonaro tivesse sido bem-sucedido.

Você o fez brincando de jogar "liberdade de expressão" no modo "easy", como se jogava 30 anos atrás, antes da emergência de movimentos autoritários de massa com penetração institucional fortíssima e capacidade real de ameaçar a democracia.

Alguns anos atrás, participei de um debate sobre Alexandre de Moraes com Glenn Greenwald, colunista desta Folha. Como advogado, Greenwald, que é judeu, defendeu os direitos de um militante neonazista. A pergunta que Glenn nunca me respondeu é a seguinte: até que mês de 1933 ele ainda defenderia os direitos dos nazistas se estivesse em Berlim? E se os "stakes" não fossem só o risco de um idiota ofender gente no Twitter, mas o risco de vitória de um movimento poderoso que destruiria a democracia?

Vale conferir o que estão fazendo os críticos do STF diante da ofensiva liberticida trumpista.

Na semana passada o deputado Nikolas Ferreira deu seu apoio à censura trumpista contra alunos que querem estudar nas universidades americanas ("comunistinhas de meia-tigela"). Google e Meta, as "vítimas" da regulação, participaram do seminário de comunicação do Partido Liberal, a principal organização autoritária brasileira, e ouviram de Jair Bolsonaro que "estão do lado certo". O próprio governo Trump, culpado dos crimes listados no primeiro parágrafo, ameaça punir o STF brasileiro pela defesa da democracia. Musk fazia parte do governo Trump até a semana passada.

O exemplo americano mostra que a defesa da liberdade de expressão pela extrema direita de Musk, Bolsonaro e Trump era estelionato. Se você caiu nessa, fica a dica: da próxima vez que te chamarem para defender o direito de marchar, não custa nada abrir a janela e checar se os fascistas estão marchando sobre Roma.


Reprodução de texto de Celso Rocha de Barros na Folha de São Paulo

A luta palestina no futebol


No dia 5 de junho, a seleção da Palestina de futebol enfrentará, como visitante, a do Kuwait, pelas eliminatórias asiáticas da Copa do Mundo de 2026, na América do Norte.

São mínimas as chances de classificação, a começar pelo fato de os palestinos não poderem jogar em casa, no seu estádio em Jerusalém, por causa do genocídio imposto pelo Estado de Israel, cuja seleção disputa as eliminatórias europeias, expulsa que foi da federação asiática de futebol em 1974, como punição aos seus crimes de guerra.

A partir de 1991, a Uefa admitiu a entrada de Israel como se fosse país europeu.

Na penúltima convocação da seleção palestina, em março, um vídeo comoveu os torcedores pelo mundo afora.

Crianças são mostradas, em meio aos escombros de Gaza arrasada, com fotos de três dos jogadores selecionados.

O vídeo termina com as crianças saindo de uma sala de aula improvisada para ir jogar futebol enquanto as demais fotos dos convocados são penduradas em uma das traves.

Segundo as informações da federação de futebol palestina, mais de 600 atletas já foram mortos pelos ataques terroristas das tropas do nazistoide Netanyahu, o que torna impossível competir em igualdade de condições.

E sem que a Fifa suspenda Israel das competições internacionais, diferentemente do que faz com a Rússia pela invasão na Ucrânia.

Aos que fazem da desonestidade intelectual seu modo de ser e argumentar, notem a rara leitora e o raro leitor que aqui não se defende a seleção do Hamas, mas a punição aos terroristas de qualquer origem.

Defender o genocídio é simplesmente criminoso, calar-se diante dele é cumplicidade —e é estarrecedor o silêncio de entidades como a Conib e as diversas federações israelitas espalhadas pelo Brasil.

"O que estamos fazendo em Gaza agora é uma guerra de devastação: matança indiscriminada, ilimitada, cruel e criminosa de civis. Não estamos fazendo isso por perda de controle em algum setor específico, nem por algum ímpeto desproporcional de alguns soldados em alguma unidade. Em vez disso, é o resultado de uma política governamental, ditada de forma consciente, perversa, maliciosa e irresponsável. Sim, Israel está cometendo crimes de guerra."

As palavras, publicadas no jornal israelense Haaretz, são de Ehud Olmert, que foi primeiro-ministro de Israel entre 2006 e 2009 e é ex-membro do Likud, o partido do terrorista Netanyahu.

Ou seja, de direita, além de ter cumprido pena durante 19 meses por corrupção, acusado de ter recebido suborno quando prefeito de Jerusalém.

Até ele tomou vergonha na cara.

A Fifa, e outras entidades aqui citadas, não!


Reprodução de parte da coluna de Juca Kfouri na Folha de São Paulo.

sábado, 31 de maio de 2025

Marcel Ophuls e a lenda da França resistente


Ao fim das quatro horas e meia de "A Tristeza e a Piedade", Anthony Eden, o primeiro-ministro inglês, se recusa polidamente a julgar a atitude dos franceses frente aos nazistas: "Como não sofremos os horrores da ocupação, não temos esse direito". Compreende-se: não era de bom-tom notar que a França em peso havia colaborado com a barbárie.

A Pátria das Luzes adotou por livre vontade leis racistas mais depravadas que as da Alemanha. Campos de concentração brotaram na Terra dos Direitos Humanos por iniciativa de Paris, não de Berlim. A Filha da Igreja deportou 75 mil judeus para Auschwitz, e só 5% sobreviveram.

O que passou, passou: não dá para mudar a história. O que às vezes muda é a percepção do passado. Por isso "A Tristeza e a Piedade", de Marcel Ophuls, é um filme único: reconfigurou a imagem que um povo fazia de si, trincou o espelho no qual os franceses se admiravam.

Judeu, Ophuls nasceu na Alemanha, de onde sua família fugiu para Paris quando os nazistas avançaram. Escapou de novo anos depois, dessa vez dos colaboracionistas —os "colabôs"—, e se exilou em Hollywood.

Em 1968, filmou o documentário cujo subtítulo o resume: "Crônica de uma Cidade Francesa sob a Ocupação"; no caso, Clermont-Ferrand, burgo médio no meio do hexágono, súmula do modo de ver e viver da França profunda.

Entrevistou dezenas de testemunhas da Ocupação, de incontáveis profissões. A cabeleireira conta que amava Pétain. O oficial alemão reclama que os partisans não usavam uniforme. Gay, o espião inglês revela que namorou um soldado da Wehrmacht. O trabalhador torturado pela Gestapo sabe quem o delatou, mas não diz seu nome porque "seria se igualar a ele".

O campeão de ciclismo não se lembra de ter visto alemães em Clermont-Ferrand, e em seguida o farmacêutico recorda que "a cidade estava cheia de alemães de capacete". O aristocrata explica por que se alistou na SS: queria enfrentar comunistas no front soviético. O comerciante Marius Klein admite que publicou um anúncio classificado informando que era católico: "Não queria que pensassem que sou judeu".

Mendès-France, socialista, judeu e ex-primeiro-ministro, conta a fuga da cadeia. Depois de dias de ginástica —"eu não era esportivo"—, subiu no muro do presídio para pular na rua. Como um casal de namorados estava embaixo, esperou, esperou, esperou: "Ele tinha ideias precisas e ela não se decidia". Depois de muita conversa, a moça concordou. Mendès-France gostaria de os reencontrar, para comentar a "audácia" dele e a "indecisão" dela naquela noite tão especial para os três. Suspira: "O amor, a sorte, a fuga". É sublime.

Intercalados por trechos de cinejornais alemães e franceses, os depoimentos formam um mosaico. A trilha sonora desmente as imagens, e uma fala contradiz a anterior. Não há parti pris, mas fica cristalino que o grosso dos franceses não se importava. Fora da família, que se danem todos, pensavam. Por isso colaboraram com os boches.

Até então, vigia a versão de De Gaulle. Desde que se exilara em Londres, apregoava que Vichy era uma fraude e a França era ele. O Partido Comunista abonava a mentira porque apoiara o pacto Stálin-Hitler, e só veio se integrar à Resistência um ano depois da Ocupação.

O documentário afrontou a lenda. O diretor da estação de TV que financiara parte de "A Tristeza e a Piedade" contou a De Gaulle como era o filme. O comentário do general, nunca admitido nem desmentido, teria sido "A França não precisa de verdades, precisa de esperança".

Proibido na televisão, o filme passou no cinema em 1971, mas só no Saint-Séverin, no Quartier Latin. Todos os dias, 500 pessoas ficavam fora da sala, tal o afluxo. Depois de décadas de polêmicas e pesquisas —como as do historiador americano Robert Paxton no livro "Vichy France"—, o documentário se impôs.

Ele chegou à televisão só em 1981. Em 1995, o presidente Jacques Chirac admitiu o papel ignóbil da França nas torturas, deportações e assassinatos. Marcel Ophuls morreu no sábado passado (24). Tinha 97 anos.

Ele dizia não acreditar na culpa coletiva, e sim na responsabilidade individual. Ao dar a palavra a indivíduos –heróis, homicidas, cúmplices–, "A Tristeza e a Piedade" mudou o modo de encarar a Ocupação.

Não mudou a história porque, repita-se, o que passou, passou para sempre. Tampouco ele influi no presente: como reza o aforismo de Santayana, comprovado diariamente por Israel em Gaza, "aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo".


Reprodução de texto de Mario Sergio Conti na Folha de São Paulo.

domingo, 25 de maio de 2025

Sobre racismo. Ruth Gilmore e Édouard Louis


"Quando lhe perguntam que significado a palavra 'racismo' tem para ela, a intelectual americana Ruth Gilmore responde que racismo é a exposição de algumas populações a uma morte prematura.

Essa definição funciona também para o machismo, a homofobia ou a transfobia, a dominação de classe e para todos os fenômenos de opressão social e política. Se considerarmos a política como o governo de seres vivos por outros seres vivos e a existência de indivíduos dentro de uma comunidade que não escolheram, então política é a distinção entre populações com a vida sustentada, encorajada, protegida, e populações expostas à morte, à perseguição, ao assassinato."


Copiado de O Pensador.

Israel do rio ao mar


Às vésperas de completar 600 dias, a guerra em Gaza só piora. As atrocidades de hoje são maiores que as de ontem e menores que as de amanhã. Mais de 51 mil palestinos já morreram, incluindo 15.506 crianças e 916 bebês de menos de um ano. São cifras defasadas: Israel matou mais 29 meninas e meninos na quinta-feira (22).

A contagem é feita pelo Ministério da Saúde local, que, se não diferencia vítimas civis das militares, dá o nome de todas. Como o Hamas o dirige, Israel diz que as cifras mentem, mas oculta quantos cadáveres produziu. Tampouco autoriza a entrada de jornalistas no enclave.

Nem por isso Gaza é indevassável. Há vídeos de repórteres que moram ali e fotos de satélite. As imagens dos últimos dias mostram a agonia de crianças esquálidas e olhos saltados. Moleques de nariz escorrendo que estendem panelas vazias a adultos perplexos. Ruínas e mais ruínas

Como fundo sonoro para os filmes da fome, Netanyahu e seus ministros proclamaram que tanques tomarão territórios; os palestinos serão chutados para os quintos; Gaza será governada por eles. Nada de dois Estados, será Israel do rio ao mar, do Jordão ao Mediterrâneo.

Até os governos europeus protestaram. Pode ter sido um revide extraoficial às críticas, ou os soldados israelenses estavam distraídos, o fato é que mandaram bala em diplomatas europeus que entraram em Gaza. A resposta oficial foi a cabala de sempre: quem contesta a matança é antissemita.

O aluvião de críticas refluiu graças a um terrorista norte-americano. Assim que ele fuzilou um casal de funcionários israelenses, Netanyahu gritou que seus críticos eram cúmplices de "assassinos em massa, estupradores, matadores de bebês e sequestradores". Gastou mais tempo difamando Macron do que censurando o assassino em Washington.

O discurso tétrico lembrou o verso de W.H. Auden que fala da "fria e controlada ferocidade da espécie humana". O poeta também foi lembrado por ser o autor de "Espanha, 1937", a "Guernica" literária da Guerra Civil Espanhola, o canto que cata os cacos dos combates e os atira ao futuro. Ele parece se referir a Gaza, às angústias de agora.

Aos 30 anos, Auden era uma das figuras mais estimadas da esquerda britânica. Como Hemingway, engajou-se nas Brigadas Internacionais e foi defender a República na Guerra Civil. Na volta, escreveu "Espanha, 1937", que logo estava em todas as bocas.

Houve quem o criticasse. Orwell, um dos primeiros, fixou-se no verso "a aceitação consciente da culpa quando é necessário assassinar". Amigos judeus dizem algo parecido: a morte de inocentes horroriza, mas é necessária para proteger Israel, temos consciência disso.

O autor de "1984" acusou Auden de escrever com essa dureza porque "nunca cometera um assassinato, nenhum de seus amigos fora assassinado, talvez nunca tenha visto o cadáver de alguém assassinado".

Orwell, que também fora à Espanha, tomara um tiro no pescoço e vira pilhas de mortos, disse que "não escreveria com leveza sobre homicídios". A primeira crítica, pois: Auden falava do que não sabia, compunha versos abstratos para falar de mortes concretas, fingia emoções.

"Eu não falaria levianamente sobre assassinatos", continuou. "Para mim, o homicídio deve ser evitado. Qualquer pessoa comum acha isso." Pegou pesado: "Os Hitler e os Stálin acham a morte necessária, mas não propagandeiam sua insensibilidade". Segunda crítica, então: "Espanha, 1937" era irresponsável, amoral, insensível.

Auden mudou-se para Nova York e estava lá no dia em que Hitler invadiu a Polônia e deflagrou a Segunda Guerra Mundial. Rascunhou no balcão de um bar da rua 52 talvez a mais famosa das suas obras, "1º de Setembro de 1939". Ela diz:

"O povo todo sabe, até eu,
O que toda criança aprende:
Aquele a quem se faz o mal
Revidará, e mais mal fará"

O povo todo sabe que os palestinos revidarão o mal de que são vítimas, e os israelenses se vingarão do mal que lhes é feito. Apesar do encadeamento categórico de maldade e revanche, o poema propõe: "Amemos uns aos outros ou morreremos". Na época, Auden se afastava do marxismo e se aproximava do cristianismo, o que pode explicar o verso.

O poeta veio a voltar atrás e abjurou tanto "Espanha, 1937" como "1º de Setembro de 1939". Justificou-se: eram poemas "desonestos", expressavam "sentimentos e crenças que seu autor nunca teve", uma evidente inverdade.

Nenhuma guerra satisfaz a todos, há vencedores e vencidos. A força faz com que uns ganhem e outros percam. A força, não a poesia.


Reprodução de texto de Mario Sergio Conti na Folha de São Paulo

domingo, 18 de maio de 2025

Direita discute se Tarcísio será um bebê Jair reborn ou um bebê Temer reborn


Na semana passada correu a notícia de que o ex-presidente Michel Temer estava tentando organizar uma candidatura de "centro-direita" com quatro governadores que certamente anistiarão o Jair se forem eleitos presidente (TarcísioCaiadoZema e Ratinho Jr.) e Eduardo Leite, que não sabemos se anistiaria.

A ideia seria discutir a candidatura a partir de um programa semelhante ao contido no documento "Ponte para o Futuro", manifesto que garantiu apoio da elite ao impeachment de Dilma.

Ao que parece, Temer estava tentando enquadrar o movimento de direita que já se articula para 2026 em outros termos: com Eduardo Leite ali na cota para não golpistas e, o que é mais importante, sem mencionar o Jair.

O candidato até poderia ser o mesmo, Tarcísio de Freitas. Porém, Tarcísio seria um bebê reborn com a cara do Temer, não com a cara do Jair.

Os bolsonaristas ficaram indignadíssimos. Fabio Wajngarten ameaçou lançar uma chapa puro-sangue de extrema direita. Malafaia disse que, sem Jair, a candidata deveria ser Michelle. Wajngarten, em conversa com Mauro Cid descoberta pela polícia, já havia dito que preferia Lula a Michele. Flávio Bolsonaro ficou mais chocado com Temer do que teria ficado se o cara que lhe vendeu a mansão lhe tivesse perguntado de onde saiu tanto dinheiro vivo. Tarcísio se apressou em dizer que não existe direita sem Bolsonaro, o que, se você pedir para o Google traduzir para o português, quer dizer "au, au".

Foi o suficiente para Temer recuar e dizer que Bolsonaro pode perfeitamente participar da frente de centro-direita. Afinal, no Brasil "centro" é só o negócio em que os ricos querem votar.

Também chamou atenção o pouco entusiasmo entre os governadores com a ideia de um "Ponte para o Futuro 2".

Não é por acaso: "Ponte" foi um bom manifesto para o impeachment, que não dependia de voto popular. Para ganhar eleição, desde 2018 o plano é falar de liberalismo em evento empresarial e concentrar a campanha em pautas de costumes e disseminação de notícias falsas no grupo de zap da Igreja. Esse é o grande fascínio que o bolsonarismo exerce sobre os ricos: é uma estratégia de ganhar voto de pobre sem precisar aumentar salário.

Seria ótimo se os governadores de direita se distanciassem do golpismo, mas nem nesse aspecto a articulação de Temer era muito promissora.

Michel Temer chegou à presidência em 2016 ao fim de um processo de impeachment que muita gente até hoje considera um golpe.

Quando Jair tentou um golpe de manual, indiscutível, Temer poderia ter limpado um pouco sua barra dizendo: olha só, isso aí, sim, é golpe. Eu não tentei matar a Dilma como o Jair tentou matar o Lula, o Alckmin, o Xandão. Eu não apresentei aos chefes das Forças Armadas uma proposta de destruição de todas as liberdades democráticas. Eu não tentei explodir o aeroporto de Brasília na véspera de Natal, eu não mandei o Eduardo Cunha e o Geddel quebrarem tudo na praça dos Três Poderes.

Ao invés de usar esse argumento, Michel resolveu dizer que tudo isso que o Jair fez também não foi golpe. Aí fica difícil, filho.

Enfim, a discussão sobre se Tarcísio será um bebê Jair reborn ou um bebê Temer reborn confirmou que a direita brasileira continua fortíssima, mas ainda não parou de piorar.


Reprodução de texto de Celso Rocha de Barros publicado na Folha de São Paulo.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

STF homenageia o trabalhador brasileiro


Nesse 1º de maio de 2025, trabalhador, o STF gostaria de lembrar o que fez por você nos últimos anos.

A Constituição de 1988 garantiu, no artigo 7º, direitos como salário mínimo, férias, décimo terceiro, licença-maternidade, proteção contra acidentes, proibição da discriminação. Decorrem da pedra fundamental do direito do trabalho: a relação de emprego, que supõe subordinação e continuidade.

Para esvaziar a Constituição sem mudar o texto da Constituição, o tribunal premiou você, trabalhador, com a eliminação gradual de garantias elementares da sua vida econômica. E incentiva fraudes ao conceito de "relação de emprego".

No seu dia, trabalhador, vale recordar dez prêmios que lhe foram concedidos:

1. O STF inventou a prevalência da negociação sobre a lei. Patrão e empregado podem entrar num "acordo" contra a lei. Permitiu que esse acordo assimétrico tenha tratamento de contrato civil qualquer. A lei trabalhista torna-se facultativa.

2. Inventou também a prevalência do contrato sobre a realidade. Se o trabalhador assinou um papel, mas na realidade pratica atividades diferentes do combinado, prevalece o que estava escrito.

3. O STF ampliou conceito de terceirização previsto na reforma trabalhista. A lei definia requisitos como a autonomia na prestação de serviços terceirizados. Foram abolidos.

4. O STF equiparou terceirização, em que ainda restam ao trabalhador certos direitos, a pejotização, na qual o trabalhador vira uma empresa. E eliminou a isonomia entre trabalhadores terceirizados e empregados.

5. O STF atribuiu aos terceirizados do serviço público o ônus de provar que a administração pública não fiscalizou empresas contratadas.

6. Rumo à era pré-moderna, o STF permite ao direito civil regular relações de trabalho. E veja só: com a proposta de reforma do Código Civil, essa relação pode perder até a proteção do contrato civil (como o equilíbrio do contrato, a boa-fé e a premissa de cooperação entre as partes), e se tornar uma figura nova, o "contrato empresarial".

Agora você é empresário, trabalhador. Suas relações são de igual para igual.

7. O STF liberou grandes corporações como Uber e iFood para contratar esse empresário de si mesmo sem responsabilidade trabalhista ou previdenciária.

8. A Justiça do Trabalho tornou-se, por arte do STF, Justiça a ser combatida, não aperfeiçoada. E o STF, sua instância revisora, mesmo que não haja controvérsia constitucional.

9. Se almeja reconhecer vínculo empregatício, trabalhador, a porta da Justiça do Trabalho foi fechada.

10. Para a mulher trabalhadora-empresária, o STF acabou de lhe tirar proteção à maternidade e contra o assédio. Relação horizontal, afinal, não tem assédio.

Todas as estratégias empresariais de fuga do direito do trabalho foram validadas pelo STF. E, para deixar mais claro de que lado estão, ministros do tribunal frequentam reuniões lobísticas com empresas dispostas a patrocinar encontros dentro ou fora do país.

Enquanto isso, o ministro do STF, esse empreendedor individual das decisões monocráticas, dos pedidos de vista, desimpedido de julgar causas de seus parentes-advogados, desapegado do decoro e dos rituais de imparcialidade, rejeita toda regulação de seu regime de trabalho. Um emprego sem igual.


Reprodução de texto de Conrado Hübner Mendes na Folha de São Paulo.

domingo, 27 de abril de 2025

Elites que se tornaram uma caricatura


Em salões decorados com obras que ninguém sabe explicar e restaurantes onde o nome do chef vale mais que o sabor da comida servida, uma parte da elite brasileira cultua não a excelência, mas a aparência de excelência.

Entre uma taça de vinho importado e uma conversa sobre o novo destino internacional, perpetua-se uma miragem de que seu modo de vida é superior. Um modelo a ser seguido. Uma espécie de civilização paralela onde o status substitui a substância e o patrimônio serve à vaidade.

Esse viés de classe travestido de bom gosto não é inofensivo. Ao considerar suas preferências culturais, estéticas e comportamentais como universais e sinônimos de sofisticação, essa parcela da elite brasileira não apenas ignora o multiculturalismo do país, como empobrece seu próprio repertório.

O resultado são pessoas que se julgam refinadas e educadas, mas são intelectualmente rasas. Pessoas que se julgam cidadãs do mundo, mas são domesticamente alienadas. Pessoas que se julgam livres, mas estão fortemente acorrentadas ao olhar do outro.

Junta-se a isso o culto ao acúmulo material, ao networking performático, onde as interações sociais funcionam mais como uma coreografia artificial do que a constituição de uma troca genuína, as condecorações de participação distribuídas no teatro da distinção e os diversos selos de validação que alimentam a dança da exclusão.

Nesse universo particular, a vida transforma-se em uma grande vitrine. A existência passa a ser medida por métricas externas e não pelas convicções internas. Vive-se para ser visto, aprovado e aplaudido. O íntimo desaparece, substituído por uma persona cuidadosamente construída, mas essencialmente frágil.

Sim, frágil. Pois há algo profundamente decadente nessa lógica, visto que o narcisismo de classe nunca foi um sinal de força, mas um sintoma de fragilidade. É o incômodo de estar deixando de ser o centro das atenções. É a insegurança disfarçada de elegância. É também a tentativa desesperada de eternizar um modo de vida cada vez mais questionado, cada vez mais isolado, cada vez mais vazio.

Além disso, o problema é que esse narcisismo de classe está preso a uma visão curta e autorreferente. Ao projetar sua imagem como modelo, essas elites esquecem que estão olhando para um espelho, não para um país. Não veem as contradições da própria trajetória, nem reconhecem os atalhos que lhe foram oferecidos.

Há, nesse imaginário de grandeza, uma recusa sistemática ao desconforto da divergência humana. O outro... Aquele mais pobre, aquele mais escuro, aquele mais periférico... torna-se não um interlocutor, mas um problema a ser administrado, quando não manipulado.

Essa autoidolatria compromete o que deveria ser o verdadeiro papel das elites em sociedades democráticas, ou seja, o de pensar o país para além de si mesmas. Quando tudo gira em torno da própria imagem, não há espaço para a escuta, para o aprendizado coletivo, e muito menos, para a autocrítica.

A elite, então, deixa de ser liderança para se tornar uma caricatura. Um mundinho particular que se embriaga com seu próprio discurso, enquanto o mundo real pulsa lá fora com demandas que ela não sabe mais interpretar.

Essa coluna é a segunda da série que tenho feito sobre os desafios das elites. Além disso, é uma homenagem à música Gentleman, de Fela Kuti.


Reprodução de texto de Michael França na Folha de São Paulo

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Que a Páscoa etíope seja a ressurreição da paz


"Nesta alegre ocasião da Páscoa, ao celebrarmos o espírito da ressurreição, vamos abraçar a beleza de novos começos e a promessa de dias melhores pela frente". A mensagem de Abebe, historiador que conheci em Lalibela, na Etiópia, traz palavras comumente repetidas nestes dias, mas que me emocionam especialmente.

Em dezembro de 2022, quando conheci Abebe –de quem é prudente omitir o sobrenome–, fazia um ano que o Exército da Etiópia havia retomado o controle da cidade, patrimônio mundial da Unesco, depois de rebeldes da região do Tigré terem ocupado a região por seis meses.

Havia apenas um hotel aberto em Lalibela, que vive do turismo religioso desde a Idade Média, quando, no século 12, o rei Gebre Meskel Lalibela determinou que igrejas monumentais fossem esculpidas em montanhas rochosas, construindo uma Nova Jerusalém, já que a peregrinação cristã à Terra Santa era um risco com a conquista muçulmana em 1187.

Das 11 igrejas, a mais conhecida, Biete Giyorgis, de São Jorge, tem altura equivalente a de uma catedral de três andares. Mas em vez de pedra sobre pedra, a igreja foi esculpida —por homens de dia e anjos de noite—, repetem na região, em uma única rocha.

Do topo da igreja em formato de cruz, o jogo de luz e sombra nos diferentes momentos do dia, a vista das montanhas e o silêncio dos peregrinos vestidos de branco, com um tecido de algodão típico envolvendo corpos e cabeças, emocionam. A energia do lugar me lembrava a tranquilidade budista que contrastava com a escuridão de dentro das igrejas e com os kebero, tambores tocados durante as celebrações.

Para entrar no templo, tiram-se os sapatos, como faço para entrar nos barracões do candomblé; cobre-se a cabeça, como fiz em mesquitas; fui abençoada por um padre com uma cruz nas mãos, em formato diferente da que eu conhecia.

Nos dias que passei ali, éramos apenas eu, com a companhia generosa e culta de Abebe; um casal de uma mulher etíope com seu marido americano; e um grupo barulhento de jovens espanhóis. Naquela cidade toda, que recebia 50 mil turistas estrangeiros por ano antes da pandemia, éramos os únicos turistas, hospedados no único hotel em funcionamento.

Pela primeira vez na história, de março a setembro de 2020, as igrejas foram fechadas para evitar contaminações por Covid-19. Na reabertura, a guerra civil do norte do país, de novembro de 2020 a novembro de 2022, afastou os turistas de vez.

No café da manhã, uma espanhola de 20 e poucos anos perguntou se eu não tinha medo de viajar sozinha pela região instável. Eu expliquei que tinha ido ao Quênia a trabalho e aproveitava a oportunidade para conhecer um pouco do único país africano nunca colonizado pela Europa.

"E vocês?", perguntei, tentando esconder meus preconceitos. "Nós somos médicos, estamos trabalhando no atendimento das vítimas da guerra, no norte. Tiramos uma folga e viemos conhecer Lalibela. Até dias atrás, estávamos no meio da guerra, na verdade." Que vergonha, Bianca.

À distância, tenho acompanhado por Abebe o fechamento de escolas, a fome se agravar e a preocupação com novos conflitos, como uma possível guerra contra a Eritreia, que tem tomado o noticiário local.

"Que seus encontros sejam repletos de risos, sua mesa de deliciosa comida e seu coração de amor. Que você encontre paz em cada momento e alegria em cada bênção", desejou-me Abebe nesta Páscoa.

As palavras de Abebe chegaram com o sabor do Tej, vinho de mel, que carrega a fama de ter sido a bebida preferida da rainha de Sabá, e do injera —pão azedo etíope que serve de prato para carnes e vegetais, compartilhados sem o uso de talheres.

Que renasça a paz no país africano de maioria cristã desde o século 4, não por imposição colonial europeia, mas pelos vínculos comunitários e coletivistas em que viviam os primeiros cristãos.


Reprodução de texto de Bianca Santana na Folha de São Paulo

sexta-feira, 18 de abril de 2025

O que ainda leva os brasileiros a fazer turismo nos EUA?


Walt Disney World, Universal Orlando e SeaWorld. Antes o kit básico de viagem para os Estados Unidos incluía o visto B2 com validade de dez anos e ingressos para os parques temáticos. Hoje, ele vem com novos itens indispensáveis: um celular descartável sem dados sensíveis (sem fotos, redes sociais ou mensagens que possam soar antipáticas a Trump), um notebook antigo sem histórico digital, e os contatos da embaixada brasileira —precaução útil diante da possibilidade de detenção na fronteira. Também é recomendável portar cópias impressas de documentos como reserva de hotel, passagem de retorno e seguro-viagem.

Além disso, é preciso estar preparado para responder, em inglês, a uma série de perguntas sobre os seus interesses pessoais (não mostre inclinação para políticas climáticas ou de igualdade e inclusão), a sua orientação sexual, ou sobre o roteiro e os vínculos com o país de origem. Tenha cuidado para não ser confundido com um "imigrante disfarçado".

É muita ansiedade. CanadáReino UnidoAlemanhaFrança, Finlândia, Dinamarca, Irlanda, Países Baixos, Portugal, entre muitos outros países, têm emitido alertas de viagem para os Estados Unidos, recomendando cautela aos seus cidadãos devido ao endurecimento das políticas migratórias sob a atual administração norte-americana, refletidas nas mudanças nas normas de entrada e no aumento de detenções arbitrárias.

As retenções extrajudiciais, segundo dezenas de relatos pessoais divulgados pela imprensa internacional, podem se estender por várias semanas. A ICE (Immigration and Customs Enforcement), agência responsável pelo controle migratório, administra cerca de 200 centros de detenção espalhados pelos EUA.

As novas políticas fronteiriças dos EUA revelam práticas típicas de Estados repressivos e autoritários: controle de dados pessoais, detenções sem acusação formal, racismo institucionalizado e exclusão legalizada. Nos principais rankings internacionais de qualidade democrática, os Estados Unidos deixaram de estar do lado dos bons. Desde o primeiro mandato de Donald Trump, observou-se um declínio consistente nos indicadores institucionais. Segundo a Economist Intelligence Unit, os EUA deixaram de ser classificados como uma "democracia plena" e passaram à categoria de "democracia com falhas".

Voltemos ao turismo. Uma análise recente da Oxford Economics projeta uma queda de 5,1% nas viagens turísticas aos Estados Unidos, contrariando a tendência de crescimento anual observada nos últimos anos —em 2023, por exemplo, o aumento foi de 31%. Uma pesquisa divulgada esta semana revelou que 77% dos suíços não pretendem visitar os EUA devido a Donald Trump.

Em 2024, cerca de 1,9 milhão de brasileiros viajaram aos EUA, com um gasto total estimado em 6,3 bilhões de dólares. O Brasil ocupa atualmente a sexta posição entre os países que mais consomem em território norte-americano. Os EUA ocupam um imaginário de consumo e modernidade no Brasil. Ter o visto e viajar até à América é visto por parte da população como um símbolo de prestígio —uma forma de mostrar poder aquisitivo.

Para autores como Octavio Ianni, a modernidade periférica não é apenas um estágio atrasado em relação ao "centro", mas um modo particular de viver a modernidade, marcado pela tensão entre o desejo de pertencimento e a condição estrutural de subordinação. Para muitas famílias, ir à Disney se tornou um rito de passagem da classe média emergente.

Durante os anos de câmbio favorável —especialmente entre 2005 e 2014— os Estados Unidos consolidaram-se também como destino de compras para os brasileiros. Esse cenário, no entanto, mudou. A desvalorização do real, somada às políticas protecionistas implementadas durante o governo Trump —incluindo novas tarifas de importação—, tende a encarecer os bens de consumo no mercado norte-americano, reduzindo a atratividade econômica do turismo nos EUA.

Os brasileiros têm opções. O Canadá, além da segurança institucional, tem se consolidado como destino para famílias e estudantes. A Europa oferece não apenas parques temáticos —como a Disneyland Paris—, mas também roteiros culturais, históricos e gastronômicos que se tornaram mais acessíveis nos últimos anos. Entre Brasil e Portugal, há hoje 102 voos semanais ligando 13 capitais brasileiras a diferentes cidades portuguesas —uma verdadeira ponte aérea sobre o Atlântico.

A decisão de não fazer turismo nos Estados Unidos poderá, em breve, tornar-se um símbolo de consciência cívica e posicionamento político. Um gesto de recusa ativa à humilhação e à seletividade racial travestida de protocolo de segurança. O "não ir" aos EUA de Trump poderá ganhar contornos de declaração pública e de distinção social. Nesse novo mapa de prestígio, posar com sacolas na Times Square deixará de ser afirmação de classe, mas de falta dela.


Reprodução de texto de Rodrigo Tavares na Folha de São Paulo

terça-feira, 15 de abril de 2025

Uma elite que sabe muito, mas entende pouco


Em uma manhã qualquer, entre um brunch com avocado e uma conversa sobre alguma viagem à Europa, um membro de uma típica parcela da elite brasileira pode ser flagrado cometendo um erro antigo, mas ainda recorrente: confundir experiências internacionais com sofisticação, e credenciais com educação de excelência.

Já faz algum tempo que se sabe que o acúmulo de conhecimento formal não anda, necessariamente, de mãos dadas com o desenvolvimento integral do ser humano. Ainda assim, quando se trata das elites brasileiras, o tema raramente é considerado à altura de sua importância.

Talvez porque seus protagonistas ocupem posições confortáveis demais para serem questionados. Ou, quem sabe, porque a ala mais esclarecida prefira evitar o desconforto de confrontar seus pares que estão blindados pela própria soberba. No fim, uma parte peca pela ignorância, a outra, pela complacência.

Contudo, essa negligência não é acidental. Ela tem raízes profundas na lógica educacional brasileira, que, mesmo em suas melhores versões, funciona menos como instrumento de formação e mais como ornamento de distinção social.

Em vez de expandir horizontes, a educação das elites tende a ser um subterfúgio para um sofisticado mecanismo de hierarquização social. Um filtro de status. Um verniz técnico que, por vezes, encobre uma brutal ausência de interesse em construir uma nação, em vez de apenas se servir dela.

Nossos melhores colégios e universidades até formam especialistas competentes, mas, em muitos casos, deformam cidadãos. Produzem indivíduos altamente eficazes do ponto de vista técnico, mas com baixa sensibilidade social. O custo disso é alto, pois se cria uma elite treinada para administrar, mas não para compartilhar. Uma elite focada em vencer, mas não em conviver.

Existe no país uma pedagogia do privilégio. Uma pedagogia que ensina, desde cedo, que o mundo é um espaço a ser explorado, não construído coletivamente. Ensina-se a liderar, mas não a escutar. Ensina-se a performar, mas não a refletir. E, não raramente, ensina-se uma arrogância disfarçada de competência, juntamente com um desprezo pelas dores e experiências do país real. Aquele que começa logo após os altos muros dos apartamentos e condomínios fechados.

Mesmo nas franjas mais conscientes dessa elite, o problema não é o excesso de educação, mas a estreiteza com que ela é concebida. Ocorre uma formação instrumental, mas sem densidade moral. E, quando essa elite malformada ocupa os espaços de decisão, tende a perpetuar privilégios, naturalizar desigualdades e reforçar estruturas excludentes, muitas vezes com a convicção sincera de estar fazendo o melhor.

Curiosamente, falta-lhe formação para pensar o país como um todo. Além disso, parte significativa ainda vê o Brasil como uma plataforma de extração, não como uma nação a ser construída. A despeito de sua mobilidade internacional, seu imaginário segue provinciano.

Transformar a educação dessas elites exige muito mais do que reformar currículos, exige reformar consciências. Porque um país com elites mal-educadas está fadado a repetir os mesmos erros, porém em versões cada vez mais disfarçadas de excelência.

*

O título é uma homenagem à música "Colonial Mentality", de Fela Kuti.


Reprodução de texto de Michael França na Folha de São Paulo

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Guerra do petróleo usa palavras como munição


Esqueça por ora a guerra de tarifas de Trump contra a China, ou mesmo a queda de braço entre mercado e Lula/Haddad e a batalha parlamentar entre partidários e adversários de anistia para golpistas. São conflitos decisivos para o futuro próximo do mundo e do Brasil, mas que empalidecem diante das consequências de longo prazo para a humanidade da guerra do petróleo, travada com palavras.

Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, e Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama, se encolhem na trincheira das "decisões técnicas" sobre a foz do Amazonas. Alexandre Silveira, da pasta de Minas e Energia, dispara petardos como "falta de coragem" e "crime de lesa-pátria" contra a agência por postergar o licenciamento.

Rótulos têm peso estratégico no debate público. Por que não "guerra do carvão mineral, petróleo e gás natural"? Porque "guerra do petróleo", além de mais curto e contundente, mira diretamente no elemento central da ambiguidade do governo Lula no que se refere às mudanças climáticas —ou será melhor falar em crise do clima, em emergência climática?

Lula deve achar que basta reduzir desmatamento na amazônia para desfilar em Belém como estadista verde. Silveira não enxerga que insistir na anuência do Ibama antes da COP30 arrisca empanar o brilhareco do chefe desenvolvimentista. Ao menos por conveniência, poderia aguardar sete meses por seu troféu —que virá, pode anotar, porque Lula já demonstrou, com pré-sal e Belo Monte, até onde vão suas convicções ambientais.

A resistência ambientalista, parte mais fraca, fez manobra de guerrilha eficaz ao chamar de foz do Amazonas, anos atrás, a província petrolífera que almeja interditar. A ciência do clima não deixa margem para dúvida: sem zerar até 2050 emissões de carbono pela queima de combustíveis fósseis, a temperatura média da atmosfera ultrapassará 1,5ºC de aquecimento, limiar de segurança estipulado no Acordo de Paris dez anos atrás.

O ministro de Minas e Energia tenta recuperar terreno insistindo em rebatizar a foz do Amazonas como "margem equatorial" ou "Amapá águas profundas". É fato que o bloco 59 no fulcro da disputa fica a 500 km da foz propriamente dita, mas, por outro lado, está a meros 160 km de Oiapoque (AP), no litoral sensível do estado, pontilhado de manguezais.

É distância ínfima para correntes marinhas, para nada dizer da que separa a área de exploração dos centros urbanos com infraestrutura imprescindível em caso de acidentes como explosões e derramamento de óleo. O Ibama se debruça sobre essas questões para dar seu parecer, mas o ministro prefere atacá-lo com a patranha de que a renda das perfurações financiará a transição energética.

Precisamos explorar mais petróleo para acabar com a exploração do petróleo, dá para entender?

Se o governo tivesse resposta convincente, não apelaria para jogos de palavras nem jogos de guerra. Apresentaria números, metas, cronogramas e propostas concretas sobre como fará sua parte para o mundo desembarcar dos combustíveis fósseis. Mas o Plano Nacional de Transição Energética (Plante, sigla engraçadinha) está parado no MME, ora veja.

Se for só para xingar, dá para chamar de crime de lesa-humanidade.


Reprodução de texto de Marcelo Leite na Folha de São Paulo