A Constituição de 1988 herdou cacoetes linguísticos da prolífica tradição brasileira de sete constituições anteriores. Um desses cacoetes foi a pretensão de "equilíbrio e harmonia" entre os Poderes.
Começou na Constituição de 1824, que atribuiu ao Imperador o Poder Moderador para a "manutenção da independência, equilíbrio e harmonia" dos Poderes. A ideia de Poderes "harmônicos e independentes entre si" é adotada na Constituição de 1891, desaparece das Constituições de 1934 e 1937, e volta na de 1946 para não sair mais. As Constituições da ditadura (1967 e 1969) a repetem. A Constituição de 1988 a consagra.
Ainda que independência seja critério para definir os limites de cada Poder, os ideais de harmonia e equilíbrio ficaram como penduricalhos estéticos que não cumprem papel nenhum, exceto na retórica política. Viraram pílula de autoengano para aliviar corações de cidadãos num país tão pouco harmônico. Ou pílula de cinismo para autoridades, em geral do Executivo ou Legislativo, justificarem interferência no Judiciário.
Bolsonaro e seus generais usaram e abusaram dessa fraseologia. Como nunca aceitaram limite jurídico ao poder político, aplicado por um Poder independente, ameaçaram o STF de intervenção. Diante de um Poder que, na avaliação do autocrata, rompia com a "harmonia", jogava fora das "quatro linhas" e saía do "seu quadrado", caberia ao presidente desobedecê-lo, talvez fechá-lo. E prender Alexandre de Moraes. E anular as eleições.
Os escritos de Montesquieu mencionavam "harmonia". Mas a palavra não servia para dizer que Poderes deveriam ser harmônicos. Apenas reconhecia a virtude do arranjo romano, que equilibrava forças sociais distintas. Era conceito empírico e descritivo, não normativo.
Os federalistas, outra referência, foram mais ao ponto. Na explicação da Constituição americana, não falam em harmonia, mas em freios e contrapesos, controle, fiscalização, accountability. Linguagem menos zen.
Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, ao farejar seu futuro político em risco pela percepção do eleitorado mineiro de que não passa de "subalterno" ao STF, embarcou em ofensiva contra a corte. Alega querer resgatar "harmonia entre os Poderes" diante de tribunal que extrapola, pratica ativismo e legisla.
Deu andamento a projetos de lei e de emenda constitucional que afetam a autoridade do tribunal. Parte dessas iniciativas confrontam decisões já tomadas ou ainda na pauta do STF, como nos temas do porte de drogas, marco temporal, aborto. Outra parte propõe reformar o STF por meio de limites a decisões monocráticas, pedidos de vista, duração de mandatos.
Esse emaranhado torna difícil formar um juízo a respeito. Quem pensa que deve escolher entre apoiar o STF ou a cruzada parlamentar está confuso.
Por um lado, ministros do STF fragilizam a instituição pelo abuso de poderes de obstrução, por técnicas de chicana individual, por escandalosos conflitos de interesse, por sua promiscuidade com parentes, amigos e lobistas, pela gestão arbitrária da agenda constitucional, pela recusa de aperfeiçoamentos relevantes. E escancaram patologias do tribunal que deveriam ser corrigidas.
Por outro, abrem o flanco para que o Congresso aproveite e desafie a autoridade que resta ao STF. É previsível que parlamentares tentem revogar decisões judiciais de proteção dos direitos não só de grupos vulneráveis, como de qualquer cidadão que busque exercer a cidadania.
Uma Constituição que aposta em transformação social, redução da desigualdade e promoção da liberdade, num país como o Brasil, jamais terá nada parecido com harmonia entre os Poderes.
Coube ao STF o papel de fazer esse projeto constitucional ser respeitado. Falta a muitos ministros, porém, o compromisso por se fazerem respeitar. Uma coisa não caminha sem a outra.
Ficou fácil para o Congresso mais conservador de nossa história democrática, a pretexto de corrigir falhas do STF, anular o projeto constitucional. No fundo, é isso que está em curso. Danem-se os indígenas, as mulheres, o descontrole das armas, a letalidade policial, a expansão da pobreza, da milícia e da insegurança.
Reprodução de texto de Conrado Hübner Mendes na Folha de São Paulo.
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