Perdi quase 20 amigos na pandemia. Tão ruim quanto nunca mais vê-los era pensar que estavam morrendo na época mais triste da nossa história, num Brasil que jamais teriam imaginado chegar àquele ponto ---a caminho de uma ditadura pior que a de Getulio (1937-45) e a dos militares (1964-85).
O país a que dedicaram a vida, certos de que um dia teríamos desenvolvimento com liberdade, riqueza com justiça social e alegria com responsabilidade, não podia ser o de Bolsonaro. A morte naquele momento, e em condições tão cruéis, era a derrota, a sensação de que tinham vivido em vão.
Todo jovem faz fé no futuro. Na ditadura, fui preso numa passeata, estava no centro de um grupo que levou uma bomba da polícia e perdi três empregos, dois dos quais na noite do AI-5. Mas valeu a pena, nunca me queixei. Conheci ou morei em países sob ditadura, censura, prisões, desaparecimentos e tortura. Presenciei duas quedas de governo, uma delas em Portugal, em 1974. Em matéria de presidentes, incluindo os de fora, fui contemporâneo de deposições, renúncias, impeachments, suicídios e assassinatos. E vi o mundo se meter em pelo menos 20 guerras, com milhares de mortos de cada lado ---em todas, mesmo à distância, tomei partido e vibrei ou sofri com o resultado.
Precisei chegar à idade provecta para concluir que nenhum desses atos extremos resolveu os problemas que os causaram, e que a vitória ou derrota de qualquer dos lados não trouxe seus mortos de volta. Não estou dizendo que se deva ficar neutro ou indiferente, mas, hoje, mais do que a ideologia, o que me move é o martírio dos inocentes, sob qualquer bandeira, ao alcance dos tiros, mísseis, explosões, soterramentos, ferimentos, doenças, sede e fome. Se morrerem, eles, sim, terão vivido em vão.
Como de regra, esta guerra no Oriente Médio começou como sendo de vida ou morte para os dois lados. Mas ambos já perderam.
Reprodução de texto de Ruy Castro na Folha de São Paulo.
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