segunda-feira, 24 de junho de 2019

As arbitrariedades de um país canalha

Brasil um país canalha.
Temer, três vezes denunciado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) quando ainda era presidente.
Dilma, nenhuma denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) quando era presidente.
Dilma, milhões de pessoas de amarelo nas ruas pedindo seu impeachment. Ela é retirada do poder.
Temer faz todo o seu governo sem manifestações nas ruas, sem ameaças de impeachment.
E o brasileiro, tirando a sua responsabilidade destas contradições.
– Os milhões que vestirem amarelo e forçaram o impeachment disseram, com o fiasco do governo e crimes de Temer, que “não fomos nos que elegemos ele”, esquecendo que a derrubada de Dilma foi o que permitiu a ascensão de Temer ao posto de presidente.
– O STF mesmo “provocado” a se manifestar sobre a ameaça da prática de uma ilegalidade (prevenção) e mesmo depois da ilegalidade praticada sendo mais uma vez “provocado” a se manifestar sobre o tema, endossou, por omissão, a prática da arbitrariedade e ilegalidade do impeachment de Dilma. A falsa tese de que se tratava de uma prerrogativa do congresso, formou algo como um conluio de deposição visto que a constituição do Brasil proíbe a deposição por “voto de confiança/ desconfiança”, permitindo o impeachment apenas em casos bem específicos e listados na Constituição.
– No Congresso, a canalhice foi ainda maior, quando os parlamentares usaram o nome de Deus para justificar o ato demoníaco de tirar do poder uma pessoa de forma injusta.
– O canalhismo da mídia, maior que as anteriores por ser o setor de “formação de opinião”, e que se auto atribui como o setor que fiscaliza os excessos dos poderes, e a deposição de Dilma foi um ato excessivo que visava as modificações da ideologia do poder.
Queria-se trocar o projeto denominado de desenvolvimentismo utilizado por Dilma pelo projeto neoliberal de Temer, descaradamente prometido, ainda antes do processo de impeachment, no documento de Temer chamado “Ponte para o Futuro”.
Mas, o canalhismo – aceitar a mentira sem reflexão moral –  não pára aí. Toda mentira exige atos contínuos de mentira para continuar escondendo a própria mentira original.
Para que se desse continuação à pretendida modificação da ideologia de poder era preciso não permitir que a plataforma de governo defendida pelo lado de Dilma retornasse ao poder. Aqui entra a atuação do juiz Moro.
Moro conseguiu, isso é uma coisa que a história também vai clarear, puxar o processo judicial de Lula – que deveria tramitar em São Paulo porque a lei impõe que os Processos devem correr no local onde ocorreu o pretenso crime (o apto e o sítio estão em São Paulo) – para isso Moro pratica a sua primeira artimanha; o setor jurídico brasileiro debateu essa forçada de barra do juiz de Curitiba para fazer crer que o dinheiro pago por construtoras para a aquisição dos imóveis foi fruto de favorecimento na Petrobras.
O juiz Moro já vinha conduzindo o processo contra a estatal de forma excessiva – dentro do preconizado em democracias que adotam o liberalismo jurídico que pretende proteger o indivíduo da “mão pesada” do Estado, (poder judiciário está dentro do conceito de Estado), ainda que aceita dentro do direito. Com a entrada de Lula no processo, o que eram até então ações excessivas de Moro – criticadas mas, aceitas pelo mundo jurídico – ultrapassa o liame e se sucede uma série de ilegalidades, todas elas trazidas a público e aos tribunais superiores pela defesa do ex-presidente Lula.
Lula seria o candidato à presidência que defenderia a posição de um governo de cunho desenvolvimentista e todas as projeções o indicavam como o possível vencedor das eleições.
Se Moro foi o responsável maior por impedir a candidatura de Lula, ele o fez com o massivo apoio da mídia; a mídia fez campanha à favor da condenação de Lula, e isso ficou claro durante todo o processo.
O canalhismo brasileiro continua quando se forma um verdadeiro conluio entre Ministério Público, a quem cabe com exclusividade a acusação,  e o juiz, a quem cabe o julgamento, e como condução de equilíbrio da balança da justiça não se permite relação de conluio entre parte, seja defesa ou acusação,  com o juiz julgador.
Sim, a essa altura – período que antecede ao registro das candidaturas –  todas as ilegalidades de Moro que agora vêm à tona pelas matérias da Folha de São Paulo, BandNews e The Intercept já eram de conhecimento da sociedade pelas várias denúncias feitas pelos advogados de Lula e também juristas nacionais e internacionais.
A falsa verdade se torna tão evidente nos vazamentos das conversas entre o juiz e os procuradores da Lava-Jato que alguns daqueles setores que apoiavam a Lava-Jato passaram a reconhecer a série de ilegalidades praticadas por Moro. Mas, há resistências.
O canalhismo brasileiro está à prova. E ele se torna pretenso à continuidade ao se observar que a gravidade de ilegalidades, cada vez mais claras, dos atos praticados por Moro parece ser menos importante do que a mera disputa partidária. Mas, seria o processo justo, movido pelo juiz respeitando as normas de conduta estabelecidas nas próprias leis que deveria estar à prova e não a torcida por posições.
– O STF voltará a julgar a matéria,
– A Globo tentando blindar Moro.
– Os militares se intrometendo em assuntos civis e do Poder Judiciário exigindo a permanência da condenação de Lula.
– O Congresso com todas as graves denúncias não abriu CPI.
–  Os camisas amarelas que foram às ruas para pedir a derrubada de Dilma, ameaçando botar fogo no país.
O canalhismo não pode esconder a verdade dos fatos e o respeito aos processos legais e justos. O canalhismo parece não perceber que ao se permitir excessos das polícias as tornamos arbitrárias; ao se permitir excessos dos juízes formamos uma sociedade injusta. O canalhismo não percebe que estes excessos sempre foram o horror das sociedades liberais e democráticas.

Texto de Assis Ribeiro, no Jornal GGN

domingo, 23 de junho de 2019

'O Jogo da Amarelinha' é clássico que espera leitor que entre de cabeça

Você sabia que “O Jogo da Amarelinha”, obra-prima de Julio Cortázarque reaparece no Brasil em nova tradução, quase se intitulou “Mandala”? Entre o fim dos anos 1950 e início dos 1960, enquanto trabalhava no romance, Cortázar estava mergulhado na leitura e prática da filosofia oriental. Por sorte, ele mudou de opinião a tempo.

“De repente compreendi que eu não tinha o direito de exigir dos leitores que conheçam o esoterismo búdico ou tibetano. E me dei conta de que ‘O Jogo da Amarelinha’, título modesto e que qualquer um entende, era a mesma coisa; porque amarelinha é uma mandala dessacralizada”, escreveu o autor em carta ao cineasta Manuel Antín.
Pois é exatamente isso que propõe Cortázar no livro famoso: tirar o caráter sagrado da literatura e propor um jogo ao leitor —mas se espera um leitor cúmplice e atento, que tope entrar de cabeça no labirinto. Quem não sabe brincar não desce para o play.
Em artigo que enriquece a edição da Companhia das Letras, Mario Vargas Llosa —que por questões políticas desfez os laços de amizade com Cortázar, mas nunca deixou de admirá-lo— comenta o conceito lúdico que é a matéria-prima de quase toda a obra.
“Para ele, escrever era jogar, divertir-se, organizar a vida —as palavras, as ideias— com a arbitrariedade, a liberdade, a fantasia e a irresponsabilidade das crianças ou dos loucos. Mas, jogando assim, a obra de Cortázar abriu portas inéditas, conseguiu mostrar certas camadas desconhecidas da condição humana e flertou com o transcendental, algo a que certamente nunca se propôs.”
Por isso espanta, mas não tanto, que “Rayuela”, no original, romance que pela estrutura complexa dá a impressão de ter sido longamente esquematizado, não tenha tido plano inicial algum de execução. Foi um quebra-cabeça até para o seu próprio autor.
Numa tarde de calor em Buenos Aires, Cortázar viu pessoas tentando passar, de uma janela a outra, um pacote de erva-mate e pregos por uma tábua. A partir daquela imagem, resolveu fazer um conto, no qual aparecem pela primeira vez Horacio, o protagonista, e o casal Talita e Traveler, também personagens do livro.
Ao finalizar as cerca de 40 páginas, percebeu que não era um conto, e sim um pedaço de alguma coisa muito maior. Descobriu que tinha de voltar atrás na história e situar o personagem em seus tempos de exilado, vagabundeando pelas ruas de Paris. Ele seria o fio condutor da ficção.
O escritor tinha montanhas de papeizinhos e cadernetas em que tinha anotado suas impressões sobre a cidade em que vivia desde 1951, os quais foram incorporados à narrativa. Retrabalhados, são os capítulos curtos que iniciam o livro, aquarelas parisienses.
Surge a Maga, mulher pela qual Horacio está obcecado, e a reboque entram em cena os integrantes do Clube da Serpente, todos malditos, sofisticados e em crise existencial, esgrimindo os intelectualismos da época em verdadeiras conversas-ensaios.
Quando interrompia a parte narrativa, Cortázar se dedicava às notas atribuídas ao personagem-escritor Morelli, que refletem problemas da criação literária. Para não incluí-las na ação e enfadar o leitor, deram origem aos chamados capítulos prescindíveis. Neles, entram textos de Witold Gombrowicz, poemas de Octavio Paz, páginas de jornal.
Sabendo disso, é mais fácil entender o “Tabuleiro de Leitura” proposto pelo autor, onde se afirma que o livro é “acima de tudo dois livros”. Pode-se ler na ordem direta até o capítulo 56 ou ir aos saltos, como pulando marcas de giz no chão, em avanços e recuos numa (des)ordem indicada.
Lançado o romance em junho de 1963 pela Editorial Sudamericana, com capa desenhada pelo próprio Cortázar, teve gente que gostou tanto da brincadeira que inventou sua própria maneira de montar e desmontar o quebra-cabeça.
Em entrevista a Ernesto González Bermejo, o escritor definiu “O Jogo da Amarelinha” como um ajuste de contas: “Um ajuste de contas do caralho! Em primeiro lugar, ponho todos os valores em dúvida. Freudianamente, mato a minha família, mato o meu país, mato os meus compatriotas, mato os meus amigos, mato todas as heranças. Mato-as no sentido de questioná-las”.
Esse ímpeto homicida fica explícito na seleção de cartas que a recente edição brasileira apresenta. São correspondências nas quais o autor desvenda os andaimes da obra e analisa sua recepção. Nelas, “Rayuela” (pronuncia-se “rajuêla”) é classificado como “antirromance”, “bomba atômica’, “o buraco negro de um enorme funil”, “crônica de uma loucura”, “almanaque”, “baú turco”, “livro infinito”.
Além das cartas e do artigo de Vargas Llosa, o volume traz um ensaio-balanço de Julio 
Ortega e a resenha de Haroldo de Campos publicada no Correio da Manhã em 1967: “Estamos diante de um romancista realmente criador, o único da América Latina de hoje que se pode ombrear com o nosso Guimarães Rosa”.
O estilo espontâneo e fluente do argentino está preservado na tradução de Eric Nepomuceno. Uma curiosidade: escritor e tradutor foram amigos, e Cortázar havia pedido ao brasileiro que se encarregasse da versão do livro. “Minha maior dificuldade foi saber que chegaria ao fim e não poderia ligar e dizer: ‘Julio, fiz!’. Nenhuma dificuldade técnica supera a sentimental.”
Existe na Argentina uma percepção (ou acusação) segundo a qual Julio Cortázar só é lido hoje por adolescentes. Qual o problema? Adolescentes crescem e alguns até se tornam escritores chatíssimos.

O texto é de Álvaro Costa e Silva, na Folha de São Paulo.