Tento resumir ao essencial meu estranhamento com o novo governo e com as eleições que o levaram ao poder. Chego a isso: eu achava que vivia numa sociedade pós-moderna, e estava enganado.
O que definia a sociedade pós-moderna na qual eu achava que vivia (e me considerava feliz de estar vivendo)? Essencialmente:
1) Uma liberdade e diversidade ampla de desejos e atos, ou seja, um mundo em que os desejos e os atos dos outros só me dizem respeito caso eles transgridam uma norma do Código Penal. Em matéria de sexo, por exemplo, o ato do outro só me diz respeito em caso de estupro ou de abuso de menor ou incapaz —quanto ao resto, que cada um goze como lhe sai melhor;
2) Uma definição do comportamento moral como sendo inspirado por escolhas no foro íntimo de cada um —e seu corolário: é imoral qualquer escolha inspirada pela obediência a "valores" coletivos, que não sejam inventados e defendidos pela singularidade de cada um de nós.
Nesse mundo, em que eu achava que vivia, a tolerância era extrema, a diversidade valorizada e a boçalidade (ou seja, a vontade de impor nossas regras aos outros) existia só como um resto de passados arcaicos, em via de extinção. De onde vinha minha ilusão?
Talvez do ambiente que mais frequento: pessoas que viajam, leem jornais e livros, agnósticos (em sua maioria) ou ateus, intelectuais que falam várias línguas e desprezam a ideia de nação (ou, pior, de pátria) etc.
Talvez da internet, que, no mínimo, prolonga a ilusão de que o mundo não tenha fronteiras e de que, nele, todos tenham direito à mesma plena cidadania. Talvez da fala dos alarmistas que citam Zygmunt Bauman e se queixam de estarmos vivendo num mundo líquido, e eu acredito e me alegro com isso. Talvez ainda das ficções que, em tese, eu pensava, retratam nosso mundo.
Pensei, aliás, na relevância das ficções quando vi apoiadores de Bolsonaro, no dia da posse, gritando "Facebook" e "WhatsApp" contra jornalistas da Rede Globo. Claro, eles criticavam o jornalismo profissional, manifestando sua preferência pelo boca a boca das redes sociais. Mas não era só isso. Explico.
Durante muitos anos, pensei que, no Brasil, a televisão era o grande agente de transformação das consciências. Um beijo entre duas pessoas do mesmo sexo na novela das 20h me parecia afastar a boçalidade nacional mais do que qualquer ensaio ou ação política. A cultura de massa rivalizava com os preconceitos e me parecia que, nessa luta, a cultura de massa estivesse ganhando.
Ninguém, eu pensava, iria "voltar atrás", contrariar ciência e experiência e inventar que só existe um desejo sexual certo ou que só tem dois gêneros. Se algo apareceu na novela, é que está aceito e firme na consciência nacional.
As eleições mostraram diferente. Na TV, a gente pode se apresentar como uma sociedade tolerante, diversa, libertária e libertina, mas, de fato, somos pós-modernos só na TV.
Ou melhor, a televisão não simula nossas vidas de classe média, mas um mundo urbano, laico, informado, relativamente culto, elegante e menos preconceituoso do que o nosso. É o primeiro mundo ao qual fazemos de conta que pertencemos. Mas é só um fazer de conta e uma tentativa de imitar.
Imitamos como? Consumindo. Tentamos comprar o acesso ao primeiro mundo à força de cintos, bolsas e perfumes, mas essa é a única simulação que nos permitimos. Nada de direitos humanos para as minorias, nada de feminismo básico compartilhado, nada de tolerância e liberdade dos indivíduos. E só conseguimos ser eternos turistas caipiras errando por um shopping center, de cartão de crédito na mão.
Por que não estamos preparados para o primeiro mundo que criamos e com o qual brincamos na TV? Por que nossa pós-modernidade é apenas um sonho de consumo?
Por falta de cultura e de história que nos levem a isso? É possível. Por medo? Se negros e mulheres se tornarem cidadãos como nós, quem vamos escravizar? E, se os desejos desviantes forem permitidos, quem controlará nossos próprios desejos inconfessáveis e inconfessados? Também é possível.
O Brasil já se modernizou, nos anos 1960, sem alterar as estruturas tradicionais e autoritárias de poder. Foi a dita modernização conservadora. Hoje, descubro que a aparente pós-modernidade brasileira também era conservadora: só consumo e uma feira de vaidades, sem transformação cultural.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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