quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Entrevista com Manoel Caetano, advogado de Lula em Curitiba

Exclusivo: entrevista com Manoel Caetano, advogado de Lula em Curitiba

Durante as visitas, os dois conversam sobre a conjuntura política e o andamento do processo judicial

Brasil de Fato | Curitiba (PR)
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sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Não nos resta muito

O fascismo é sempre libertado pelos liberais. Quem detém as chaves das instituições que guardam as liberdades individuais e o “status quo” são eles. As instituições têm o poder de afastar o fascismo, mas – como afirmava Marx – o homem é construído pelas relações materiais que experimenta. Isto quer dizer que a ideologia de classe é parte constitutiva de cada sujeito. A gente vê o mundo pela janela do nosso quarto. O mundo que se vê, a disposição de olhar, o tempo para tal, as cores e os entendimentos, dependem decisivamente de onde você está, de onde você “mora”.

Diante do medo da mudança, a ideologia de classe opera em quem comanda as instituições. O historiador Walter Laqueur lembra, com correção, que os fascistas são sempre os “perdedores da modernidade”. Aqueles que não aceitam a mudança, a inclusão, a transformação da sociedade, dos padrões culturais, das normas sociais e etc. Aconteceu assim no início do século XX e, de novo, no início do século XXI. Este desconforto (cujo termo técnico é “modern malaise”) no século XX se configurava nos anseios de igualdade social, voto feminino, migrações, direitos para os trabalhadores e urbanização. Em tudo semelhante com o que ocorre no século XXI. E que não se diga que não há pessoas nos dias de hoje que questionem, por exemplo, o voto feminino. A pastora-ministra de Bolsonaro, Damares, sonha com uma sociedade em que as mulheres fiquem reclusas a sua casa. (Nós sonhamos que ela aplique o seu sonho a ela mesma.)
No século XXI, o “modern malaise”, que impulsiona o fascismo “contra tudo que está aí (talkey)”, guarda impressionante semelhança com o do século XX. Cem anos não foram suficientes para que a sociedade humana pudesse refletir e compreender este ponto. Hitler usava canhões e aviões modernos para impor uma sociedade que ele procurava espelhar na medievalidade germânica (o primeiro Reich ou o Sacro Santo Império Romano Germânico). Ele usava bombas e tanques, mas gostaria de usar espadas e lanças. A relação é a mesma de milhares de pessoas usando celulares de última geração para propagar mentiras sobre endemoniamento, comunismo ou “dominação mundial”. É o mesmo sentido de evangélicos neopentecostais vendendo indulgências e recebendo via transferência bancária na internet.
Uma pergunta sobre o fascismo que sempre se fez, e que hoje se torna ainda mais importante é: como pode? Como pode milhões de pessoas parecerem entrar em um “transe” de consciência e de intelecto e acreditarem em figuras bizarras como Olavo de Carvalho, Silas Malafaia, Damares Alves ou a própria família Bolsonaro? É uma assustadora e coletiva dissonância cognitiva que, na Inglaterra, por exemplo, os levou a votarem pela saída do país da UE. O “Brexit” de lá simplesmente quebra a economia do país e foi “votado” em meio à histeria coletiva, em tudo semelhante à eleição de Bolsonaro e Trump. Como pode na eleição brasileira, Bolsonaro ter digerido TODA a direita brasileira? Alckmin, Marina, Amoedo, Meirelles, Álvaro Dias terem sido aniquilados por alguém que não tem condições cognitivas de juntar duas frases ou oferecer qualquer solução para o Brasil?
A resposta fácil é: “a internet”, o “whatsapp” e “as redes”. A resposta fácil quase nunca é a correta. A imensa migração de votos para Bolsonaro não se deveu ao seu programa de governo (que a rigor nem existia), também não foi devido às soluções econômicas ou sociais apresentadas (não apresentou nenhuma) ou a qualquer histórico de serviços ao país e à sociedade (em 28 anos Bolsonaro nunca fez nada de significativo. A que se deve, então, este fenômeno?
Ao fascismo.
O ser humano precisa de reconhecimento e acolhida. São frequentes temas na psicologia e antropologia. A ideia de “pertencimento” é parte da subjetivação humana. Só somos e sobrevivemos em grupo. A modernidade, gerenciada pelos liberais, avança sobre a ideia de “individualismo” de uma maneira que desfaz laços e gera um impressionante senso de crise social. Quando o individualismo se torna um valor em si, a sociedade adoece. Apesar dos fascistas do século XXI propalarem o individualismo (e esta é uma marcante diferença para o século XX), tudo o que eles fazem e defendem é ao contrário do que falam. Querem regular corpos, proibir o uso de espaços, controlar as ideias individuais, atacar as artes e etc. Há uma imensa diferença entre o que dizem e o que fazem.
Ocorre que, ao fazerem estas ações, ao convencerem-se de que estão certos, eles se consubstanciam em um grupo e se sentem parte de algo maior. As frustrações individuais são subsumidas em um todo que age coletivamente – sempre com violência – contra o que é diferente, o que é dissonante e o que ameaça suas certezas sobre o mundo e as coisas. Paradoxalmente, o processo fascista de destruir os coletivos contrários a si, reforça o coletivo fascista, suas ideias, suas certezas e sua violência. As massas não demoram a transformarem-se em turbas.
Jean Wyllys está certo.
O fascismo aumenta o custo da oposição ao máximo, enquanto diminui o custo da aceitação. O fascismo de Bolsonaro et caterva ameaça a vida de Jean Wyllys (e de milhões de outras pessoas) o tempo todo, e de diversas maneiras. A descoberta de que seu filho está imbricado em relações escusas com as milícias do RJ, enquanto seu ministro da justiça nada diz e nada fala é apavorante. O assassinato de Marielle foi um exemplo do que o fascismo vai fazer no Brasil. Cada apoiador de Bolsonaro se torna um assassino em potencial se for convencido de que suas ações são para “o bem do país” ou “o bem do mito”. A vida se torna o preço da oposição política ao fascismo, e Jean Wyllys se deu conta disso a tempo.
Juntamente com a elevação do custo da oposição, o fascismo baixa o preço da aceitação. Bolsonaro desidratou toda a direita brasileira porque, para ser fascista e ser aceito neste imenso grupo de “apoiadores do mito”, basta que você use as cores deles, fale as palavras de ordem deles ou se esconda. Basta esconder sua sexualidade, suas tatuagens, seus piercings, o cabelo, os hábitos, suas preferências políticas. Basta que alguém se torne invisível para ser deixado em paz pelos fascistas.
A escolha de Jean Wyllys era ou desafiar a morte ou se tornar invisível. Jean rejeitou as duas e sai de um país que sequer República é mais. Deixamos de ser democracia com o golpe sobre Dilma Rousseff, deixamos de ser República quando Lula foi preso e estamos deixando de ser civilizados com o auto-exílio de Jean Wyllys. Ainda temos um fiapo de humanidade. Eu me pergunto quanto tempo ele irá durar ...

Texto de Fernando Horta, visto no Jornal GGN

sábado, 19 de janeiro de 2019

Grega

Fugi do inferno, mas recebo relatos a respeito da onda de calor que castiga o Brasil. A foto de uma cratera de vulcão ativo me foi enviada por meu irmão com a legenda: "Lagoa Rodrigo de Freitas, 10/01/2019".
De longe, também me chegam as notícias sobre os primeiros atos dos governantes recém-eleitos. No Rio de Janeiro, antes de praticar flexões com a tropa, Wilson Witzel suspendeu a performance do coletivo És Uma Maluca, na Casa França-Brasil.
Alertado pelo secretário Ruan Lira a respeito das cenas de "nudismo e mulheres" da apresentação, o governador alegou falta de avaliação prévia da Vara da Infância e Juventude, para caracterizar quebra de contrato e não censura.
Guinamos para a extrema direita numa virada tão abrupta quanto a do possível salto do polo magnético da Terra, que tem apresentado acentuado movimento errático no Ártico e corre o risco de virar de vez, invertendo o sentido das bússolas de Norte para Sul.
São fenômenos naturais tanto na história da humanidade quanto do planeta, mas assusta que aconteçam justo na hora em que você está vivo com dois filhos para criar.
Tenho me preparado para a era Bolso-Witzel devorando a história das religiões. No capítulo sobre a Torá, descubro que o niilismo do Eclesiastes, com sua vaidade, tudo é vaidade, é fruto da influência grega sobre Israel.
A elite dos territórios conquistados por Alexandre foram seduzidas pelos filósofos críticos às teologias tradicionais. Por mais de um século, o cosmopolitismo helenístico floresceu, disseminando o estoicismo, o epicurismo e o hedonismo.
Na primeira metade do século 2º a.C., a tensão entre os abastados helenófilos da Judeia e seus conterrâneos devotos da Torá dividiu a população com uma violência comparável à de coxas e mortadelas do Brasil do terceiro milênio.
O influente escriba judeu Ben Sira acusava os jovens ricos fascinados pelo iluminismo grego de apóstatas libertinos. O poder econômico dos pais dos moleques, no entanto, falou mais alto, privilegiando o interesse dos xenófilos.
Em 167 a.C., em troca de um molha-mão, Antíoco 4º Epifânio baixou um decreto proibindo a circuncisão, o shabat e tudo o que envolvia o culto judaico. Não satisfeito, o rei vassalo de Roma transformou o Templo de Jerusalém em um santuário sincrético, devotado a Javé, Zeus e Baal.
A indignação dos zelotes e dos hassidim culminou numa guerra civil, que varreu para sempre a influência grega da Terra Prometida.
O caso me lembrou os últimos 20 anos de democracia no Brasil.
Lutas identitárias, feminismo, direitos indígenas e quilombolas, desarmamento, tudo aquilo que o atual chanceler chama de globalismo marxista, realmente prosperou nas duas últimas décadas.
Assim como os helenófilos judeus, parte da população, muitas vezes acusada de elite, alimentou ambições progressistas, tratando a fé e o patriotismo de farda como algo arcaico e demodê.
O ideário de liberdade, igualdade e fraternidade durou mais do que o Zeus-Javé do corrupto Antíoco, mas terminou por sucumbir nas urnas. Nos próximos 4 anos, quiçá 20, estaremos sob o zelo do Templo de Salomão da Igreja Universal, batendo continência para a Roma de Donald Trump.
Sempre me vi como liberal, mas tenho sido chamada de esquerdopata com frequência. Talvez eu esteja mais para hedonista epicurista estoica ainda na ativa, lutando para sobreviver em meio às novas guerras santas.
É impressionante como a história se repete.

Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

As cassandras e os esparadrapos

Primeira Guerra Mundial (1914-1918) deixou 15 milhões de mortos nos campos de batalha. A esse número é preciso acrescentar os 20 milhões de mutilados e desfigurados, que assombraram a Europa durante as décadas seguintes.
Se a gente culpar a guerra pela virulência do surto de gripe espanhola que começou em 1918, as vítimas, na Europa, chegaram perto dos 70 milhões. Este número é próximo da quantidade das vítimas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Os anos 1920 e 1930 (o dito entreguerras) não foram uma época próspera. Os problemas econômicos e sociais se juntaram com o desejo de revanche de quem se considerava injustiçado pela paz no fim da Primeira Guerra: conclusão, as duas décadas foram o berço dos totalitarismos mais sanguinários do século 20, o stalinismo, o nazismo e o fascismo. E, claro, levaram a mais uma carnificina.
Mas o entreguerras foi também uma época raivosamente a fim de viver, tanto quanto a belle époque, que o antecedeu.
Meus avós maternos nasceram no fim do século 19 e estavam (respectivamente) com 16 e 21 anos no começo da Primeira Guerra. Sobreviveram.
Tenho fotografias deles no entreguerras, à beira dos rios de Turim: piqueniques na grama, sempre com uma sanfona, vinho e as moças dançando não só entre elas, mas com os moços, nas primaveras dos anos 1920 e 1930.
Pensei nessas imagens assistindo às duas temporadas de "Babylon Berlin", de Tom Tykwer e outros (Tykwer é o cineasta do maravilhoso"Corra, Lola, Corra").
"Babylon Berlin" é uma série imperdível, mas não acessível no Brasil (nos Estados Unidos, ela está na Netflix), inspirada nos romances de Volker Kutscher e Niall Sellar, que contam a saga de Gereon Rath, um detetive da polícia de Colônia, desde sua chegada a Berlim em 1929.
Voltarei a falar da série quando os leitores puderem vê-la (quando?). Desde já: num primeiro momento, enquanto assistia ao primeiro episódio, pensava que aqueles personagens todos não sabiam que, em dez anos, eles seriam levados por um cataclismo pior do que a guerra que acabava de terminar.
A partir do segundo episódio, pensei ou senti diferente: eles eram todos especialmente tocantes porque talvez, de algum modo, soubessem, pressentissem que seriam varridos ou incinerados dez anos mais tarde.
Será que minha avó, dançando na beira do rio Ticino, pressentia a fome, a miséria, o desastre?
Claro, a vida se dá sempre na proximidade e na iminência da nossa morte. Mas é mais raro que ela se dê na iminência da catástrofe. Será que saberíamos ou pressentiríamos se vivêssemos os últimos anos ou meses antes do apocalipse e do armagedon? Justamente, a Bíblia (Apocalipse 16, 14:16) recomenda que estejamos sempre prontos, que durmamos vestidos, pois é difícil dizer se e quando a batalha começará.
Nos anos 1950 e 1960, no auge da Guerra Fria, eu era adolescente. Lembro-me bem da crise de Cuba, em 1962. Mas será que acreditei na possibilidade de uma catástrofe nuclear?
A sensação da futilidade geral diante da catástrofe iminente é quase sempre acompanhada por uma raiva hedonista: a vontade de roubar um último tango. É possível que Maio de 68 tenha sido também isso: uma saideira para uma geração que cresceu à sombra das armas nucleares.
Mas voltemos à pergunta anterior: será que sabemos detectar os sinais de uma catástrofe iminente? Depois da chegada de Hitler ao poder, alguns fugiram a tempo; outros acharam que tudo continuaria igual, e não seria nada de mais —talvez nem fosse o caso de se revoltar.
Nestes dias, no Brasil, além dos entusiastas do novo governo, há as cassandras e os esparadrapos. As cassandras preveem, no mínimo, um regresso cultural que produzirá mais uma geração perdida: elas se perguntam se não é o caso de desistir do país. Os esparadrapos acham que, no fim, dá para medicar qualquer ferida, vai dar tudo certo, a economia melhorará e a estupidez ideológica será jogada fora, junto com os cartazes da campanha eleitoral.
Não sou nem cassandra nem esparadrapo. Mas a experiência da psicanálise me ensinou a nunca dizer "não se preocupe, vai dar tudo certo".
Geralmente, não dá tudo certo. E a questão mais importante, na iminência de uma catástrofe, é sempre a mesma: como viver uma vida interessante e prazerosa sem ter que comprar a falsa ilusão de que tudo vai dar certo no fim?

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Brasil pós-moderno?

Tento resumir ao essencial meu estranhamento com o novo governo e com as eleições que o levaram ao poder. Chego a isso: eu achava que vivia numa sociedade pós-moderna, e estava enganado.
O que definia a sociedade pós-moderna na qual eu achava que vivia (e me considerava feliz de estar vivendo)? Essencialmente:
1) Uma liberdade e diversidade ampla de desejos e atos, ou seja, um mundo em que os desejos e os atos dos outros só me dizem respeito caso eles transgridam uma norma do Código Penal. Em matéria de sexo, por exemplo, o ato do outro só me diz respeito em caso de estupro ou de abuso de menor ou incapaz —quanto ao resto, que cada um goze como lhe sai melhor;
2) Uma definição do comportamento moral como sendo inspirado por escolhas no foro íntimo de cada um —e seu corolário: é imoral qualquer escolha inspirada pela obediência a "valores" coletivos, que não sejam inventados e defendidos pela singularidade de cada um de nós.
Nesse mundo, em que eu achava que vivia, a tolerância era extrema, a diversidade valorizada e a boçalidade (ou seja, a vontade de impor nossas regras aos outros) existia só como um resto de passados arcaicos, em via de extinção. De onde vinha minha ilusão?
Talvez do ambiente que mais frequento: pessoas que viajam, leem jornais e livros, agnósticos (em sua maioria) ou ateus, intelectuais que falam várias línguas e desprezam a ideia de nação (ou, pior, de pátria) etc.
Talvez da internet, que, no mínimo, prolonga a ilusão de que o mundo não tenha fronteiras e de que, nele, todos tenham direito à mesma plena cidadania. Talvez da fala dos alarmistas que citam Zygmunt Bauman e se queixam de estarmos vivendo num mundo líquido, e eu acredito e me alegro com isso. Talvez ainda das ficções que, em tese, eu pensava, retratam nosso mundo.
Pensei, aliás, na relevância das ficções quando vi apoiadores de Bolsonaro, no dia da posse, gritando "Facebook" e "WhatsApp" contra jornalistas da Rede Globo. Claro, eles criticavam o jornalismo profissional, manifestando sua preferência pelo boca a boca das redes sociais. Mas não era só isso. Explico.
Durante muitos anos, pensei que, no Brasil, a televisão era o grande agente de transformação das consciências. Um beijo entre duas pessoas do mesmo sexo na novela das 20h me parecia afastar a boçalidade nacional mais do que qualquer ensaio ou ação política. A cultura de massa rivalizava com os preconceitos e me parecia que, nessa luta, a cultura de massa estivesse ganhando.
Ninguém, eu pensava, iria "voltar atrás", contrariar ciência e experiência e inventar que só existe um desejo sexual certo ou que só tem dois gêneros. Se algo apareceu na novela, é que está aceito e firme na consciência nacional.
As eleições mostraram diferente. Na TV, a gente pode se apresentar como uma sociedade tolerante, diversa, libertária e libertina, mas, de fato, somos pós-modernos só na TV.
Ou melhor, a televisão não simula nossas vidas de classe média, mas um mundo urbano, laico, informado, relativamente culto, elegante e menos preconceituoso do que o nosso. É o primeiro mundo ao qual fazemos de conta que pertencemos. Mas é só um fazer de conta e uma tentativa de imitar.
Imitamos como? Consumindo. Tentamos comprar o acesso ao primeiro mundo à força de cintos, bolsas e perfumes, mas essa é a única simulação que nos permitimos. Nada de direitos humanos para as minorias, nada de feminismo básico compartilhado, nada de tolerância e liberdade dos indivíduos. E só conseguimos ser eternos turistas caipiras errando por um shopping center, de cartão de crédito na mão.
Por que não estamos preparados para o primeiro mundo que criamos e com o qual brincamos na TV? Por que nossa pós-modernidade é apenas um sonho de consumo?
Por falta de cultura e de história que nos levem a isso? É possível. Por medo? Se negros e mulheres se tornarem cidadãos como nós, quem vamos escravizar? E, se os desejos desviantes forem permitidos, quem controlará nossos próprios desejos inconfessáveis e inconfessados? Também é possível.
O Brasil já se modernizou, nos anos 1960, sem alterar as estruturas tradicionais e autoritárias de poder. Foi a dita modernização conservadora. Hoje, descubro que a aparente pós-modernidade brasileira também era conservadora: só consumo e uma feira de vaidades, sem transformação cultural.

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Educar é criar dissidentes

Estou na Flórida, em Miami, no momento. Segunda, dia 31, precisei passar no banco, e, antes de sair de casa, verifiquei os horários. Pensei: vai que, por ser véspera de Ano-Novo, eles fechem antes da hora. 
No site, não dizia se haveria mudanças. Preferi telefonar, por segurança. Escutei a gravação do serviço automático: “de segunda a quinta, das 9 às 16, na sexta…” Aqui eu tive tempo de antecipar como lógica uma mudança para menos --na sexta, o banco, imaginei, vai fechar às 14, deve ser isso, para que os funcionários possam viajar mais cedo para o fim de semana. Mas errei: na sexta o banco fica aberto até mais tarde, até 18 horas.
De qualquer forma, aliás, o fim de semana não começa na sexta, pois o mesmo serviço me informou que o banco também abre sábado de manhã.
Pensei nisso (e na “deformação” cultural brasileira que me fez prever horários especiais de véspera de feriado) ao ler, mais tarde, o tuíte do presidente Bolsonaro, em que ele escreveu: “Uma das metas para tirarmos o Brasil das piores posições nos rankings de educação do mundo é combater o lixo marxista que se instalou nas instituições de ensino”.
Quem dera fosse tão fácil. Infelizmente, uma mudança ideológica não vai melhorar o ranking do Brasil em matéria de educação. Para isso, precisaria estender o calendário escolar, aumentar a carga horária dos estudantes, esperar deles muito, mas muito mais do que é exigido hoje e, claro, melhorar significativamente a formação e os salários dos professores.
Dessa lista não faz parte a reza de nenhuma cartilha. Nosso ensino não é ruim porque haveria professores marxistas e não vai melhorar só porque os professores no futuro serão carolas.
Desse ponto de vista, aliás, daria para argumentar que, com o domínio dos carolas, o ensino piorará. Explico: em regra geral, qualquer visão do mundo ou ideia, quando ela é dominante (ainda mais quando ela é expressão do poder político instituído), torna-se lixo.
Por exemplo, se você quer entender o que foi a Revolução Cubana, o último lugar para estudar é Cuba. O mesmo vale para entender o bolivarianismo venezuelano: não vá para Caracas. E você imaginou o que era estudar história do século 20 na ex-União Soviética, antes da queda do Muro de Berlim?
O mesmo vale, por exemplo, para o estudo da história  contemporânea nos EUA na época da caça às bruxas macartista, nos anos 1950.
Em qualquer um desses lugares, o espaço para  algumas faíscas de senso crítico era mínimo ou nulo. E as chances eram (ou são) grandes de aprender só lixo.
O ponto de vista crítico, que questiona a ordem estabelecida e o conteúdo que está sendo ensinado,  é a atitude que mais leva o estudante a pensar, investigar, estudar um pouco além do que é óbvio e prescrito.
Ser cristão trocando “samizdats” proibidos era provavelmente o melhor jeito de ser estudante na União Soviética até os anos 1990. Assim como ser de esquerda às escondidas era o melhor jeito nos Estados Unidos dos anos 1950 (e ainda seja, hoje, em alguns estados americanos). 
A cultura oficial e de governo é lixo porque só é ciosa de sua reprodução igual na consciência de todos. O que se opõe a ela pode valer pouco como conhecimento, mas tem a função de fomentar o senso crítico dos estudantes. Por exemplo, eu acho o cristianismo nacionalista à la Soljenitsin uma chatice medíocre, mas, para muitos, ele foi o observatório que permitiu enxergar uma outra Rússia.
Na segunda parte do tuíte, o presidente Bolsonaro explicita seu propósito: “vamos evoluir em formar cidadãos e não mais militantes políticos”. Certo, mas o problema é: o que é um cidadão?
Os cidadãos sem senso crítico são, de fato, os militantes políticos mais perigosos: emissários e informantes da ordem estabelecida. 
Desde a aurora do mundo moderno, o exercício efetivo da cidadania se confunde com o exercício da oposição. Talvez, no nosso sistema atual, no Brasil, os argumentos da oposição  tenham uma referência (vaga) no marxismo --digamos que sejam “marxistas”. Eu preferiria que fossem hedonistas, mas tanto faz: o essencial, para mim, é que nossas crianças aprendam a olhar para o mundo e a entendê-lo criticando, opondo-se, imaginando e inventando outros mundos.
Aliás, estes são meus votos para o ano que começa: que sejamos e continuemos todos, crianças e adultos, capazes de imaginar outros mundos, possíveis e impossíveis. 
Feliz 2019.

Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Fogos em surdina

Foi um Réveillon diferente e cheio de significado, no começo do milênio. A casa, no alto do Jardim Botânico e sob uma axila do Cristo, debruçada sobre a Lagoa, a Gávea, Copacabana, Ipanema e Leblon, permitiria ver os fogos de onde eles fossem disparados. O dono da casa morrera anos antes, em Nova York, numa cirurgia aparentemente sem risco e que se revelara fatal. Sua morte foi chorada em todo o mundo. E, logo depois, o filho adolescente também morrera, num brutal acidente de automóvel no Aterro. Então, por que um Réveillon em tais circunstâncias?
Talvez porque, passados os anos de luto, a mulher quisesse rever os amigos de seu marido e seu filho. Talvez porque, por algumas horas, fosse uma maneira de trazer o marido e o filho de volta —as memórias dos amigos criando um circuito quase físico de saudade e amor. Talvez porque ela quisesse provar para si mesma que a vida deveria continuar, como seria da vontade deles. 
Mas não poderia ser uma noite de baixo astral. Como em todos os Réveillons, haveria música e dança, risos e beijos. E, para que fosse assim, só uma música não deveria sair do sistema de som —a imortal música do dono da casa. Nem precisava. Ela já estava dentro de cada convidado. Era uma trilha sonora em comum entre todas aquelas pessoas que também há anos não se viam. Foi uma noite feliz.
E, então, à meia-noite, começaram os fogos. Lá embaixo, a cidade parecia incendiar-se na direção do céu. Todos os pontos de fogos podiam ser vistos ao mesmo tempo, o que só acontece se se estiver muito alto —como era o caso. Mas, interessante: embora o visual daquela celebração fosse insuperável, era como se faltasse alguma coisa. Faltavam os estouros, as chispas, os estalos. A distância não permitia que o som chegasse até nós. Eram fogos em surdina, quase mudos.
Para aquele Réveillon, eles eram perfeitos. Mas só para aquele.

Crônica de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

Os livros sobre política de 2018

O livro-símbolo de 2018 foi “Como as Democracias Morrem”, de SteveLevitsky e Daniel Ziblatt. Trata-se de uma análise dos riscos que a eleição de Trump trouxe para a democracia americana feita por cientistas políticos que conhecem como poucos a história dos retrocessos democráticos recentes em lugares como Venezuela, Turquia, Hungria e Polônia.

Já sobre a crise da democracia mesmo onde ela ainda funciona, o destaque fica com “The People vs. Democracy”, de Yascha Mounk, que sairá no Brasil em abril de 2019. Entre os vários insights do livro, destaque para a discussão sobre “liberalismo não democrático” (a tecnocracia, a judicialização) e “democracia não liberal” (os variados populismos).
Na mesma linha, “Como a democracia chega ao fim”, de David Runciman, já valeria só pela discussão das dificuldades políticas trazidas por questões que talvez sejam grandes demais (aquecimento global) ou pequenas demais (epidemia de drogas) para um governo democrático.
“Fascismo: um Alerta”, da ex-secretária de Estado americana Madaleine Albright, é um alerta antiautoritário muito bem-feito por uma autora que conheceu os totalitarismos do século 20 e sabe o quanto o consenso democrático dos anos 90, apesar de tudo, merece ser defendido.
E, se você quer saber mais sobre a crise econômica que ajudou a criar e/ou acelerar todas essas crises políticas até o inferno, “Crashed”, de Adam Tooze, é um livraço, uma magistral história do crash de 2008, com ênfase na dificuldade política de proporcionar soluções nacionais para uma crise financeira eminentemente global.
No Brasil, os melhores livros também foram sobre crise: “Dinheiro, Eleições e Poder”, de Bruno Carazza, é uma investigação minuciosa sobre corrupção e financiamento de campanha informada pelos resultados da Lava Jato. Sugiro lê-lo em companhia de “Presidencialismo de Coalizão”, de Sergio Abranches, o cara que inventou o conceito que dá título ao livro, e agora escreveu uma história do negócio. E feche com a discussão sobre a atuação do Supremo nos últimos anos em “A Batalha dos Poderes”, de Oscar Vilhena Vieira.
Em 2018 começaram a sair as análises de esquerda da crise do petismo. “O Lulismo em Crise”, de André Singer, é uma discussão sobre o período Dilma feita pelo autor do que ainda é o melhor livro sobre a era Lula. “Valsa Brasileira”, de Laura Carvalho, mostra como a “Nova Matriz Econômica” foi inspirada na “Agenda Fiesp", um programa de incentivos à indústria que, enfim, vejam aí no que deu.
Sobre as guerras culturais que acompanham e aprofundam a crise atual, não deixe de ler o livro-reportagem “Em Nome de Quem? A Bancada Evangélica e seu Projeto de Poder”, de Andrea Dip. Nesses dias de governantes moleques se fazendo de homens, um bom antídoto é “Mulheres e Poder: um Manifesto”, da excelente historiadora britânica Mary Beard.
E, enfim, saindo da crise para o crônico, finalmente saiu em livro a tese de doutorado de Pedro Ferreira de Souza, “Uma História da Desigualdade: a Concentração de Renda entre os Ricos no Brasil (1926-2013)”, o melhor trabalho de ciências sociais feito no Brasil nos últimos anos.
Torçamos para que daqui a alguns anos os livros sejam sobre outra coisa, e não porque foram censurados.

Texto de Celso de Rocha Barros, na Folha de São Paulo