domingo, 1 de julho de 2018

Os Beatles conseguiram

Domingo, ainda na cama, dando aquela geral nas redes sociais, cliquei num link do Facebook. Fui menos fisgado pelas duas primeiras palavras do título, "Paul McCartney", do que pelas últimas, "Carpool Karaoke". Que cazzo seria "Carpool Karaoke?".
Confesso, envergonhado, que nunca fui muito fã do Paul McCartney. Ou, melhor dizendo, confesso, envergonhado, que até o último domingo não sabia o quanto era fã do Paul McCartney. Trazia um preconceito forjado na adolescência, quando a ignorância sobre a vida só não era maior do que a arrogância insuflada pelos primeiros fumos de erudição e decretei que os oclinhos redondos do John Lennon representavam a poesia e a profundidade dos Beatles, enquanto o rostinho bonito e a simpatia do Paul fechavam com os gritos histéricos das beatlemaníacas. John seria "Lucy in the Sky with Diamonds", Paul seria "Let it Be". Este tosco binarismo púbere, que sobreviveu intacto em mim como uma coleção de latinhas resiste no fundo de um armário, vinha prenhe de um outro equívoco, o de crer que as lisérgicas "árvores de tangerina" sob o "céu de marmelada" eram mais valiosas do que o aparentemente simplório "deixe estar, deixe estar". As latinhas foram pra cucuia, felizmente, assim que cliquei no link.
"Carpool Karaoke" é um quadro do programa "Late Show with James Corden". No programa em questão, do qual eu nunca tinha ouvido falar, o tal James Corden dá uma carona pro Paul McCartney e ambos passeiam e papeiam por Liverpool. Lá pelas tantas, James botou "Let it Be" no som do carro, Paul começou a cantar e eu comecei a chorar. (O James, digo em minha defesa, também). Vieram mais músicas, vieram mais lágrimas.
Por que diabos eu estou chorando? —pensei, secando os olhos na fronha. Então fui lembrando. Lembrei de "Yellow Submarine", que meu pai me levou pra assistir no CineSesc, com a minha irmã, lá pelos seis anos. Lembrei das festas da quinta série, globo espelhado, Fanta Laranja e "Twist and Shout" no salão do prédio. Depois, na adolescência, a caminho da escola, "Rubber Soul", "Álbum Branco" e "Sgt Pepper's" no walkman. "Two of Us" na trilha sonora de "I am Sam", visto no avião, voltando pra casa após um ano em Barcelona. "Here Comes the Sun" no show da Nina Simone. "Something", cantada pelo Elvis, enquanto a Julia vinha devagarinho pelo jardim para se casar comigo. Paro por aqui, antes que comece a chorar de novo.
Não me julgue, ó, austero leitor, antes de ver o programa. São grandes as chances de você acabar ensopando o seu iPhone, encharcando o seu Samsung. Aqueles quatro moleques conseguiram a proeza de compor a trilha sonora das vidas de boa parte da população mundial nascida na segunda metade do século 20. E do 21 também, suspeito, pela reação dos meus filhos de quatro e três anos submetidos a uma pedagógica dança das cadeiras ao som de "Help!", assim que saí da cama.
O escritor americano Kurt Vonnegut resumiu tudo, no livro "Timequake": "Digo em palestras que uma missão plausível dos artistas é fazer com que as pessoas apreciem pelo menos um pouquinho o fato de estarem vivas. Aí me perguntam se eu conheço algum artista que conseguiu. Eu respondo: 'Os Beatles conseguiram'."

Antonio Prata, na Folha de São Paulo

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