Preciso confessar um crime adolescente: eu lia muito. Como “muito” é uma noção relativa, vale acrescentar que lia demais. Mas o que caracteriza a demasia? Quantos livros serão livros demais? E será que falar nesses termos faz sentido num país que, lendo tão pouco, deveria incentivar todo excesso como forma de elevar sua média?
É aí que mora um problema quase invisível, apesar de imenso: por trás dos pífios índices brasileiros de leitura existe uma poderosa tradição de anti-intelectualismo e desprezo aos livros. Uma tradição que tem raízes profundas e alcance maior do que se pensa.
A última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, divulgada em 2016, revelou que mais da metade dos brasileiros se declaram leitores (mas mentem um bocado também), ainda que leiam só 2,43 livros inteiros por ano em média.
Seria um erro atribuir o problema apenas ao letramento precário —menos de um terço da população enquadrado nos níveis “intermediário” (23%) e “proficiente” (8%), segundo o último Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), de 2015. Abaixo disso fica difícil ler textos minimamente complexos, mas o fato é que quem sabe ler também lê pouco.
Para azar do Brasil, ainda não inventaram ginástica melhor para o pensamento. O desdém à leitura faz parte do nosso 7 a 1 estrutural e ajuda a explicar tanto nossas vitórias magras quanto nossas derrotas duras como sociedade e como nação, embora ganhe menos atenção do que as mazelas nacionais mais óbvias —aquelas que, a cada Copa do Mundo, são enfatizadas por quem torce contra a seleção, como se fosse possível trocar títulos mundiais por Índice de Desenvolvimento Humano.
Não digo que o desprezo às letras tenha o mesmo peso do saneamento básico deficiente, que priva metade dos brasileiros de acesso a redes de esgoto. Ou de nossa desigualdade econômica entre as maiores do mundo. Ou do índice de mortes violentas comparável ao de países em guerra. De todo modo, não há dúvida de que a hostilidade aos livros faz parte dessa equação.
Eu lia escondido porque estava apaixonado demais por literatura e, hipervalorizando como todo adolescente a inserção social, sabia que pegava mal ser visto com livros não escolares debaixo do braço. Se gostasse um pouco menos da coisa, é provável que tivesse desistido daquela mania besta. Como gostava demais, transformei a leitura num prazer culpado: Kafka e Graciliano foram se misturar a revistinhas de sacanagem debaixo do colchão.
Não eram só meus companheiros de geração que lançavam aos livros olhares mais carbonizantes que as chamas dos bombeiros de Farenheit 451, a distopia de Ray Bradbury (filmada por François Truffaut e recém-recriada em versão hollywoodiana) sobre uma sociedade totalitária em que os livros são proibidos. Gerações variadas se irmanavam no complô.
Em seu clássico “Retrato do Brasil – Ensaio sobre a tristeza brasileira”, de 1928, livro datadíssimo mas cheio de um pessimismo revigorante, Paulo Prado escreveu: “Não se publicam livros porque não há leitores, não há leitores porque não há livros. Ciência, literatura, arte —palavras cuja significação exata escapa a quase todos”.
À aridez da massa que nada lia, Prado contrapunha o bacharelismo, a cultura ornamental de uma pequena elite, afirmando: “Em tudo domina o gosto do palavreado, das belas frases cantantes, dos discursos derramados”. A contradição entre os dois polos é só aparente: ignorância e pirotecnia verbal vazia vão de braços dados. Não há campanha de leitura que dê jeito nisso.
Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo.
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