“Mas é família.” Tem que aturar ou, ainda pior, tem que amar porque é família. Quem tem cachorro sabe: a gente gosta bem mais dos animais domésticos do que de 99,5% dos parentes.
Para visitar a avó no interior lotavam um Veraneio. A mãe dizia: “Vai bem na frente! Se chacoalhar muito, dá menos vontade de vomitar”. Durante o trajeto, tios e primos soltavam sonoros e terríveis flatos e falavam de “namoradas” como se fossem funcionárias insuportáveis de um telemarketing do inferno.
A garotinha é maluca porque a mãe da garotinha está cada hora com um macho. O garotinho é bicha porque a mãe do garotinho nunca prestou muito. E assim iam comentando, ao longo do trajeto e sempre com muito desvelo, as crianças próximas e, ainda com mais brandura no coração, as mães desses rebentos “degenerados”.
Quando pequenos, fomos todos torturados por alguém da família. O mundo, ainda tão limitado, era essa galera que, mesmo sentando na frente do Veraneio, dá muita vontade de vomitar. Os filhos já deram errado antes mesmo de saberem o que é isso, as mães seguem “dando” errado, esquecendo que depois de parir não deveriam mais ter desejos. E os senhores que bufam e riem (e detestam mulheres) se juntam às senhoras que odeiam outras mulheres (e também bufam e riem) e juntos formam o espírito natalino. E o espírito natalino (Páscoa, aniversário da avó, Ano Novo, batizado, Dia dos Pais, bodas da bisa, não importa a data, o espírito natalino nada tem a ver com o Natal, e sim com uma turma bem estranha reunida em prol de se aliviar e detonar os outros) é a maior tortura da vida de um adolescente bacana.
A cada 178 humanos desnecessários (ou apesar deles), forma-se, assombrosamente, uma pessoa notável. E este jovem, essa flor de lótus que nasceu do asfalto fétido, sabe, desde os tempos de miúdo, que tem algo de muito errado com o tio do pavê que defende a intervenção militar. O parente que explica, com a grandiloquência inútil de um tenor desafinado, que nunca existiu a ditadura. Ou que foi necessária para acabar com terroristas. Ou que “precisa crescer o bolo antes de repartir”, esquecendo que ele jamais foi repartido. Ou que defende que o “milagre econômico” não foi uma “religião” apenas para ricos e empresários. Ou que tem saudade do tempo “que era realmente seguro sair na rua”, esquecendo que jovens morriam, sumiam, eram despedaçados, queimados, apagados. Desprezam as grávidas que eram estupradas, levavam choques, perdiam seus bebês. Desdenham que jornalistas, artistas, amigos eram amarrados pelos pés, currados, espancados, afogados, eletrocutados.
Esses broncos e boçais que defendem a intervenção militar são nossos torturadores de toda uma vida. Quem não tem pelo menos um na família? Nos jantares em que não rimos das piadas sobre nossos defeitos, nos almoços em que ninguém falou de livros ou cinema ou viagens ou filosofia ou artes ou psicanálise ou música ou teatro (mas sim de como a fulana é vaca e o fulano é viado e a vizinha é sapata enrustida e a prima é obesa e o namorado da tia é um artista vagabundo), nas festas em que não sentimos nenhum conforto ao abraçar as pessoas, nos casamentos em que celebramos a falsidade, fomos torturados.
Ficamos loucos, inseguros, solitários, incapacitados de amar, dependentes de terapia, dependentes de antidepressivos e, ainda assim, nada disso se compara ao sofrimento de uma ditadura. São eles, os parentes ignorantes que nos aviltam com seus comentários, os torturadores do Brasil de hoje. Agora é torcer para que eles sejam o pior que pode nos acontecer.
Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
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