Numa leva de inovações teóricas iniciadas com Joaquim Barbosa e seu “Domínio do Fato”, até o “probabilismo penal jurídico cristão” de Deltan Dallagnol, o rol de inovações é tão estranho quanto de duvidosa serventia. Aliás, o próprio criador da doutrina do “domínio do fato”, Klaus Roxin, desautorizou a forma com que Joaquim Barbosa usou no mensalão. Era muito domínio e pouco fato. Vozes qualificadas contra as inovações brasileiras não faltam. Vão desde constitucionalistas como José Gomes Canotilho até penalistas mundialmente reconhecidos como o italiano Luigi Ferrajoli e Raul Zaffaroni. Aliás, Canotilho foi autor, junto com Nuno Brandão, de um parecer pedido pelo governo português sobre a Lava a Jato. Canotilho é límpido e transparente sobre a ilegalidade dos acordos de delação. Na mesma esteira, o juiz espanhol que mandou prender Pinochet, Baltasar Garzón, e o juiz da “Operação Mãos Limpas” na Itália, Gherardo Colombo, são ambos abertamente críticos aos desmandos e novidades produzidas pela turma jurídica brasileira nestes últimos tempos.
A citação destes “gringos” em nada desmerece a luta feita pelos brilhantes juristas que temos. Desde Pedro Serrano, Fernando Hideo Lacerda bem como os juízes Marcelo Semer e Rubens Casara – para ficar apenas nos que tenho algum contato – denunciam e questionam as “novidades” jabuticabescas colocadas em prática contra o PT e os governos progressistas. Peço desculpas a todos os que não cito, desde já. Não vai aqui qualquer demérito que não o da minha falha memória e minha ignorância. Cito os “gringos” para fugir do argumento muito “terra brasilis” de que os juristas que denunciam a Lava a Jato e Moro são “de esquerda”. Como se a posição política definisse a correção epistemológica com que se trata o objeto que se estuda. É claro que vozes vão dizer que Canotilho, Zaffaroni, Ferrajoli, Colombo e Garzón são pagos pelo PT e participam de alguma internacional comunista. Vão surgir inúmeros artigos de duas páginas, em blogs “liberais” “provando” a tese de que eles fazem parte do Foro de São Paulo. O irracionalismo é marca indelével destes tempos fascistas que vivemos.
Irracionalismo e ignorância à parte, o instituto da Delação Premiada não pode ser aceito como parte do ordenamento jurídico brasileiro. Há uma contradição histórica e sociológica evidente que inutiliza tal teoria do ponto de vista da aplicação da justiça dentro do sistema brasileiro. Não tenho conhecimento formal sobre processos e nem pretendo fazer teses a este respeito. Mas o direito é mais um vetor constitutivo da sociedade e como tal não é alheio à compreensão e crítica de cientistas sociais e nem imune, como objeto de estudo, ao olhar de outros que não juristas.
Apenas alguns juízes – e sempre os mesmos – acham que os juízes são uma casta imune à corrupção. Apenas alguns juízes – e sempre os mesmos – defendem a infalibilidade do juiz e sua natureza humana diferenciada, muito parecida com as doutrinas religiosas medievais sobre o Papa ou a forma como a constituição brasileira tratava o imperador em 1824. Infalibilidade, inimputabilidade, inquestionabilidade e soberania total dos atos. Trocamos UM imperador por cerca 3000 imperadores-juízes que (quando muito) julgam a si próprios e seus pares. Regiamente pagos, definem o quanto querem ganhar. E a isto chamamos jocosamente de “república”.
Voltando ao instituto da Delação Premiada, ele surge no direito anglo saxônico e é implementado fortemente nos EUA. O “plea bargain” nos EUA tem uma série de restrições formais. São aceitos apenas um plea bargain por crime imputado, negando que o juiz possa usar várias “confissões” como forma de prova sobre outros réus, num processo de formação de culpa por cumulação de “confissões”. Lá, as informações usadas não valem sem provas (e não apenas evidências) que as consubstanciem, e o réu que faz o “plea bargain” que tem por obrigação oferecer, senão as provas, ao menos meios concretos para que as investigações as encontrem. Existem também diferenças sobre quem pode oferecer benesses ao suplicante do plea bargain, quanto suas penas podem ser minoradas e em nenhum momento é imposto ao suplicante que abra mão de seus direitos em todas as instâncias, como ocorre na Lava a Jato. Muitas pessoas citam o fato de “as instâncias superiores” terem mantido as condenações e não questionado os métodos de Moro, mas poucos sabem que ao fazer o acordo com o MP brasileiro, o suplicante abre mão de discutir este acordo em todas as instâncias acima do MP. Ou seja, não há questionamento porque é parte do acordo cercear o direito fundamental do cidadão de recorrer a tribunais e órgãos colegiados!
Assim que o MP abre o procedimento da “Delação Premiada” o procurador que está a frente do suplicante é Deus, Rei, seu confessor terreno e seu carrasco ao mesmo tempo. Não há nada que controle o MP, nada que possa questionar este processo de arrancar informações. Nada nem ninguém que esteja como testemunha de TODAS as informações oferecidas em comparação com as usadas pelo MP. Em resumo, o MP não tem obrigação alguma de usar as informações recebidas. Pode focar em seus interesses, decidir sozinho pela pertinência da delação, sua extensão, sua profundidade e tudo mais que a cerca.
Chama a atenção especialmente aqui o fato de que NÃO HÁ QUALQUER ESTÍMULO AO CONTRADITÓRIO NESTE PROCESSO. Há o interesse do MP de condenar X e para isto ele leva Y a delação premiada. X vai falar sobre Y por interesse em sua liberdade, diminuição de pena ou mesmo extinção do processo. Tudo, pois, beneficia Y. A quem a delação ataca, por exemplo X, não está nem tem seus advogados presentes! O MP por óbvio não pode fazer o duplo papel de incitar a colaboração e oferecer o contraditório ao mesmo tempo, e o juiz não poderia (embora Moro tenha inventado a figura do “juiz-assistente de acusação”) oferecer críticas a delação por violação total do princípio da equidistância. Em suma, o ato da delação se constitui numa arma mortal nas mãos do Estado que “prova” o que quiser, contra quem quiser, fulminando de uma só vez o princípio da paridade de armas entre defesa e ataque e reduz a relação entre indivíduo e Estado a uma mera formalidade entre escravo e feitor.
Agora imaginem uma delação “vazada” e tornada pública.
Seria mais justo oferecer o réu à execração pública e depois enforca-lo aos gritos histéricos dos “homens de bem”.
O principal problema da Delação, entretanto, não está na sua metodologia interna, que já vimos é totalmente contra os princípios de direito brasileiro. O principal problema é que no sistema anglo-saxônico os juízes não são nem perto das divindades olímpicas brasileiras. Nos EUA, por exemplo, as decisões da Suprema Corte não têm poder cogente. Não podem ser obrigadas imediatamente sobre os entes federativos. É preciso que a União aja para impor uma decisão e neste espaço existe a resistência política dos Estados, e até das municipalidades. Os EUA, ao contrário do que todos pensam, não tem na Justiça a última voz, mas na política. Até por isto a Suprema Corte exerce suas funções com um imenso cuidado para não romper as relações de poder entre os entes e entre o cidadão. Um exemplo que ocorre agora, Trump ordenou uma série de medidas duras para atacar imigração e imigrantes ilegais dentro dos EUA. O Estado da Califórnia se negou a cumprir e não há nada que Trump possa fazer para OBRIGAR o cumprimento de sua ordem. Trump pode aplicar penalizações econômicas e negociar politicamente uma solução. Pode apelar para a Suprema Corte e, de novo, o que a Suprema Corte decidir fica submetido à relação de poderes política.
Significa dizer que no Brasil um juiz manda e, por mais tresloucada que seja sua ordem, se sustentada por seus pares deve ser cumprida. Quem assim não o fizer vai preso. Isto só existe nos EUA no nível local. O efeito prático é que nos EUA toda decisão judicial é uma decisão socialmente construída e não fruto apenas da “consciência individualmente monitorada” do julgador. Se a Suprema Corte começar a se tornar draconiana, rapidamente os estados passam a se opor às decisões. Isto leva aos juízes a decisões realmente calcadas em pontos que sejam entendidos como socialmente sustentáveis para O CONJUNTO da sociedade. A decisão leva em conta a correlação de forças, os entendimentos, a historicidade e as repercussões sobre as comunidades e sobre o país, além da simples noção de “mérito”.
No Brasil os juízes têm tocado o “foda-se” e os desembargadores se tornam “bullies”, ameaçando prisão e defendendo seus pares contra tudo e contra todos.
Um último ponto a ser tocado, é que o “impeachment” nos EUA existe exatamente para conter os juízes. Nunca um presidente norte-americano foi retirado do cargo por impeachment, mas cerca de 15 juízes foram retirados por meio do impeachment. Se colocado este “detalhe” na balança, fica evidente que os juízes tendem muito mais a controlar suas ações, em vista da possibilidade de sofrerem sanção pelos seus abusos. É muito melhor a forma de controle entre os poderes lá do que o que ocorre no Brasil. Além do fato de que, em muitos estados, juízes, promotores e delegados de polícia são cargos eletivos.
Não há comparação entre o “plea bargain” americano e a “delação premiada” no Brasil, do ponto de vista da sociologia dos poderes. Lá é um incentivo controlado que pode ser usado pelo réu. Os seus resultados são contraditados em todas as instâncias, inclusive com controle social e político sobre os juízes e suas sentenças. No Brasil, a delação premiada é um instrumento ditatorial do Estado, que culpa quem quiser, quando quiser e da forma que quiser. Se você juntar isto com os vazamentos midiáticos seletivos, as proibições a perícias e provas da defesa e o conluio, via corporativismo, amizade ou laços familiares, do judiciário, temos a Lava a Jato.
Na verdade, temos a semente do fascismo, da lei em movimento e o fim de qualquer valor ou prática que se ligue minimamente à ideia de República. O termo república vem do latim “res” “publicum”, que quer dizer “coisa do povo”. E nenhuma República pode aceitar o poder de um juiz e um promotor armados com a delação premiada e amigos, familiares ou “seguidores” nos tribunais superiores. A delação premiada não faz justiça, mas justicia quem o juiz e o promotor bem quiserem.
Texto de Fernando Horta, no Jornal GGN.
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