"Invasões Bárbaras" é, entre outras coisas, o nome de um filme do cineasta canadense Denys Arcand.
Nele, vemos uma singular história de reconciliação entre pai e filho. No momento final de sua doença e morte, um professor universitário, interpretado por Rémy Girard, procura se reaproximar de seus amigos e filho.
Rémy fora um professor que vivera o maio de 1968, a liberação posterior de costumes, que tivera sonhos de revolucionar a vida e o mundo, mas que, ao final, percebe quão pouco realmente realizou.
Seu tom é melancólico, baseado nas frases que versam sobre "o que poderia ter sido".
Sébastien é o nome de seu filho, com o qual ele tem poucas relações. Uma das razões da distância é a diferença em seus modos de vida.
Contrariamente ao pai, Sébastien é alguém que soube se integrar com sucesso. Alto funcionário de uma companhia que vende petróleo, noivo de um mulher pronta para ser a esposa perfeita, ele vê a vida errática e excessiva do pai como uma inadaptação infantil.
Os papéis tradicionais parecem estar trocados nesta narrativa em que as instâncias normativas estão nas gerações mais jovens. O filme será então a história de uma aproximação, mas uma aproximação que, à sua maneira, fornece uma resposta possível à questão sobre o que ainda pode ser um pai.
A esse respeito, se me permitirem o uso da primeira pessoa, lembro-me de conhecer um jovem que acabara de ser pai, no Cairo. Sabendo que eu tinha uma filha, ele se pôs a falar de como imaginava educar seu filho nos mínimos detalhes, procurando controlar e selecionar aquilo que julgava ser formador ou não.
Ele imaginava um espaço irretocável de educação. A minha única pergunta foi: "Mas o que você fará com seus erros?".
Os "erros" em questão não se referiam apenas às escolhas erradas, mas principalmente às errâncias, ou seja, aos momentos em que, por confusão ou cegueira, nós mesmos acabamos traindo o que não deveria ser traído, não somos dignos do lugar que ocupávamos, do amor que recebemos.
Errâncias estas motivadas por cálculos errados, por sintomas e divisões com os quais nunca soubemos lidar, por crenças que depois se demonstrarão ilusórias.
Não seria uma educação mais honesta aquela que faz sujeitos perceberem que o desejo nos leva, muitas vezes, a entrar em errâncias que são inevitáveis, que nos leva a lidar com um campo confuso com o qual, muitas vezes, falhamos constantemente em lidar?
Houve época em que os pais acreditavam que deveriam aparecer aos filhos como força disciplinar e sublimada. Um esteio positivo de identificação. Eles tinham então que lidar com as resistências à adaptação, com a experiência de repressão da qual eram veículos.
Mas talvez mais difícil do que isso é aparecer como aquele que mostra como há um campo de insegurança na vida assim que nos perguntamos sobre o desejo. Um campo que certamente nos levará a errar quando procuramos interpretar a injunção moral de não ceder em seu desejo. Este reconhecimento pode ser o embrião para uma forma outra de solidariedade.
Em "Invasões Bárbaras", a aproximação entre pai e filho se dá quando o filho entra em dúvida a respeito de suas escolhas, ou seja, quando sua integração perfeita parece a ponto de entrar em colapso.
Pois talvez nesse momento ele possa desenvolver alguma forma de solidariedade com os que tropeçam e caem, reconhecer a humanidade dos que se confundem. Não para repetir os impasses do pai, mas para ser capaz de separar a intenção da realização, a inquietude do limite e, assim, traçar um outro caminho.
Um caminho que, como sempre, será a ressonância dos caminhos que nos constituíram, da história dos desejos desejados antes de nós, mas que podem encontrar uma forma mais refletida e menos dolorosa.
Que seja o pai o veículo de tal reconhecimento, eis algo que não seria sem relações com uma certa curiosidade bibliográfica de um dos filósofos que nos aparece com o esteio da razão moderna, a saber, Descartes. Em dado momento, Descartes declara ter se apaixonado na juventude por uma garota manca.
Lembro-me de um professor que se servia disso para dizer que, no fundo, Descartes nunca deixara de tentar lidar com o que manca, com os fundamentos que, mesmo nos sustentando, têm sempre algo que manca. Pois esta era, afinal, uma astúcia da razão: nos fazer amar o que manca.
Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo.