Jacques Chirac seria condenado no Brasil?
Semanas atrás, o ex-presidente francês Jacques Chirac foi condenado a dois anos de prisão, com sursis (suspensão condicional da pena), por desvio de € 1,4 milhão, abuso de confiança e recebimento ilegal de vantagem.
Ele criou, na década de 1990, como prefeito de Paris, empregos fictícios em benefício de pessoas de seu partido, o RPR (Agrupamento pela República).
Segundo a sentença, Chirac "faltou com a obrigação de probidade que pesa sobre as pessoas públicas encarregadas da gestão dos fundos ou bens que lhes são confiados, em detrimento do interesse geral".
Ele foi o primeiro ex-presidente condenado na França desde o marechal Philippe Pétain, em 1945, por colaboração com os nazistas. Chirac sofre de doença neurológica, tem 79 anos de idade e já havia ressarcido a prefeitura parisiense em € 2,2 milhões. Mas isso não impediu a condenação.
Chirac seria condenado no Brasil? Impossível.
Primeiro, por nossas regras de prescrição. Na França, a prescrição de crimes graves ocorre em dez anos e se interrompe pela investigação ou impulso do processo. Só há prescrição se o Ministério Público passar dez anos inerte.
No Brasil, para a pena aplicada a Chirac, a prescrição ocorreria em quatro anos e só se interromperia com o início da ação e com a sentença condenatória. Pela idade de Chirac, o prazo seria contado pela metade, isto é, dois anos. Os desvios aconteceram até 1995, e o início da ação, em 2009. Aqui, nem haveria processo.
Mesmo proclamando inocência, o ex-presidente francês decidiu não apelar. No Brasil, diferentemente dos países mais avançados, temos quatro instâncias criminais. Se o réu recorrer, mesmo sem nenhum argumento sério, a pena só é executada depois de todas elas. Nos demais países, em geral, com a decisão de segunda instância a pena já é aplicada.
Nossas regras estimulam os advogados a recorrer infinitamente, para fazer o cliente obter a extinção do processo. Nosso Código Penal premia a chicana com a impunidade. Temos ainda uma excrescência chamada prescrição retroativa: o processo pode ir para o arquivo mesmo que o réu tenha sido validamente condenado.
Outra dificuldade nossa: os habeas corpus. Nosso Judiciário admite o habeas corpus como talvez em nenhum outro país. Por habeas corpus sucessivos, uma denúncia ajuizada na primeira instância é examinada dias depois no Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus são preparados pelos advogados só com as provas que interessam, e tribunais antecipam o julgamento do mérito sem que o Ministério Público possa produzir provas adicionais.
Assim, os tribunais superiores estão afogados pelo mar de habeas corpus que a jurisprudência incentivou. Em outros países, não se admite o habeas corpus com a amplitude do Brasil.
Com esse histórico julgamento, a justiça francesa mostra independência e severidade aos que lesam o patrimônio público.
Com nossos processos infinitos, nossas altas taxas de prescrição, nossos baixos índices de recuperação dos bens desviados, que mensagem o sistema criminal brasileiro transmite? A de uma estrutura lenta, ineficiente e com enorme dificuldade de punir crimes e improbidade praticados pelos que detêm poder político ou econômico.
A responsabilidade pelas deficiências de nosso sistema não é só do Judiciário. Nossa legislação precisa de profundas alterações, e nem sempre o Legislativo é sensível à necessidade de tornar eficiente o combate ao crime e à improbidade. Cabe à sociedade exigir.
WELLINGTON CABRAL SARAIVA, 44, mestre em direito pela Universidade de Brasília (UnB), é representante do Ministério Público da União no Conselho Nacional de Justiça
Texto publicado na Folha de São Paulo, de 5 de janeiro de 2012.
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