A religião do chefe
SOU UMA fonte de desilusões. Convidam-me para almoçar, oferecem-me os petiscos mais caros do cardápio, fazem-me elogios estratosféricos e francamente imerecidos. No final, o verdadeiro propósito do repasto: um convite "irrecusável" para chefiar uma publicação portuguesa. Eu, como sempre, agradeço e recuso.
É então que o interlocutor faz um esgar de náusea como se eu tivesse insultado a mulher dele. Limpa os cantos da boca com impaciência, atira o guardanapo para cima da mesa e dispara: "Mas por quê?"
Eu tento explicar-lhe. Cinco, dez minutos de humildade sincera que não convencem ninguém.
O almoço termina em clima azedo e eu, com sentimento de culpa, prometo repensar o assunto (mentira: o assunto já está pensado e repensado). Despedimo-nos na rua com um aperto de mão. Gélido, apressado.
A minha experiência não mente: só existe uma coisa pior do que a vontade de poder, é a ausência da vontade de poder. Sobre a primeira, escreveram-se tratados, ensaios, exortações ou lamentos. Só a segunda nunca teve o seu Darwin (1809-1882), o seu Nietzsche (1844-1900). O seu Warren Buffett.
Injusto. A vontade de poder pode ser ofensiva para certos espíritos sofisticados. Mas a ausência dessa vontade ainda é mais.
Quando a exibo em público com uma displicência natural, de preferência perante o olhar pasmado de quem rastejou toda a vida pela simples possibilidade de "mandar" (repugnante verbo), sinto que cometo uma blasfêmia contra a única religião que sobreviveu intacta. A religião do chefe.
Tem sido assim no curso de uma vida. Várias vezes lugares de poder vieram bater-me à porta. Na universidade. No jornalismo. E até na política, onde aparece sempre alguém a "sondar-me": "Não estaria interessado em ser deputado? Diretor-geral? Eventualmente pertencer a um futuro governo como futuro ministro?".
Escuto os convites levemente divertido e, no caso da política, procuro imaginar onde errei para que alguém se tivesse lembrado de mim. Depois, recuso as benesses, sem a mínima hesitação.
Ninguém se convence. Ninguém acredita. A ausência da vontade de poder não é apenas uma ofensa e uma blasfêmia. É a origem de mil suspeitas. Se recusamos um convite, isso significa que esperamos outro. Maior. Melhor. Com mais poder.
Iniciam-se conspirações para saber ao certo o que escondemos na manga. Fazem-se telefonemas a amigos ou inimigos.
E a paranoia dos paranoicos aumenta à medida que nada se sabe e nada se descobre. Deixamos de ser pessoa confiável; passamos a ser um hipócrita e um manipulador. Passamos de bestial a besta. De convidado a acossado.
Ainda me lembro quando, anos atrás, recusei ser editor de um caderno qualquer num jornal de Lisboa. A estupefação foi tal que o próprio diretor se sentiu ameaçado. Se eu não queria editar, eu queria dirigir. Se eu queria dirigir, eu queria tomar conta do jornal. Se eu queria tomar conta do jornal, eu queria tomar conta do mundo.
Acabei por me demitir, depois de meses de inferno, com telefonemas histéricos e algumas ameaças pelo meio.
Chego à casa depois do almoço solene. Deixo passar uma hora, duas, três. Finalmente, telefono para repetir o que havia dito antes: "Obrigado, mas não, obrigado".
Faz-se um silêncio do outro lado da linha e a voz, impaciente e quase irada, replica com prontidão: "Mas afinal o que é que tu queres?". Ó Deus, cá vamos nós novamente.
É então que o interlocutor faz um esgar de náusea como se eu tivesse insultado a mulher dele. Limpa os cantos da boca com impaciência, atira o guardanapo para cima da mesa e dispara: "Mas por quê?"
Eu tento explicar-lhe. Cinco, dez minutos de humildade sincera que não convencem ninguém.
O almoço termina em clima azedo e eu, com sentimento de culpa, prometo repensar o assunto (mentira: o assunto já está pensado e repensado). Despedimo-nos na rua com um aperto de mão. Gélido, apressado.
A minha experiência não mente: só existe uma coisa pior do que a vontade de poder, é a ausência da vontade de poder. Sobre a primeira, escreveram-se tratados, ensaios, exortações ou lamentos. Só a segunda nunca teve o seu Darwin (1809-1882), o seu Nietzsche (1844-1900). O seu Warren Buffett.
Injusto. A vontade de poder pode ser ofensiva para certos espíritos sofisticados. Mas a ausência dessa vontade ainda é mais.
Quando a exibo em público com uma displicência natural, de preferência perante o olhar pasmado de quem rastejou toda a vida pela simples possibilidade de "mandar" (repugnante verbo), sinto que cometo uma blasfêmia contra a única religião que sobreviveu intacta. A religião do chefe.
Tem sido assim no curso de uma vida. Várias vezes lugares de poder vieram bater-me à porta. Na universidade. No jornalismo. E até na política, onde aparece sempre alguém a "sondar-me": "Não estaria interessado em ser deputado? Diretor-geral? Eventualmente pertencer a um futuro governo como futuro ministro?".
Escuto os convites levemente divertido e, no caso da política, procuro imaginar onde errei para que alguém se tivesse lembrado de mim. Depois, recuso as benesses, sem a mínima hesitação.
Ninguém se convence. Ninguém acredita. A ausência da vontade de poder não é apenas uma ofensa e uma blasfêmia. É a origem de mil suspeitas. Se recusamos um convite, isso significa que esperamos outro. Maior. Melhor. Com mais poder.
Iniciam-se conspirações para saber ao certo o que escondemos na manga. Fazem-se telefonemas a amigos ou inimigos.
E a paranoia dos paranoicos aumenta à medida que nada se sabe e nada se descobre. Deixamos de ser pessoa confiável; passamos a ser um hipócrita e um manipulador. Passamos de bestial a besta. De convidado a acossado.
Ainda me lembro quando, anos atrás, recusei ser editor de um caderno qualquer num jornal de Lisboa. A estupefação foi tal que o próprio diretor se sentiu ameaçado. Se eu não queria editar, eu queria dirigir. Se eu queria dirigir, eu queria tomar conta do jornal. Se eu queria tomar conta do jornal, eu queria tomar conta do mundo.
Acabei por me demitir, depois de meses de inferno, com telefonemas histéricos e algumas ameaças pelo meio.
Chego à casa depois do almoço solene. Deixo passar uma hora, duas, três. Finalmente, telefono para repetir o que havia dito antes: "Obrigado, mas não, obrigado".
Faz-se um silêncio do outro lado da linha e a voz, impaciente e quase irada, replica com prontidão: "Mas afinal o que é que tu queres?". Ó Deus, cá vamos nós novamente.
Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo, de 1º de fevereiro de 2011.
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